segunda-feira, 2 de julho de 2007

TADEUZ KANTOR (1915-1990) - Michal Kobialka

Tadeusz Kantor, artista plástico polonês, teórico e diretor teatral, fundador (com Maria Jarema) da companhia teatral CRICOT 2 (1995), nasceu em Wielopole, Polônia. Foi educado em Tarnóvia e Cracóvia. Quando estudou pintura e cenografia na Academia de Belas Artes de Cracóvia (1933 -1939), Kantor conheceu o simbolismo, o construtivismo e Bauhaus.
Em 1938, ele fundou o Teatro Ephemeric (Mecânico), onde apresentou A Morte de Tintagiles de Maurice Materlinck. Em 1942, com um grupo de pintores jovens, Kantor organizou o Teatro Independente, clandestino e experimental, durante a ocupação nazista, onde ele dirigiu Balladyna de Juliusz Slowacki (1942) e O Retorno de Ulisses de Stanislow Wyspianski. ]
Como citado por Kantor em sua “Lição 1” de As Lições Milanesas, esta produção foi fundamental para a elaboração dos seus conceitos sobre espaço autônomo de performance, objeto pobre, ator-objeto, e “realidade da vida” (“realidade do mais baixo escalão”): 1944. Cracóvia. Teatro Clandestino. O Retorno de Ulisses do Sítio de Estalingrado.
O abstracionismo, que existiu na Polônia até o inicio da II Guerra Mundial, desapareceu no período do genocídio em massa. [...]A arte perdeu seu poder.A re-produção estética perdeu seu poder.O ódio de um ser humano apoiado por outras bestas humanas amaldiçoou a a r t e. Só tínhamos força para agarrar o que estava mais próximo, O Objeto Real e chamá-lo de obra de arte! No entanto, era um objeto p o b r e, incapaz de realizar qualquer função na vida real, um objeto a ser descartado. Um objeto que foi desprovido de uma função vital que o salvaria. Um objeto despojado, sem função, a r t í s t i c o! [...]Uma cadeira de cozinha …Um objeto, que foi esvaziado de qualquer função vital, veio à tona pela primeira vez na história. Este objeto era vazio.Tinha que justificar sua existência a si mesmo e não às coisas que o cercavam e lhe eram estranhas.[E o fazendo, o objeto] revelava sua própria existência. E quando sua função era imposta a ele, essa ação era vista como se isso tivesse acontecido pela primeira vez desde o momento da criação.Em O Retorno de Ulisses, Penélope, sentada em uma cadeira de cozinha, representou o ato de estar “sentada” como um ato humano acontecendo pela primeira vez. O objeto [físico] adquiriu sua função histórica, filosófica e a r t í s t i c a !
1 Os experimentos de 1944 e 1963 fecham o período no qual Kantor questiona as convenções de criação ou exibição artística vigentes, e, devido à experiência da II Guerra Mundial, modifica a função de uma vanguarda artística numa sociedade. Estes experimentos colocam em xeque as narrativas históricas oficiais que encontram um modo efetivo de desprezar o questionamento de Adorno sobre o que significa representar depois de Auschwitz. Assim, por exemplo, em O Retorno de Ulisses, em 1944, “Ulisses se recusa categoricamente a ser apenas uma imagem, uma representação. [...] em tempos de loucura gerada pelos homens, em tempos de guerra, a morte e suas trupes tenebrosas, que se recusaram a ser impedidas pelos sentidos humanos e racionais, iniciando e confundindo-se com a esfera da vida”.
2. A emoção do drama e seu caráter mitológico foram atirados e fundidos com a vida contemporânea. A peça foi representada não em um teatro, mas sim em uma sala que “estava destruída. Havia guerra e havia milhares de salas assim. Todas se pareciam: tijolos sem reboco por trás de uma camada de tinta, gesso caindo do teto, piso faltando tacos, pacotes abandonados cobertos de poeira, entulho espalhado por todos os lados, pranchas remanescentes de um convés de navio foram dispensadas ao horizonte dessa decoração, um tambor de revólver apoiado num monte de pedaços de ferro, um megafone militar pendurado por um cabo de aço enferrujado. A figura inclinada de um soldado com capacete usando um sobretudo surrado [de um soldado alemão] em pé contra a parede. Nesse dia, seis de junho de 1944, ele se tornou parte dessa sala".
