sábado, 23 de junho de 2007

COMO FAZER LEITURAS DRAMATIZADAS DE TEXTOS - ANITA MALUFFE

Quem já assistiu a uma leitura dramática de um texto certamente teve a impressão de que sua realização é muito simples. No entanto, para que seja uma boa leitura e realmente transmita a intenção do texto, atraia público e produza um debate posterior, é preciso que seja muito bem organizada. Aos grupos, entidades e associações que desejam realizar leituras dramáticas, tentaremos passar os pontos mais importantes para um bom resultado do evento:
Seleção de textos - Tudo começa pela seleção dos textos. Devem ser teatrais e de qualidade. Textos literários jamais produzem boas leituras. Os temas devem oferecer uma estrutura dramática e, de preferência, apresentar temáticas que interessem à comunidade. Caso sejam selecionados textos para um ciclo de leituras, é muito interessante mesclar peças de autores consagrados inéditos, nacionais e para para poder traçar parâmetros comparativos. O elo entre elas deve ser a qualidade. A Sociedade Lítero Dramática Gastao Tojeiro, além das leituras de textos inéditos de autores nacionais periodicamente tem realizado ciclos específicos, como de clássicos da dramaturgia moderna universal. Atualmente, estamos promovendo o ciclo "A comédia através dos tempos”, que até o final do ano, nas últimas segundas-feiras do mês estaremos lendo os autores mais representativos no gênero, a fim de estudar e discutir a comédia universal e seus grandes comediógrafos.

Cronograma - Se for realizado um ciclo de leituras, é importante traçar um cronograma, sejam elas apresentadas durante uma semana, um mês etc. Nossos ciclos de leituras, por exemplo, têm transcorrido de março a dezembro com cronograma para, no mínimo, seis meses de leituras.

Direção - A escolha do diretor deve ser muito cuidadosa porque dirigir leituras é muito diferente de dirigir montagens. A leitura exige do diretor uma atenção especial para que possa passar, apenas por palavras e poucos gestos, a intenção do autor. Já aconteceu de bons diretores, acostumados com efeitos especiais e montagens exuberantes, atrapalharem-se quando na direção de uma leitura pública. Nas leituras, muitas vezes as rubricas e algumas sutis adaptações são imprescindíveis para a compreensão do texto.
Elenco - Os atores não têm que ser selecionados necessariamente pelo tipo físico porque o importante não é o que se vê, mas sim o que se ouve. É quase um processo de radionovelas, em que as emoções são passadas apenas pela voz. Leituras, portanto, requerem ensaios. Somente atores muito experientes conseguem captar o texto e transmitir essa emoção numa primeira leitura. Os demais devem ensaiar, pontuar as pausas, as respirações etc.

Rubricas - Apesar de extremamente importantes na leitura e auxiliarem na compreensão do texto, as rubricas devem ser selecionadas para não interromper o ritmo da peça. Rubricas excessivas comprometem o desenvolvimento do texto. É preciso um perfeito equilíbrio.
Ritmo - Leituras devem ser ágeis, mais ágeis que a representação porque não tem movimento.
Objetos cênicos - Devem ser evitados objetos nas mãos dos atores porque como eles estão segurando o texto estes só atrapalham.

Luz e som - Uma leitura pode perfeitamente ser realizada sem efeitos de luz e som. Em nossas apresentações, os efeitos de luz são bem simples, limitando-se a poucos refletores, e o som é obtido por um gravador com amplificadores.

Programa - Quando a leitura é pública, um programinha simples feito em computador, em preto e branco: é interessante por registrar o evento. Costumamos colocar a ficha técnica da peça e um "curriculum" resumido do autor.

Leitura propriamente dita – Antes de iniciar a leitura, o ideal é fazer uma apresentação do autor, do diretor e do elenco. Se o autor é conhecido, fazer uma exposição sobre seus trabalhos, falar sobre o período no qual a peça foi escrita, qual sua importância histórica e comprometimento social, onde foi apresentada anteriormente e outras informações consideradas interessantes e enriquecedoras.

