sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

GROTOWSKY - EM BUSCA DE UM TEATRO POBRE

DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS

I O ritmo de vida na civilização moderna se caracteriza pela tensão, por um sentimento de condenação, pelo desejo de esconder nossas motivações pessoais, e por uma adoção da variedade de papéis e máscaras da vida (máscaras diferentes para a nossa família, o trabalho, entre amigos e na vida da comunidade, etc.). Gostamos de ser "científicos", querendo dizer com isto racionais e cerebrais, uma vez que esta atitude é ditada pelo curso da civilização. Mas também queremos pagar um tributo ao nosso lado biológico, o que poderíamos chamar de prazeres fisiológicos. Não queremos ser limitados nesta esfera. Portanto, fazemos um jogo duplo de intelecto e instinto, pensamento e emoção; tentamos dividir-nos artificialmente em corpo e alma. Quando tentamos nos livrar disto tudo, começamos a gritar e a bater com o pé, nos convulsionamos com o ritmo da música. Em nossa busca de liberação, atingimos o caos biológico. Sofremos mais com uma falta de totalidade, atirando-nos, dissipando-nos. O teatro - através da técnica do ator, de sua arte, na qual o organismo vivo se esforça para atingir motivações mais altas - proporciona uma oportunidade que poderia ser chamada de integração, de um tirar de máscaras, de uma revelação da substância autêntica: uma totalidade de reações físicas e mentais. A oportunidade deve ser tratada de forma disciplinada, com uma consciência total das responsabilidades que isso envolve. Aqui, podemos ver a função terapêutica do teatro para as pessoas, em nossa civilização atual. É verdade que o ator executa essa ação, mas só pode executá-la através de um encontro com o espectador - intimamente, visivelmente, sem se esconder atrás de um cameraman, do assistente ou da maquiladora - num confronto direto com ele, e de certa forma "em lugar dele". A representação do ator - afastando as meias medidas, revelando-se, abrindo-se, emergindo de si mesmo, em oposição ao fechamento - é um convite ao espectador. Este ato deve ser comparado a um ato dos mais profundamente enraizados, a um amor genuíno entre dois seres humanos - sendo isto apenas uma comparação, já que só podemos nos referir a este "emergir de si mesmo" através de uma analogia. A este ato, paradoxal e fronteiriço, chamamos de ato total. Em nossa opinião, ele epitomiza o apelo mais profundo do ator.

II Por que sacrificamos tanta energia à nossa arte? Não é para ensinar aos outros, mas para aprender com eles o que nossa existência, nosso organismo, nossa experiência pessoal e ainda não treinada tem para nos ensinar; para aprender a romper os limites que nos aprisionam e a libertar-nos das cadeias que nos puxam para trás, das mentiras sobre nós mesmos, que manufaturamos cotidianamente, para nós e para os outros; para as limitações causadas pela nossa ignorância e falta de coragem; em resumo, para encher o vazio em nós; para nos realizarmos. A arte não é um estado da alma (no sentido de algum momento extraordinário e imprevisível de inspiração), nem um estado do homem (no sentido de uma profissão ou função social). A arte é um amadurecimento, uma evolução, uma ascensão que nos torna capazes de emergir da escuridão para uma luz fantástica. Lutamos, então, para descobrir, experimentar a verdade sobre nós mesmos; rasgar as máscaras atrás das quais nos escondemos diariamente. Vemos o teatro - especialmente no seu aspecto palpável, carnal - como um lugar de provocação, uma transformação do ator e também, indiretamente, de outras pessoas. O teatro só tem significado se nos permite transcender a nossa visão estereotipada de nossos sentimentos e costumes convencionais, de nossos padrões de julgamento - não somente pelo amor de fazê-lo, mas para podermos experimentar o que é real e, tendo já desistido de todas as fugas e fingimentos diários, num estado de completo e desvelado abandono, descobrir-nos. Desta forma - através do choque, através do tremor que nos causa o rasgar de nossas máscaras e maneirismos diários - somos capazes, sem nada ocultar, de confiarmo-nos a algo que não podemos denominar, mas em que vivem Eros e Caritas.