3. Em 1963, os objetos exibidos tornaram irrelevante qualquer tentativa classificatória de localizá-los no espaço ou seqüência temporal sistematizando-os em uma unificadora totalidade. Ao contrário, os objetos rearticularam suas funções nas relações, que aconteceram acidentalmente, e que não poderiam ser previstas por nenhuma norma – “a ditadura da utilidade” é vencida; o objeto que estava despido da segurança da sua estrutura original a que pertence, “começa uma discreta relação possível com seus semelhantes”.
4 Para conseguir isso, Kantor explora o processo de incorporação na atividade artística de objetos encontrados, ou seja, os objetos, os eventos e o ambiente. Esta realidade não subjugada à modelagem artística ou necessidades formais. Não funciona como modelo, que existe anterior à obra de arte, e, conseqüentemente, não corresponde a nenhuma convenção de representação. Conforme Kantor observou: Realidade pode apenas ser “u s a d a”“Usada” é o único termo apropriado fazer uso da realidadena a r t e significauma apropriação da realidade. [...}Durante esse processoa realidade t r a n s g r i d e sua própria b a r r e i r a e caminha na direção do “i m p o s s í v e l" A realidade apropriada contem em si mesma objetos reaissituaçõese um ambiente descritopelo tempo e lugar.Suas r e a ç õ e s entre si,as i n t e r c o n e x õ e s entres eles a apropriação g e s t u a l do (como se, encantando a realidade) r i t u a l são substituídos pelo processo de modelagem que está fora de questão aqui.
5.A estratégia da apropriação da realidade significa o processo de arrancar os objetos da realidade para explorar sua qualidade de objeto no meio onde eles adquiriram suas funções na relação com outros elementos colocados nesse espaço.
6. Portanto, os objetos são descaracterizados e não conceituais no entender de Adorno sobre os princípios que regem as obras de arte autônomas.
7. O foco está em suas estruturas inerentes, ao invés de na totalidade dos efeitos; num processo manual de significação, ao invés da soberania visual do olhar produzindo a imagem representacional num espaço clássico, tridimensional; nos processos não-representativo, não-ilustrativo, e não-figurativo, nos quais o olhar não desempenha uma função visual de ordenação, mas segue as relações que organizam seus campos de percepção; no irrepresentável na representação em si mesma; naquilo que “recusa o consolo das formas corretas, recusa o consenso do gosto permitindo uma experiência comum de nostalgia pelo impossível, e questiona novas apresentações.”
8 Levando em consideração a importância e a direção das transformações na arte em geral no século XX e no Dadaísmo, Surrealismo, Abstracionismo, Arte Informal em particular, Kantor enfatizou sua partida pelas formas geométricas ou abstratas, que tinham que eliminar ou transcender os dois eventos históricos, como a I e II Guerras Mundiais, co-modificação das artes, em direção à realidade degradada ou à realidade do mais baixo escalão, destituída de seus aspectos marcantes pelos eventos da guerra. A realidade degradada ou a “realidade do mais baixo escalão” não funciona como uma estratégia artística, mas sim como uma indução tática, que permitirá ao artista ser “surpreendido, acidentalmente ou de forma inesperada, pela esfera desconhecida e ignorada da realidade que intervem na arte.”
