sábado, 10 de fevereiro de 2007

GABRIELA RABELO - A DIREÇÃO EM TEATRO

Mário de Andrade equacionou lindamente a diferença entre os aspectos técnicos e os artísticos na criação da obra de arte: de um lado há o artesanato - que é o aspecto mais técnico da obra de arte -, que não só é ensinável como indispensável para quem se pretenda um artista bom. É impossível ser um artista bom sem saber manejar os instrumentos de que cada arte se serve, sem ser um bom artesão no seu ofício. Mas de outro lado há um aspecto da arte que é trágico porque é imprescindível desenvolver e não dá para ser ensinado: é a resposta individual do artista às questões que cada trabalho seu lhe coloca, Isso posto, fica evidente que - não há uma receita de como dirigir uma peça de teatro. Mas, se não há receita, há algumas leis gerais do teatro a que é imperioso obedecer. Neste artigo vamos falar um pouquinho de algumas delas. Desde já fica também estabelecido que aqui os termos diretor e encenador se equivalerão, embora se saiba que o termo encenador, na forma como é concebido em nossos dias, seja de origem recente. Mas a noção de encenação, entendida como a reunião numa só cabeça e numa só mão de todos os elementos constitutivos do espetáculo, é tão antiga quanto o próprio teatro, nasceu com ele. Foi com o desfiar dos anos que mudaram o papel e a importância do teatro na sociedade, e conseqüentemente as atribuições do encenador. Se verdade que em tempos passados a própria sociedade ajudava a "regular" a cena, em nossos tempos tão convulsionados, com uma multiplicidade de visões e perspectivas muito incertas, cabe ao encenador, em sua opinião individual e intransferível - porque formada a partir de sua história pessoal -, ser o regulador, o mediador entre a obra inicial (seja esta um texto já previamente escrito, um roteiro ou uma simples idéia que tomará corpo no decorrer dos ensaios) e o público. O nosso teatro hoje já não é mais um depositário ou o anunciador de 'Verdades humanistas e simbólicas válidas para todos"; nem é mais um reflexo de um modo análogo ao nosso, a ponto de nos enganar. Hoje em dia, o teatro é muito mais um campo de experimentação da intrincada vida que nos espera "lá fora", uma "propedêutica da realidade", como diz Bernard Dort. É preciso ainda salientar que a tarefa da direção mudará bastante dependendo do quadro onde o espetáculo teatral será criado: dentro de uma escola (e portanto perseguindo antes de tudo objetivos pedagógicos), por um grupo amador ou para enfrentar o mercado. A mudança de objetivos levará a mudanças de táticas. Mas os princípios que as nortearão serão os mesmos, pois se trata sempre da utilização da mesma linguagem: a teatral, Caberá ao diretor, independentemente da finalidade do seu trabalho:

l - ter uma visão geral da obra a ser encenada;
2 - coordenar, a partir dessa visão, o trabalho de todos os co-criadores do espetáculo (atores, cenógrafos, figurinista, iluminador, cenotécnico etc.).

Mas como o diretor adquire essa visão? Os caminhos são muitos, mas, inevitavelmente, terão que passar por:

a) leitura exaustiva da obra, de fora pra dentro e de dentro pra fora. Ou seja: ler a obra tentando "decifrar" o texto que está diante de seus olhos e também o que não está escrito mas que é sugerido. A leitura desse texto "submerso" é refeita durante todo o processo de ensaio, confirmando-se ou negando-se as opiniões anteriores. Tal leitura é feita isoladamente em conjunto, quer dizer, o diretor a faz sozinho, em sua casa, para se preparar e também preparar a leitura que será feita com todos os participantes do espetáculo. E assim, nesse vai e volta, a concepção do espetáculo irá sendo elaborada. É ele, o encenador, que deve conduzir o processo de discussão sobre o texto de forma aberta e democrática. Mas não pode nunca perder de vista a sua função: muitas vezes encontramos atores que executam um trabalho bastante razoável e que, no entanto, têm uma visão não muito abrangente da peça em que estão trabalhando. Se isso é possível para o ator, é totalmente impossível para o diretor, porque o trabalho de ambos é de natureza diferente: no do ator há uma grande dose de intuição (o que não dispensa o trabalho analítico via razão). Ele treina, inconsciente ou conscientemente essa forma de percepção. O diretor, não: seu trabalho parte sobretudo da apreensão consciente dos objetivos que quer alcançar e de uma atenção cuidadosa a tudo o que vem das pessoas envolvidas no trabalho. O diretor treina a percepção mais fina, mais sutil, aquela que denota nos pequenos detalhes, grandes possibilidades: mais do que a intuição é essa percepção que ele desenvolve. Não estou com isso querendo eliminar de todo a intuição como fonte de inspiração para o diretor. Estou apenas tentando delimitá-la. E a leitura tem também de ser de dentro para fora, ou seja, o diretor precisa tentar fazer seu (de todos) o texto lido, apoderando-se dele, procurando revelar, como se fosse o seu próprio autor, os caminhos que o mistério da criação percorreu, quer dizer, tornando consciente a parte inconsciente da criação artística (mas sempre tendo presente que esse é um projeto inesgotável. A arte - como o ser humano que a cria - habita o território do infinito, do irrevelado). Cada diretor usa um método próprio para conduzir essa fase de leitura: há os que pegam o texto e fazem leituras com os atores caminhando pelo palco, sem, no entanto, fixar os papéis. Cada dia é um ator diferente que lê o papel de x ou de y, Com isso, há uma multiplicidade de percepções das personagens e das relações que as determinam. Há os que se sentam junto com todo o elenco ao redor de uma mesa para que a peça seja lida, exaustivamente discutida e analisada, redividida em cenas e sequências que serão determinadas pelas análises de textos feitas. Há os que fazem uma leitura por tabela, ou seja, propondo jogos ou leituras paralelas ao tema do texto, como que preparando o terreno para o plantio definitivo da peca. Só então começam a le-la, mas ai já dentro do seu universo. Há os que misturam tudo isso. E ainda há muitos outros métodos. O que há de comum em todos eles e a procura de assenhoramento da peca, esse tomar posse física e espiritualmente do texto ou tema que será transposto para o palco.