Debates - Após a leitura, os debates são importantes, principalmente quando o texto é inédito, porque apontam as falhas e oferecem ao autor a oportunidade de melhorá-lo. Nossa experiência demonstrou que o debate enriquece o universo do autor e dos participantes. Muitos dos autores, ao perceberem falhas dos textos, acabaram por reescrevê-los, e peças medianas tornaram-se peças boas que inclusive foram montadas e obtiveram sucesso comercial. Se o autor for consagrado, o debate é útil para colocar em discussão a obra, sua importância e o que ele deseja transmitir.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

TREINO DAS EMOÇÕES - TATIANA BELINKY

Eu sempre convivi com teatro, meus pais eram gente chegada a uma cultura e eu desde pequenininha conheci teatro e até estreei como atriz aos quatro anos de idade, eu era uma mosca. Nossos pais nos levavam, meu irmão e eu, para ver teatro infantil e para ópera e para opereta e para teatro adulto, teatro sempre fez parte da nossa vida. Falava-se muito de teatro, eu lia muito teatro, eu comecei a ler com quatro anos, eu lia poesia, contos, enfim, tudo o que era ligado à literatura e essas coisas. Chegamos no Brasil sem a língua. Português foi minha quarta língua, eu aprendi rapidinho. Mas não havia muita coisa para crianças, e o que havia era proibido para crianças. Nunca sonhamos uma coisa dessas na Europa. Os pais levavam as crianças para teatro, fazia parte da vida. Não precisava ser censurado ou proibido para isso ou para aquilo. Então, durante alguns anos não tive teatro aqui, a não ser brincar de teatro na escola, brincar de teatro em casa. Eu sempre escrevi. Quando eu cheguei aqui, com dez anos, tinha que contar as impressões e as coisas todas, o mundo que eu vi aqui, então eu escrevia muita carta, para avô, avó, primos, tios, além disso eu também, mesmo antes de vir pra cá, já tinha um diário. Eu brinco muito, eu não me levo muito a sério e não quero coisas solenes. Ensinar coisas é na escola. Eu quero distrair, divertir e mostrar coisas bonitas, quer dizer, com estética e ética. E brincadeira, senso de humor, é fundamental, assim como poesia é fundamental. E eu nunca me afastei disso. Eu lia muitos livros, encontrei um rapaz (Julio Gouveia, que viria a se tornar marido de Belinky e seu parceiro em teatro infanto-juvenil) que lia muitos livros, saiu um casamento que era o casamento de duas estantes. E ele também gostava muito de teatro.E nosso namoro era muita conversa, teatro, cinema, poesia. Ele também era poeta, escrevia muito bem, então sempre estive em contato com literatura, poesia e teatro, teatro lido e teatro assistido. Começamos a fazer teatro para crianças em 1948, começou como uma brincadeira, tínhamos um grupo de amadores muito bom (o TESP - Teatro-Escola São Paulo). Fizemos uma estréia extraordinária, por acaso no Teatro Municipal, com uma adaptação do Peter Pan, que o Julio escreveu. Gostaram tanto que a Secretaria de Cultura da Prefeitura nos convidou imediatamente para fazer teatro todos os fins de semana para os teatros da Prefeitura, para as crianças. Em todos os teatros que havia (e havia muitos, mas depois foram derrubados, depois foram construídos outros) a gente levava a peça nos fins de semana, começando no centro até os bairros, até lugares onde quase nem havia teatro, em cinemas, clubes. Isso foi de 48 até 51. Em 52, pediram para nós levarmos a peça que estávamos mostrando no teatro para o estúdio (para a TV), como presente de Natal para as crianças paulistanas. Depois pediram mais. Começamos um programinha de vinte minutos, chamado Fábulas Animadas, que eram fábulas russas, alemãs, francesas, brasileiras, histórias de bichos. Aí já era eu quem escrevia. Porque o Julio disse "escreva" e eu "mas eu nunca escrevi teatro". Ele disse: "mas você sabe o que é teatro, escreva!". E eu tinha lido muito teatro, assistido muito teatro. E lendo teatro, eu sabia como é que se escreve teatro, como se monta diálogo, como se dá uma rubrica, eu sabia, eu conhecia teatro. Tinha o teatro passado na TV, teleteatro. E para descobrir como é que funciona? Porque teatro é uma coisa, agora, televisão, naquele tempo, ninguém nem sabia o que era. E nós percebemos que era teatro o que nós fazíamos, mas era teatro e cinema ao mesmo tempo. A idéia nossa era promover leitura. Leitura por intermédio de teatro. Teatro é uma coisa muito boa, muito importante para a criança. Acho que escrever para criança, seja livro, seja teatro, seja o que for, ou é muito fácil ou é impossível. Ou você tem contato com criança, você tem a criança dentro de você, ou não. Forçar, impor regras, coisas assim, não fica teatro, fica aulinha chata. Criança é criança. É só lhes oferecer, lhes dar, expor a criança aos livros, expor o livro à criança, dar espetáculos bons, inteligentes, com estética e ética, sem dedo em riste, sem lição de moral. Deve ser prazer, lazer, divertimento. As crianças são muito espertas, elas entendem tudo: Molière, e até alguma coisa de Shakespeare. Romeu e Julieta não há criança que não entenda e é uma tragédia. Mas e daí? Eu tenho algumas histórias tristes, de propósito. Como dizia o Julio (Gouveia), que era psiquiatra, terapeuta, isso é o treino das emoções para a vida real. (Escrever teatro) é uma responsabilidade muito grande. Porque se você tem uma história, que é contada pelo espetáculo, e que tem um conteúdo interessante, construtivo, então, se você fizer um bom espetáculo, esteticamente bom, ele vai funcionar muito bem. Porém, se a história não for tão positiva no resultado (tem que ter todas as emoções) e for bem feita, pior. Porque aí passa uma mensagem ruim. Agora, pelo contrário, uma boa história mal representada cai no vazio. Uma boa história tem que ser bem representada. Criança quer emoção, não quer uma coisa plana, chata, de dedo em riste. É o treino das emoções. Essas coisas muito direcionadas, didáticas, deixa para a escola, porque como diversão é chato. É chato e não desenvolve o senso estético, o senso poético, o senso de humor. Para teatro eu recentemente não tenho escrito muito. Fiz umas duas ou três peças nos últimos anos. Eu escrevia furiosamente para teatro. Mas peças minhas estão sempre por aí, em cartaz. Teatro não envelhece, não é? A não ser que seja uma idéia mofada. Mas uma boa idéia não envelhece, além do que o público se substitui. Eles crescem e daí já vem outra geração.