9 Na produção de Kantor de O Polvo (1956) de Stanislaw Ignacy Witkiewicz (Wtkacy´s), ambiente, objeto e atores foram engajados num processo complexo de constituição de formações espaciais diversas criando choques, escândalos e tensões com o objetivo de desbloquear a imaginação e esmagar a casca empregnável do drama. Isto quer dizer, ambientes, objetos e atores, e mais seus atributos, não ilustravam, interpretavam ou teciam comentários sobre o drama, mais que isso, eles criaram um sistema de relações para depreciar o valor da realidade por explorar seu aspecto cotidiano desconhecido, escondido. Esta exploração foi diferente em momentos distintos nos anos 60. No “Teatro Informal”(1961), Kantor explorou a matéria [um aspecto desconhecido da REALIDADE ou do seu estado elementar], que não precisa obedecer as leis da realidade, está sempre mudando e fluindo;escapa da escravidão das definições racionais, faz todas as tentativas para comprimi-lo em uma forma sólida ridícula, desnecessária e vã;é destruidora perene de todas as formas,e nada mais que uma manifestação,é acessível apenas pelas forças de destruição, por vontade e risco da COINCIDÊNCIA,e por uma ação rápida e violenta.
10 No “Teatro Zero” (1963) Kantor lidou com objetos marginalizados e emoções para desmembrar o desenvolvimento da trama lógica, construindo cenas por referência textual para revelar a individualidade de um ator descartando a ilusão: A técnica tradicional de desenvolver trama fez uso da vida humana como um trampolim para se impulsionar em direção ao reino das paixões crescentes e intensas do heroísmo, do conflito e das reações violentas. Quando surgiu pela primeira vez, essa idéia de “crescer” significou a expansão trágica do homem, ou uma batalha heróica para transcender as dimensões humanas e seus destinos. Com o passar do tempo, se transformou em um mero show, exigindo potentes elementos de espetáculo e a aceitação da ilusão violenta e irresponsável – figuras convincentes e uma procriação impensada de formas.
11 No “Teatro do Happening” (1967), Kantor deu atenção à verdade cotidiana e sua potencialidade para ser objeto não-conceitual médio ou “objeto-encontrado”, objeto “que fora encontrado: um objeto cuja estrutura [era] densa e sua identidade [era] delineada por sua própria ficção, ilusão, e dimensão físico-psicológica.”
12 Fazendo uso de objetos pobres, matéria, objetos marginalizados, objetos deteriorados, que são colocados dentro de uma estrutura aberta de realidade fluida, dinâmica, Kantor modificou um modelo de cultura ou atividade artística baseado na restrição, negação, transformação da imagem/objeto. Os experimentos teatrais de Kantor, que, no período de 1965 até 1969, tomaram forma de Happenings, mais adiante desenvolveram estes conceitos.
13 O manifesto “O Teatro da Morte”(1975) significou uma mudança nas pesquisas de Kantor. As produções, que seguiram, exploraram as noções de memória, história, mito, criação artística, e a função do artista como cronista do século XX: A Classe Morta (1975: a exploração de memórias acontecia num espaço ante uma barreira intransponível); Wielopole, Wielopole (1980 : introdução da idéia de espaço da memória); Que Morram os Artistas (1985: introdução à teoria de negativos que modificaram a noção de espaço da memória–agora, era denominado depósito de memória, ou seja, um lugar onde lembranças são sobrepostas umas às outras); Aqui Não Volto Mais (1988: introdução da idéia de pousada da memória, que existia além dos confins do tempo e espaço, onde Kantor encontrou suas próprias criações passadas); e Hoje é Meu Aniversário (1990: exploração do ultrapassar o limiar entre o mundo da Ilusão e o mundo da Realidade, que provocou a desintegração da própria ilusão).
14 As experiências teatrais de Kantor e sua versão oficial e não-oficial da história do século XX são testemunhas de sua crença que o teatro é uma resposta para a realidade, ao invés de representação da realidade. Mais importante, como ele observou, Teatro “é uma atividade que acontece se a vida é levada ás últimas conseqüências, onde todas as categorias e concepções perdem seus significados e direitos de existir; onde loucura, febre, histeria e alucinações são o último estágio da vida diante da chegada da TRUPE DA MORTE e do ESPLÊNDIDO ESPETÁCULO da morte.".