III A arte não pode ser limitada pelas leis da moralidade comum ou de qualquer catecismo. O ator, pelo menos em parte, é criador, modelo e criação encarnados num só. Ele deve possuir pudor, pois do contrário será levado ao exibicionismo. Deve ter coragem, mas não apenas a coragem de exibir-se - uma coragem passiva, poderíamos dizer: a coragem de um desarmado, a coragem de revelar-se. Nem aquilo que toca a esfera interior nem o profundo desnudamento do ser devem ser encarados como um mal, pois tanto no processo de preparação quanto no trabalho acabado produzem um ato de criação. Se não apareceram facilmente, e se não forem sinais de um afloramento, mas de uma maestria, serão criativos; revelam-nos e purificam-nos enquanto nos transcendemos. Na verdade, impelem-nos a isto. Por tais razões, cada aspecto do trabalho do ator, relativo a materiais interiores, deve ser protegido de observações incidentais, indiscrições, leviandades, comentários inúteis e brincadeiras. O domínio pessoal - tanto espiritual quanto físico - não deve ser "conspurcado" pela trivialidade, pela sordidez da vida e pela falta de tato em relação a si e aos outros. Este postulado pode soar como de ordem moral abstrata. Mas não é. Dirige-se à verdadeira essência do apelo do ator. Este apelo é realizado através da carnalidade. O ator não deve ilustrar, mas realizar um "ato da alma", através do seu próprio organismo. Assim, ele está diante de duas alternativas extremas; ou vende, desonra seu ser real, "encarnado", tornando-se objeto de prostituição artística; ou entrega-se em doação, santificando seu ser "encarnado" real.

IV O ator só pode ser orientado e inspirado por alguém que se entrega de todo coração à sua atividade criativa. O diretor, enquanto orienta a inspiração do ator, deve ao mesmo tempo permitir ser orientado e inspirado por ele. Trata-se de um problema de liberdade, companheirismo, e isto não implica em falta de disciplina, mas num respeito pela autonomia dos outros. O respeito pela autonomia do ator não significa ausência de lei, falta de exigências, discussões intermináveis, e a substituição de ação por contínuas correntes de palavras. Ao contrário, o respeito pela autonomia significa enormes exigências, a expectativa de um máximo de esforço criativo e de um máximo de revelação pessoal. Compreendida dessa forma, a solicitude pela liberdade do ator só pode ser gerada da plenitude da liderança, e não da sua falta de plenitude. Tal falta implica em imposição, ditadura.

V O ato de criação nada tem a ver com o conforto externo ou com a civilidade humana convencional; quer dizer, as condições de trabalho nas quais as pessoas se sentem felizes. Neste tipo de criatividade, discutimos através de propostas, ações e organismos vivos, não através de explicações. Quando, finalmente, nos encontramos no rastro de algo difícil, e muitas vezes quase intangível, não temos o direito de perdê-lo por causa de frivolidade e falta de cuidado. Portanto, mesmo durante certas pausas, depois das quais continuaremos o processo criador, somos obrigados a observar uma certa reticência natural em nosso comportamento, e até em nossos problemas privados. Isto se aplica tanto ao nosso trabalho quanto ao trabalho dos nossos companheiros. Não devemos interromper e desorganizar o trabalho porque estamos apressados com os nossos negócios privados; não podemos fazer brincadeiras, comentários sobre ele. Em qualquer caso, as idéias particulares de entretenimento não têm lugar na profissão de ator. Em nossa abordagem das tarefas criativas, mesmo se o tema é a brincadeira, devemos estar em estado de serenidade - podemos até dizer de "solenidade"'. Nossa terminologia de trabalho, que serve como um estímulo, não deve ser dissociada do trabalho e usada no contato privado. A terminologia de trabalho deve estar sempre associada com o trabalho. Um ato criativo desta qualidade c realizado dentro de um grupo, e, ainda que dentro de certos limites, devemos restrigir nosso egoísmo criativo. O ator não tem o direito de modelar seu companheiro, a fim de ficar mais habilitado para maiores possibilidades em sua representação. Nem tem o direito de corrigir o companheiro, sem ser autorizado pelo líder do trabalho. Elementos íntimos e drásticos no trabalho dos outros são intocáveis, e não devem ser comentados na ausência deles. Os conflitos privados, disputas, afetos, animosidades são inevitáveis em qualquer agrupamento humano. É nosso dever para com a criação não deixar que deformem e envileçam o nosso processo de trabalho. Somos obrigados a abrir-nos até para com um inimigo.