CLOWN - FEDERICO FELLINI

O clown é como a sombra

Tenho sob os olhos, entre outras muitas, uma definição do clown feita por meu conterrâneo Alfredo Panzini, no Diccionario Moderno:
"CLOWN - palavra inglesa (pronuncia-se cláun) que quer dizer rústico, rude, torpe, indicando depois quem com artificiosa torpeza faz o público rir. É o nosso palhaço."
Mas também aqui existe a mesma miserável diferença do termo estrangeiro que enobrece a coisa. O palhaço é mais de feira e praça, o clown, de circo e palco. Um bom acrobata é um clown, isto é, quase um artista, e julgará imprópria e ofensiva a expressão palhaço. Mas clown designa também o palhaço. O próprio Carducci, defensor do vernáculo, nas prosas polêmicas de Confessioni e Bataglie, capítulo Ça ira, não desdenha a palavra.
Neste tempos de nacionalismo, que direi eu? Bem, o clown encarna os traços da criatura fantástica, que exprime o lado irracional do homem, a parte do instinto, o rebelde a contestar a ordem superior que há em cada um de nós.
É uma caricatura do homem como animal e criança, como enganado e enganador. É um espelho em que o homem se reflete de maneira grotesca, deformada, e vê a sua imagem torpe. É a sombra.
O clown sempre existirá. Pois está fora de cogitação indagar se a sombra morreu, se a sombra morre.
Para que ela morra, o sol tem de estar a pique sobre a cabeça. A sombra desaparece e o homem, inteiramente iluminado, perde seus lados caricaturescos, grotescos, disformes. Diante duma criatura tão realizada, o clown, entendido no aspeto disforme, perderia a razão de existir. O clown, é evidente, não teria sumido, apenas seria assimilado. Noutras palavras, o irracional, o infantil, o instintivo já não seriam vistos com o olhar deformador que os torna informes.
Por acaso São Francisco não definiu a si mesmo como jogral de Deus?
Lao Tsé afirmava: "Quando produzas em pensamento, te ri dele."