15.Fontes Adicionais A Journey Through Other Spaces: Essays and Manifestos: 1944-1990, editado, traduzido e com análise crítica do teatro de Tadeusz Kantor por Michal Kobialka (Berkeley, 1993)Ein Reisender, ed. Piotr Nawrocki and Peter Kamphel (Nürnberg, 1988)Hommage á Tadeusz Kantor, ed. Krzysztof Pleśniarowicz (Cracóvia, 1999)Kantor, l’artiste á la fin du XXé siécle, ed. Georges Banu (Paris, 1990)Dennis Bablet, Tadeusz Kantor (Paris, 1983)Wiesław Borowski, Tadeusz Kantor, (Warszawa, 1982)Krzysztof Pleśniarowicz, The Dead Memory Machine: Tadeusz Kantor’s Theatre of Death (Londres, 2000)NotasTadeusz Kantor, “Milano Lessons: Lesson 1,” A Journey Through Other Spaces: Essays and Manifestos, 1944-1990, translated and with the critical commentary by Michal Kobialka (Berkeley: University of California Press, 1993), 211-12.A Journey, 274.A Journey, 272.Walter Benjamin cited in Douglas Crimp, “This is not a Museum of Art,” Marcel Broodthaers (Minneapolis: Walker Art Center, 1989), 72.A Journey, 96-7.In 1963, Kantor presents the Popular Exhibition, also known as the Anti-Exhibition, at Galeria Krzysztofory in Kraków. It comprised of the objects, which were usually removed to the margins of the creative activity, glossed over by the traditional conventions, and discarded as irrelevant. “It was an inventory [of facts, theatrical objects, drawings, sketches, prescriptions, letters, stamps, tram and bus tickets, etc.] without any chronology, hierarchy, and locality. I found myself in the middle of all that, without a role of my own” (Kantor, “Zero,” Ambalaże (Warszawa: Galeria Foksal, 1976), 21). The objects, like laundry pieces, were hanging clipped to the ropes running through the vaulted space of the Gallery (A Journey, 23-5).Theodor Adrono, “Commitment,” The Essential Frankfurt School Reader, eds. Andrew Arato and Eike Gebhardt (Oxford: Basil Blackwell, 1978), 317.Jean-François Lyotard, The Postmodern Explained, trans. Don Barry, Bernadette Maher, Julian Pefanis, Virginia Spate, and Morgan Thomas (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993), 15.Wiesław Borowski, Tadeusz Kantor (Warszawa: Wydawnictwa Artystyczne i Filmowe, 1982), 76.A Journey, 51.A Journey, 59.A Journey, 85.See “Tadeusz Kantor’s Happenings: Reality, Mediality, and History,” Theatre Survey 43, 1 (May 2002): 59-79.See A Journey, Part 2, “The Quest for the Self/Other: A Critical Study of Tadeusz Kantor’s Theatre” for a detailed discussion of the concept of memory in Kantor’s production from the period between 1975 and 1990.A Journey, 149.

TADEUSZ KANTOR -A CONDIÇÃO DE ATOR

O desmoronamento da moral burguesa do século XIX, quando somente os maiores talentos obtinham com muita dificuldade direito de cidadania, permite enfim ao ator chegar a uma posição social normal.
A revolução social dos anos vinte faz dele um trabalhador da cultura de vanguarda. São os anos em que o construtivismo, liberando a arte dos miasmas do idealismo, fascina o mundo por sua doutrina de uma arte concebida como fator de organização dinâmica da vida e da sociedade.
À medida que se desenvolve a civilização industrial e técnica, que a arte perde em numerosos países sua posição de vanguarda e seu dinamismo, o teatro transforma-se cada vez mais em uma instituição e o ator, por conseguinte, em funcionário a ela incorporado. Os direitos que havia obtido esfacelam-se ao contato com uma sociedade de consumo cujas idéias e existência estão fundamentadas sobre um pragmatismo radical, o culto da eficácia e um sentido de automatismo hostil a qualquer intervenção perturbadora da arte.
A assimilação a essa sociedade leva à surdez artística, à indiferença e ao conformismo.