VI Já foi mencionado diversas vezes, mas jamais podemos acentuar e explicar demasiadamente o fato de que não devemos explorar privadamente nada que se relacione com o ato criativo: isto é, locação, figurinos, objetos, um elemento da partitura da representação, um tema melódico ou partes do texto. Esta regra se aplica aos mínimos detalhes, e não existem exceções. Não fizemos esta regra somente para pagar tributo a uma devoção artística especial. Não estamos interessados em palavras nobres e grandiosas, mas nossos conhecimentos e experiências nos dizem que a ausência de uma estrita adesão a tais regras faz com que a partitura do ator seja destituída de suas motivações psíquicas e do seu "esplendor''.

VII A ordem e a harmonia no trabalho de cada ator são condições essenciais sem as quais o ato criativo não pode ser realizado. Aqui, exigimos consistência. Exigimos isto dos atores que vêm para este teatro, conscientemente, a fim de se lançarem em algo extremo, num tipo de transformação que exige uma resposta total de cada um de nós. Vieram testar-se em algo de muito definitivo, que vai além do significado de "teatro", e é muito mais um ato de viver e um caminho de existência. Isto talvez soe quase vago. Se tentarmos explicá-lo teoricamente, poderemos dizer que o teatro e a representação são para nós um tipo de veículo que nos permite emergir de, nós mesmos, realizar-nos. Podemos ir neste caminho até uma grande profundidade. No entanto, quem quer que fique aqui mais do que o período de teste, deve estar perfeitamente consciente de que tudo isto de que falamos pode ser menos compreendido através de palavras grandiosas do que de detalhes, exigências e rigores do trabalho, em todos os seus elementos. O indivíduo que perturbar os elementos básicos, que não respeitar, por exemplo, sua própria partitura de representação e a dos outros, destruindo sua estrutura por uma reprodução automática e entediada, é o mesmíssimo que abala a motivação altamente indefinível da nossa atividade comum. Aparentemente, são pequenos detalhes que formam o pano de fundo contra o qual se tomam as decisões fundamentais, como, por exemplo, o dever de anotar os elementos descobertos no decurso do trabalho. Não devemos confiar em nossa memória até sentirmos que a espontaneidade de nosso trabalho está sendo ameaçada, e mesmo então devemos manter um registro apenas parcial. Esta é uma regra tão básica quanto a estrita pontualidade, a imediata memorização do texto, etc. Qualquer forma de leviandade em nosso trabalho é totalmente proibida. No entanto, acontece muitas vezes que o ator tem de verificar uma cena, esboçando-a a fim de checar sua organização e os elementos de seus companheiros de ação. Mas mesmo então, ele deve seguir tudo cuidadosamente, medindo-se contra eles, a fim de compreender suas motivações. Esta é a diferença entre um esboço e um engodo. O ator deve estar sempre pronto para executar o ato criativo no momento exato determinado pelo grupo. A este respeito, sua saúde, suas condições físicas, e todos os seus problemas particulares, deixam de ser apenas uma questão pessoal. Um ato criador dessa qualidade só floresce se alimentado por um organismo vivo. Portanto, somos obrigados a cuidar diariamente do nosso corpo, a fim de estarmos sempre prontos para nossas tarefas. Não se deve dormir pouco, por causa de divertimentos particulares, e depois .vir para o trabalho cansado ou de ressaca. Não podemos estar incapazes de concentrar-nos. A regra, aqui, não exige apenas a presença compulsória de alguém no lugar de trabalho, mas a disposição física para criar.