O branco e o augusto

Quando digo o clown, penso no augusto. Com efeito, as duas figuras são o clown branco e o augusto. O primeiro é a elegância, a graça, a harmonia, a inteligência, a lucidez, que se propõem de forma moralista, como as situações ideais, únicas, as divindades indiscutíveis. Eis que em seguida surge o aspeto negativo da questão. Pois dessa forma o clown branco se converte em Mãe, Pai, Professor, Artista, o Belo, em suma, no que se deve fazer.
Então o augusto, que devia sucumbir ao encanto dessas perfeições, se não fossem ostentadas com tanto rigor, se rebela. Vê as lantejoulas cintilantes, mas a vaidade com que são apresentadas as torna inalcançáveis. O augusto, que é a criança que faz sujeira em cima, se revolta ante tanta perfeição, se embebeda, rola no chão e na alma, numa rebeldia perpétua.
Essa é a luta entre o orgulhoso culto da razão, onde o estético é proposto de forma despótica, e o instinto, a liberdade do instinto.
O clown branco e o augusto são a professora e o menino, a mãe e o filho arteiro, e até se podia dizer que o anjo com a espada flamejante e o pecador. São, em suma, duas atitudes psicológicas do homem, o impulso para cima e o impulso para baixo, divididos, separados.
O filme [I Clowns] termina com as duas figuras se encontrando e desaparecendo juntas. Por que comove essa situação? Porque as duas figuras encarnam um mito que está dentro de cada um de nós - a reconciliação dos opostos, a unidade do ser.
A dose de dor que existe na guerra contínua entre o clown branco e o augusto não se deve às músicas nem a nada parecido, mas ao fato de presenciarmos a algo que se liga à nossa própria incapacidade de conciliar as duas figuras. Com efeito, quanto mais procures obrigar o augusto a tocar violino, mais dará soprinhos com o trombone. O clown branco ainda pretenderá que o augusto seja elegante. Mas quanto mais autoritária seja essa intenção, mais o outro se mostrará mal e desajeitado.
É o apólogo de uma educação que procura pôr a vida em termos ideais e abstratos. Mas Lao Tsé dizia com acerto: Quando produzas um pensamento (= clown branco), te ri dele (=clown augusto).


Outra versão do par

Neste ponto, também podia citar a famosa antítese popular chinesa entre ying e yang, o frio e o sol, a fêmea e o macho, todos os possíveis contrastes. Podia-se falar de Hegel e da dialética, acrescentar que os augustos são, mais justamente, uma imagem subproletária do pátio dos milagres, com desnutridos, disformes, marginais, capazes talvez de revoltas, não de revoluções. É provável que o povo sempre os tenha tratado com confiança por causa de sua condição miserável, sentindo-se familiar ao abismo.
Os Fratellini foram os que introduziram um terceiro personagem, o "contre-pitre", parecido ao augusto, mas que se aliava ao patrão. Era o vigarista de rua, o espião, alcagüete da polícia, o liberado a se mover nas duas zonas, a meio caminho da autoridade e do delito.
Com exceção de François Fratellini, que fazia um aéreo clown branco, cheio de graça e amabilidade, incapaz de usar o tom acre da gozação para um mais fraco, todos os clowns brancos eram homens muito duros. Diz-se que Antonet, um afamado clown branco, fora de cena nunca dirigiu a palavra a Beby, que era o seu augusto. O personagem influenciava o homem e vice-versa. Uma das regras do jogo é que o clown branco tem de ser malvado. Ele dá bofetadas.
O augusto: - Tenho sede.
O clown branco: - Tem dinheiro?
O augusto: - Não.
O clown branco: - Então não tem sede.
Outra tendência do clown branco é explorar o augusto, não apenas como objeto de burla, mas como serviçal. Neste ponto, é característico este início: - Não tens que fazer nada, eu faço tudo. - E o clown branco manda o augusto pegar as cadeiras, pondo-lhe a fela sob o traseiro.
O clown branco é um burguês, que de entrada procura surpreender com sua aparência de rico, poderoso, maravilhoso. O rosto é branco, espectral, franze as sobrancelhas, a boca é assinalada por um só traço, duro, antipático, frio, desigual. Os clowns brancos sempre competiram para ficar com o traje mais luxuoso na luta dos figurinos. Célebre foi Theodore, que possuía uma roupa para cada dia do ano.
O augusto, pelo contrário, faz um tipo único que não muda nem pode mudar de roupa. É o mendigo, o menino, o esfarrapado...
A família burguesa é uma junta de clowns brancos, em que a criança se vê relegada à condição de augusto. A mãe diz: Não faças isso, não faças aquilo... Quando se convidam os vizinhos e se pede à criança que diga uma poesia - Mostra a esses senhores como... - é uma típica situação de circo.