Essa decadência é acelerada pela expansão dos meios de informação de massa: cinema, rádio, televisão.
Nesta etapa final reencontramos atitudes que têm estado sempre próximas uma da outra, a saber: o conformismo moral, uma indiferença absoluta quanto à evolução das formas e também a esclerose artística.
Uma certa laicização e a democratização do ator contribuíram para sua emancipação histórica, mas paradoxalmente tornaram-no medíocre.
A assimilação e a recuperação do artista e de sua arte pela sociedade de consumo encontram um exemplo típico no ator.
O ator-artista foi desarmado, aprisionado. Sua capacidade de resistência, tão importante para ele mesmo quanto para o papel que desempenha na sociedade, foi destruída, o que o leva a obedecer a todas as conveniências e leis que regem o bem-estar na sociedade de produção e de consumo, a perder sua independência, que é o que, colocando-o fora da comunidade, permite-lhe agir sobre ela.
A reforma do teatro e da arte do ator deve realizar-se em profundidade e tocar os fundamentos do ofício.
Durante um longo período de isolamento social, a atitude e a condição do ator carregaram a marca profunda de traços naturalmente saídos do mais secreto de seu psiquismo, que o distinguem da sociedade bem pensante e fazem nascer, por sua vez, formas autônomas de ação cênica.
Esbocemos uma imagem dessa personagem:
- O ATOR
- retrato nu do homem,
- exposto a qualquer transeunte,
- silhueta elástica.
- O ator,
- forasteiro,
- exibicionista desavergonhado,
- simulador fazendo demonstração de lágrimas,
- de riso,
- de funcionamento
- de todos os órgãos,
- dos vértices do espírito, do coração, das paixões,
- do ventre,
- do pênis,
- o corpo exposto a todos os estimulantes,
- todos os perigos
- e todas as surpresas;
- engodo,
- modelo artificial de sua anatomia
- e de seu espírito,
- renunciando à dignidade e ao prestígio,
- atraindo os desprezos e os escárnios,
- tão perto das lixeiras quanto da eternidade,
- rejeitado pelo que é normal
- e normativo em uma sociedade.
- Ator
- que vive unicamente
- no imaginário,
- levado a um estado de insatisfação crônica
- e de insaciabilidade perante tudo
- aquilo que existe realmente,
- fora do universo da ficção,
- que o compele
- a uma nostalgia perpétua
- constrangendo-o
- a uma vida nômade.
- Ator forasteiro,
- eterno errante
- sem lar nem lugar,
- buscando em vão o porto,
- carregando em suas bagagens
- todo o seu bem,
- suas esperanças, suas ilusões perdidas,
- o que é sua riqueza
- e sua carga,
- uma ficção
- que ele defende zelosamente até as últimas conseqüências
- contra a intolerância de um mundo indiferente.

TADEUSZ KANTOR - O TEATRO DA MORTE

1. Craig afirma: a marionete deve retornar; o ator vivo deve desaparecer. O homem, criado pela natureza, é uma ingerência estranha na estrutura abstrata de uma obra de arte. De acordo com Gordon Craig, em algum lugar às margens do Ganges, duas mulheres invadiram o templo da Divina Marionete, que conservava com vigilância o segredo do verdadeiro TEATRO. Essas duas mulheres tinham inveja desse SER perfeito e almejavam seu PAPEL, que era iluminar o espírito dos homens pelo sentimento sagrado da existência de Deus; elas almejavam sua Glória. Apropriaram-se de seus movimentos e de seus gestos, de suas vestimentas maravilhosas, e, pelo recurso de uma medíocre paródia, admiraram-se satisfazendo os gostos vulgares da plebe. Quando enfim elas fizeram construir um templo à imagem do outro, o teatro moderno - o que conhecemos muito bem e que ainda permanece - havia nascido: a ruidosa Instituição de utilidade pública. Ao mesmo tempo que ela, surgiu o ATOR. Em apoio à sua tese Craig invoca a opinião de Eleonora Duse: "Para salvar o teatro, é preciso destruí-lo; é preciso que todos os comediantes e todas as comediantes morram de peste... são eles que levantam obstáculos à arte..."