VIII A criatividade, especialmente quando se relaciona com a representação, é de uma sinceridade sem limites, ainda que disciplinada: isto é, articulada através de signos. O criador não deve, por tanto, achar em seu material uma barreira neste sentido. Como o material do ator é o seu próprio corpo, ele deve ser treinado para obedecer, para ser flexível, para responder passivamente aos impulsos psíquicos, como se não existisse no momento da criação --'não oferecendo resistência alguma. A espontaneidade e a disciplina são os aspectos básicos do trabalho do ator, e exigem uma chave metódica. Antes de um homem decidir-se a fazer algo, deve elaborar um ponto de orientação, e depois agir de acordo com isso e de forma coerente. O ponto de orientação deve ser bastante evidente para ele, resultado de convicções naturais, observações e experiências anteriores na vida. Os fundamentos básicos deste método constituem, para o nosso grupo, este ponto de orientação. Nosso instituto é engrenado para examinar as conseqüências deste ponto, de orientação. Portanto, ninguém que vem e permanece aqui pode alegar falta de conhecimento do programa metódico do grupo. Quem quer que venha trabalhar aqui, e deseje manter distância (em relação à consciência criativa), demonstra um tipo errado de cuidado com sua própria individualidade. O significado etimológico de "individualidade" é "indivisibilidade", o que significa uma existência completa em alguma coisa: a individualidade é o verdadeiro oposto do ser pela metade. Sustentamos, portanto, que aqueles que vêm e permanecem aqui descobrem em .nosso método alga pró fundamente relacionado com eles, preparado por suas vidas e experiências. Desde que aceitem isto conscientemente, presumimos que cada uni dos participantes se sinta na obrigação de treinar criativamente e tentar formar sua própria variação inseparável dele mesmo, sua própria reorientação aberta para os riscos e pesquisas. O que nós chamamos aqui de métodos é exatamente o oposto de prescrições.

IX O ponto principal é que o ator não tente adquirir uma espécie de formulário, nem construa uma caixa de truques. Aqui não é lugar de colecionar todas as espécies de meios de expressão. A força de gravidade, em nosso trabalho, empurra o ator para um amadurecimento interior, que se expressa através de um desejo de romper barreiras, de atingir seu "cume", a totalidade. O primeiro dever do ator é aceitar o fato de que ninguém aqui deseja dar-lhe nada; em vez disto, pretendemos tirar muito dele, eliminar tudo que o mantém usualmente amarrado: sua resistência, sua reticência, sua tendência a esconder-se atrás de máscaras, .os obstáculos que seu corpo impõe ao trabalho criativo, seus costumes, e até suas usuais "boas maneiras".

X Antes do ator ser capaz de realizar um ato total, tem de cumprir um número de exigências, algumas das quais são tão sutis, tão intangíveis, que se tornam praticamente indefiníveis através de palavras. Só são compreensíveis através da aplicação prática. É mais fácil, no entanto, definir as condições sob as quais um ato total não pode ser realizado, e quais das ações do ator o tornam impossível. Este ato não pode existir se o ator está mais interessado no encanto, no sucesso pessoal, no aplauso e no salário do que na criação compreendida em seu sentido mais alto. Não pode existir se o ator o condiciona ao tamanho do seu papel, ao seu lugar no espetáculo, ao dia e tipo de platéia. Não pode haver um ato total se o ator, mesmo fora do teatro, dissipa seu impulso criativo e, como já dissemos antes, o conspurca, o bloqueia, particularmente através de compromissos incidentais ou de natureza duvidosa, ou pelo uso premeditado do ato criativo como uma maneira de favorecer sua própria carreira.

Veja o vídeo

http://www.youtube.com/watch?v=c97uQ6VSau0

Um comentário:

Reginauro disse...

Oi Júlio, estava procurando a referência bibliográfica dessas considerações de Grotowsky, se você poder me passar te agradeço.

reginaurosousa@yahoo.com.br