Ser augusto é bom para a saúde


O clown branco assusta as crianças por representar o dever ou, empregando uma palavra na moda, a repressão.
A criança se identifica de saída com o augusto, na medida em que esse se parece com um patinho feio ou um cachorro e é maltratado, e por isso quebra os pratos, se retorce no chão, se atira baldes d'água no rosto. É o que a criança gostaria de fazer e os clowns brancos, os adultos, a mãe, a tia, impedem que faça.
No circo, através do augusto, a criança pode imaginar que faz tudo o que está proibido, se vestir de mulher, armar surpresas, gritas, dizer em voz alta o que pensa.
Aqui ninguém te repreende. Pelo contrário, te aplaudem.

(...)

Minha cidadezinha se transforma num toldo

A chegada do circo durante a noite, na primeira vez que o vi, ainda criança, teve o cunho de uma aparição. Um mundo novo, não precedido por nada. Na noite anterior não existia e, na manhã seguinte, ali estava, diante da minha casa.
De saída, pensei se tratar de um barco desproporcional. Logo a invasão, pois foi isso, uma invasão, estava ligada com algo de marinho, uma pequena tribo pirata.
Então, além do medo, o fascínio pelo clown, surgido desse clima marinho, foi definitivo.
Ao clown principal, Pierino, vi na pequena fonte, no dia seguinte à estréia. Poder tocá-lo, ser ele!
Totó, seu irmão, era um clown branco pobre. Trabalhava com uma camisa, uma gravata e umas calças de fustão.
Fazer rir me pareceu algo extraordinário, uma sorte, um privilégio.
No espetáculo de domingo à tarde, sem o toldo, perto da cadeia, os presidiários gritavam atrás das grades. Totó se dirigiu duas vezes a eles. Como um clown branco, fazia outros augustos infelizes.
Daquele momento em diante, minha cidade se transformou insensivelmente num grande toldo. Sob esse estavam os augustos, junto com o prefeito e o chefe fascista local vestidos de clowns brancos.
A insatisfação que os clowns brancos traziam, também se podia achar em figuras dementes da cidade, sobretudo os augustos, mais que os clowns brancos. Essas figuras eram lembradas em casa como bichos-papões. "Se não comes o espinafre, vais ficar como o Giudizio" - dizia minha mãe.
Giudizio era justamente um augusto de circo. Um capote militar cinco ou seis vezes maior que o corpo, sapatos de borracha branca até no inverno, uma manta de cavalo nos ombros. Mas possuía sua dignidade, como o mais esfarrapado dos palhaços. Fitava um Isotta Fraschini resplendente e, com uma bagana nos lábios presa por um alfinete, afirmava: "Nem de presente, ficaria com ele."
Mas o clown branco, com seu encanto lunar, a elegância noturna, espectral, lembrava a fria autoridade de algumas monjas diretoras de asilos; ou a certos fascistas pretenciosos, com as brilhantes sedas negras, os alamares dourados, o rebenque (como a pazinha do clown), os capotões, o fez e os adornos militares, homens ainda jovens com os rostos pálidos dos capangas, dos notívagos.

(...)