2. Teoria de Craig: o homem-ator suplanta a marionete e toma seu lugar, causando assim o declínio do teatro. Há algo de imponente na atitude desse grande utopista quando ele afirma: "Exijo com toda a seriedade o retorno do conceito da supermarionete ao teatro... e desde que ela reapareça, as pessoas poderão novamente venerar a felicidade da existência e render uma divina e alegre homenagem à MORTE." De acordo com a estética SIMBOLISTA, Craig considerava o homem submetido a paixões diversas, a emoções incontroláveis e, por conseguinte, casuais como um elemento absolutamente estranho à natureza homogênea e à estrutura de uma obra de arte, como um elemento destruidor do seu caráter fundamental: a coesão. Craig - assim como os simbolistas cujo programa, em seu tempo, teve um desenvolvimento notável - tinha atrás de si os fenômenos isolados mais extraordinários que, no século XIX, anunciavam uma época nova assim como uma arte nova: Heinrich von Kleist, Ernst Theodor Hoffmann, Edgar Allan Poe... Cem anos antes, e por razões idênticas às de Craig, Kleist tinha exigido que o ator fosse substituído por uma marionete, pensando que o organismo humano, submetido às leis da NATUREZA, constituía uma ingerência estranha na ficção artística nascida de uma construção do intelecto. As outras censuras de Kleist faziam-se sobre os limites das possibilidades físicas do homem e ele denunciava além disso o papel nefasto do controle permanente da consciência, incompatível com os conceitos de encantamento e de beleza.
3. Da mística romântica dos manequins e das criações artificiais do homem do século XIV ao racionalismo abstrato do século XX Ao longo do caminho que se pensava seguro e que foi tomado ao homem do Século das luzes e do racionalismo, eis que avançam, saindo repentinamente das trevas, sempre mais numerosos, os sósias, os MANEQUINS, os Autômatos, os Homúnculos - criações artificiais que são várias injúrias às criações próprias da NATUREZA e que carregam em si todo o menosprezo, todos os sonhos da humanidade, a morte, o horror e o terror. Assiste-se ao aparecimento da fé nas forças misteriosas do MOVIMENTO Mecânico, ao nascimento de uma paixão maníaca de inventar um MECANISMO que sobrepujasse em perfeição, em implacabilidade, o tão vulnerável organismo humano. A tudo isto em um clima de satanizo, no limite do charlatanismo, das práticas ilegais, da magia, do crime, do pesadelo. é a CIêNCIA-FICçãO da época, na qual um cérebro humano demoníaco criava o HOMEM ARTIFICIAL. Isto significava simultaneamente uma crise de confiança súbita em relação à NATUREZA e a esses domínios da atividade dos homens que lhe estão intimamente associados. Paradoxalmente, é dessas tentativas românticas e diabólicas ao ponto de negar à natureza seu direito à criação que nasce e se desenvolve o movimento RACIONALISTA ou mesmo MATERIALISTA - sempre mais independente e sempre mais perigosamente distanciado da NATUREZA - a corrida para um "MUNDO SEM OBJETO", para o CONSTRUTIVISMO, o FUNCIONALISMO, o MAQUINISMO, a ABSTRAçãO e, finalmente, o VISUALISMO PURISTA que reconhece simplesmente a "presença física" de uma obra de arte. Esta hipótese arriscada que tende a estabelecer a gênese pouco gloriosa do século do cientismo e da técnica engaja apenas minha própria consciência e serve unicamente à minha satisfação pessoal.