b) Estudo do autor: o que significa essa obra dentro da obra geral do autor? E um tema reiterativo, o da peça a ser montada? Se sim, onde mais o autor tratou desse tema? Sob que óptica? Existe mais de uma versão do texto? Quais as mudanças efetuadas?

c) estudo do próprio tema: de que trata a peça? Da loucura? Da escravidão? Do amor inatingível? Estudar essas questões procurando ter uma opinião própria sobre elas. Comparar sua opinião à do autor da peça.

d) estudo do período histórico em que viveu o autor: se for contemporâneo, ter-se-á a facilidade de compartilhar com ele o tempo histórico. Mas sua visão de mundo, seus objetivos em teatro, serão os mesmos (não precisam ser, evidentemente)? Se for um autor de tempos passados, procurar saber o máximo possível sobre sua época para tentar decifrar o sentido que a obra que está sendo estudada possuía na época em que foi escrita. Isso não significa que devamos nos preocupar com a reconstituição histórica acima de tudo. O passado interessa, sobretudo porque nos explica. Afinal, somos resultado (não mecânico, evidentemente) dos tempos que nos antecederam.

Vem agora a "parte 2" da direção teatral: a colocação em cena.

Para alguns diretores, a ocupação do espaço segue paralela ao entendimento da peça: como foi dito anteriormente, os atores apreendem a peça deslocando-se pelo espaço cênico que vai sendo construído e ocupado junto coma descoberta da peça. Outros encenadores dividem claramente a montagem em duas fases:

l) entendimento da peça (ou roteiro, ou tema);
2) colocação em cena.

Também aqui não há regras estabelecidas. Pessoalmente acho que o melhor é ocupar a cena obedecendo à lógica da ação (do jeito mais stanislavskiano que se puder entender a lógica da ação). E como se obedece a essa lógica? Uma vez entendidas peça, cena, personagens, é deixar que os ator se movimentem livremente pelo palco a partir desse entendimento, sem nenhum preocupação de compor visualmente a cena. Essa tarefa caberá ao diretor, que estando fora do espaço cénico e partindo da mesma compreensão da peça, cena e personagem, irá interferindo no trabalho dizendo: "Fulano, se você se afastar, em vez de se aproximar, esta cena ficará mais clara. " ." Beltrano, experimente repetir a cena com a mesma intensidade, só que sem gritar e sem andar tanto pelo palco." etc. etc. Nessa fase o diretor é como um obstetra: depois de gerido, o espetáculo tem de ser dado literalmente à luz, É quando mais do que em qualquer outra ocasião, todas as antenas do diretor têm de ficar ligadas: tudo o que acontece é importante. E tem de avançar com grande acuidade e delicadeza. Não se pode esquecer que o ator é um artista extremamente vulnerável, Ele está lá no palco, com sua alma exposta. Cada personagem, com cada espetáculo, assemelha-se a um bebe que chega ao mundo. E o encenador tem de saber acolher essa criança, deixando-a forte, sadia, sem traumas, nas mãos do ator/mãe. Porque a criança/espetáculo (e o diretor não pode nunca esquecer isto: a natureza do trabalho teatral é coletiva) e fruto da união de todas as pessoas - artistas e técnicos - que se empenharam para seu nascimento. E quem embala o bebe, a luz dos refletores ou do sol, é o ator.