O jogo do clown branco e do augusto

O mundo, não só minha cidade, está povoado de clowns.
Quando estive em Paris para este filme, imaginei uma seqüência, que depois não rodei, em que, andando de táxi, de tanto falar nos clowns, podia-se vê-los na rua. Velhas ridículas com chapéus absurdos, mulheres com sacolas de plástico na cabeça para se proteger da chuva, chapéus e casacos que encolheram, homens de negócios com pastas típicas e um bispo, de aspeto embalsamado, sentado num auto junto ao nosso.
Se me imagino um clown, creio que sou um augusto. Mas também um clown branco ou, talvez, o diretor do circo. O médico de loucos que, por sua vez, enlouqueceu.
Continuemos a prova. Gadda era um belo augusto. Mas Piovene é um clown branco. Moravia, um augusto que desejaria ser branco. Melhor, é um Monsier Loyale, o diretor do circo, procurando conciliar as duas tendências e se manter num terreno objetivo, imparcial. Pasolini é um clown branco do tipo engraçado e sabichão. Antonioni é um augusto desses silenciosos, murchos, tristes. Parise pode ser tudo, um augusto mendigo, sempre meio bêbado, e também um clown branco impertinente, acerado, misógino, dos que esbofeteiam o augusto sem mesmo lhe dar uma explicação.
Picasso? Um augusto triunfal, presunçoso, sem complexos, que sabe fazer tudo e no fim é quem vence o clown branco. Einstein, um augusto sonhador, encantado, que não fala, mas no último instante tira, cândido, do bolso a solução do enigma proposto pelo atilado clown branco. Visconti, um clown branco de grande autoridade, cujo faustoso traje impressiona. Hitler, um clown branco. Mussolini, um augusto. Pacelli, um clown branco. Roncalli, um augusto. Freud, um clown branco. Jung, um augusto.
O jogo é tão certo que, se te vês por acaso ante um clown branco, tendes a ser um augusto, e vice-versa.
O chefe de produção da minha fita era um clown branco. Assim, os outros no convertíamos em augustos. Apenas a aparição de um clown branco mais ameaçador, o fascista, nos transformava também em clowns brancos, desde o momento em que lhe respondíamos, disciplinados, com a saudação romana.
Apenas a destrambelhada aparição de Giovannone, o augusto que assustava as camponesas lhes mostrando o membro como uma lebre morta, surpreso de conviver com esse inquilino que aceitava, nos mudava em clowns brancos quando lhe dizíamos: "Mas o que estás fazendo, Giovannone?"
Até na missa essa relação tinha lugar. Acontecia entre o sacerdote e alguns sacristães, que andavam entre os bancos da igreja interrrompendo o rito, com olhos apagados e alcoolizados, a pedir esmola.

(1) Este texto é um excerto do comentário que fez Fellini a seu filme I Clowns, feito para a televisão em 1970.

CARTA AO ATOR D.

Freqüentemente eu estive tocado pela ausência de seriedade no teu trabalho. O que não é falta de concentração ou boa vontade da tua parte. Mas que se exprime por duas atitudes. Primeiro de tudo, tem-se a impressão que teus atos não são ditados por uma convicção interior ou por uma necessidade inelutável que se manifestaria por exemplo na execução de um exercício, de uma improvisação ou de uma cena. Tu podes trabalhar estando concentrado, sem poupar-se, teu gestos podem ser tecnicamente precisos, mesmo assim tal jogo não parece menos vazio e eu não creio no que fazes. Teu corpo não diz se não uma coisa: "eu obedeço a uma ordem exterior". Os nervos, o cérebro, a coluna vertebral não estão engajados e só tua epiderme gostaria de fazer acreditar que tudo isso é vital para ti. Tu não experimentas por ti mesmo a importância do que queres fazer os espectadores acreditarem. Como podes assim fazer compreender ou admitir que o teatro é o lugar onde as convenções e os entraves sociais devem desaparecer a dar lugar a uma comunicação franca e absoluta. Tu, representante da coletividade, tu estás num lugar onde se manifesta a necessidade de cada um se sentir aceito, onde as humilhações, as experiências degradantes pelas quais tu passaste, teu cinismo, que é uma atitude de auto-defesa, teu otimismo, que é mesmo a irresponsabilidade e o teu sentimento de culpa aparecem ao lado da tua necessidade de amar, da tua nostalgia de um paraíso perdido procurado talvez no passado, na tua infância, no calor de alguém que te fez esquecer a angústia, num tempo que tu não te colocavas questões e onde exigias uma resposta. Todos os seres presentes nesta sala são tocados se, durante a representação, tu efetuas um retorno às tuas raízes, em direção a essas experiências humanas comuns que permanecem escondidas: verdadeiro laço humano que te liga aos outros. A segunda tendência que vejo em ti é o temor de encarar toda a seriedade desse trabalho: tu experimentas algo como uma necessidade de rir, de fazer pouco, de comentar com o que tu e teus camaradas executam. É como se quisesses fugir a responsabilidade que sentes em relação ao próprio trabalho e que consiste em estabelecer uma comunicação com os outros homens e assumir as consequências do que revelas. Tu tens medo da seriedade desse trabalho, de estar à margem do que é permitido: tem medo que isso seja sinônimo de fanatismo, de aborrecimentos ou de isolamento profissional. Mas num mundo onde os homens nos rodeiam não acreditam mais em nada ou fingem que creêm para ficarem tranqüilos, aquele que esmiúça dentro dele mesmo para se colocar questões sobre sua condição, sobre sua falta de ideais, sobre sua necessidade de vida espiritual, é tomado por um fanático ou por um ingênuo. Num mundo onde trapacear é a norma em vigor, aquele que procura a sua verdade é tomado por hipócrita. Acredito que não refletiste jamais sobre o fato de que tudo isso que liberas, dás forma ou completa no teu trabalho, é uma manisfestação de vida e merece ser olhada com respeito. Teus atos frente a coletividade de espectadores devem ser habitados da mesma força que marca a lâmina incandescente do carrasco ou daquela voz ardente do Sinai. Somente então teus atos poderão continuar a viver no espírito e no interior do espectador com aquela necessidade que provoca conseqüências imprevisíveis. Quando Dullin se encontrava no seu leito de morte, o rosto dele se contorcia, deformando-se segundo as máscaras dos grandes papéis que tinha vivido: Smerdiakov, Volpone, Richard III. Não era somente o homem Dullin que morria, mas também o ator e todas as etapas de sua vida. Se eu perguntar porque tu te tornaste ator, me responderás que queres te exprimir e te realizar. Mas o que significa realizar-se? Quem se realiza? O chefe de escritório Hansen que vive sua existência respeitável, sem aborrecimentos, jamais atormentado por questões que continuam sem resposta? Ou o romântico Gauguin que, após ter rompido com as normas socias, terminou sua existência na miséria de um pobre vilarejo polinesiano, Noa-Noa, onde ele acreditava ter reencontrado a liberdade perdida? Numa época em que a fé religiosa é vista como uma neurose, falta-nos a escala com a qual medir o sucesso ou fracasso da nossa vida. Quaisquer que tenham sido as motivações pessoais e não percebidas que te troxeram ao teatro, agora que tu entraste nessa profissão, deves encontrar um sentido que ultrapasse tua própria pessoa e que te situe socialmente frente aos outros. Não se pode preparar uma vida nova senão nas catacumbas. Aí está o lugar daqueles que, em nossa época, procuram um engajamento espiritual e não têm medo do difícil confronto. Isto supõe coragem: a maior parte das pessoas não têm necessidade de nós. Teu trabalho é uma forma de meditação social sobre ti mesmo, sobre a tua condição de homem numa sociedade e sobre os acontecimentos que tocam no mais profundo de ti através das experiências do nosso tempo. Cada apresentação nesse teatro precário que choca o pragmatismo cotidiano, pode ser a última, tu deves considerá-la como tal, como tua possibilidade de te tocar, dirigindo aos outros e conta pestada de teus atos, teu testamento. Se o fato de ser ator significa tudo isso para ti, então um novo teatro vai nascer, uma nova maneira de apreender a tradição, uma nova técnica. Uma relação nova se estabelecerá entre ti mesmo e os homens que à noite vêm te ver, porque eles têm necessidade de ti. Odin Theatret, desconhecido no Brasil, é radicado na Dinamarca e formado por atores de vários países. É considerado atualmente um dos grupos mais importantes do teatro ocidental, tanto pela coerência de proposta, onde teatro e modo de vida se confundem, como pelo rigor do seu método de trabalho, o que se reflete em suas apresentação. Sendo um grupo de teatro "radical", suas idéias e posturas são freqüentemente questionadas como sectárias, místicas etc... É indiscutível, contudo, sua contribuição ao moderno teatro mundial.