4. O dadaísmo, introduzindo a "realidade já pronta" (os elementos da vida), destruiu os conceitos de homogeneidade e de coerência da uma obra de arte postulados pelo simbolismo, a Arte nova e por Craig Mas retornemos à marionete de Craig. Sua idéia de substituir um ator vivo por um manequim, por uma criação artificial e mecânica, em nome da conservação perfeita da homogeneidade e da coerência da obra de arte, não tem mais sentido hoje. Experiências ulteriores que destruíram a homogeneidade da estrutura de uma obra de arte introduziram nela elementos ESTRANHOS, através de colagens e de montagens; a aceitação da realidade "já pronta"; o pleno reconhecimento do acaso; a localização da obra de arte na estreita fronteira entre REALIDADE DA VIDA e FICçãO ARTíSTICA - tudo isto tornou negligenciáveis os escrúpulos do início de nosso século, do período do simbolismo e do "Art nouveau". A alternativa "arte autônoma de estrutura cerebral ou perigo de naturalismo" deixou de ser a única possibilidade. Se o teatro, em seus momentos de fraqueza, sucumbiu ao organismo humano vivo e a suas leis, é porque aceitou, automática e logicamente, esta forma de imitação da vida que constituem sua representação e sua re-criação. Ao contrário, nos momentos em que o teatro era suficientemente forte e independente para permitir-se libertar-se dos constrangimentos da vida e do homem, produzia os equivalentes artificiais da vida que, sujeitando-se à abstração do espaço e do tempo, eram ainda mais vivos e mais aptos a atingir a absoluta coesão. Em nossos dias essa alternativa na escolha perdeu tanto seu significado quanto seu caráter exclusivo. Pois criou-se uma nova situação no domínio da arte e existem novos quadros de expressão. O surgimento do conceito de REALIDADE "Já PRONTA" retirada do contexto da existência tornou possíveis sua ANEXAçãO, sua INTEGRAçãO na obra de arte através da DECISãO, do GESTO e do RITUAL. E isto é presentemente muito mais fascinante e mais poderosamente inserido no real que qualquer entidade abstrata ou artificialmente elaborada, ou que esse mundo surrealista do "MARAVILHOSO" de André Breton. Happenings, "eventos" e "instalações" reabilitaram impetuosamente regiões inteiras da REALIDADE até então desprezadas, desembaraçando-as do peso de suas destinações terra a terra. Esse DESLOCAMENTO da realidade pragmática - essa "suspensão" para fora das fronteiras da prática cotidiana - puseram em movimento a imaginação dos homens muito mais profundamente que a realidade surrealista do sonho onírico. Foi isto que finalmente fez desaparecer toda importância aos temores de ver o homem e sua vida interferir no plano da arte.
5. Da "realidade imediata" do happening à desmaterialização dos elementos da obra de arte. Portanto, como toda fascinação, também esta tornou-se, depois de certo tempo, CONVENçãO pura - universalmente, tolamente, vulgarmente utilizada. Essas manipulações quase rituais da realidade, ligadas à contestação do ESTADO ARTíSTICO e do LIGAR reservado à arte, começaram, pouco a pouco, a tomar um sentido e um significado diferentes. A PRESENçA material, física do objeto e o TEMPO PRESENTE no qual podem figurar unicamente a atividade e a ação aparentemente atingiram seus limites e tornaram-se um entrave. ULTRAPASSá-las significava privar essas relações de sua IMPORTâNCIA material e funcional, ou seja, de sua possível APREENSãO. (Dado que trata-se aqui de um período muito recente, ainda não terminado, fluido, as considerações seguintes referem-se e ligam-se a minhas próprias atividades criativas.) O objeto (A Cadeira, Oslo, 1970) tornava-se vazio, desprovido de expressão, de encadeamentos, de pontos de referência, de sinais de uma intercomunicação voluntária, de sua mensagem; ele estava orientado para nenhum lugar e tornava-se um engodo. Situações e ações permaneciam encerradas em seu próprio CIRCUITO, ENIGMáTICAS (O Teatro impossível, 1973). Em minha manifestação intitulada Cambriolage (Furto) deu-se uma INVASãO ilegítima sobre o terreno em que a realidade tangível encontrava seus prolongamentos INVISíVEIS. Cada vez mais distintamente se precisa o papel do PENSAMENTO, da MEMóRIA e do TEMPO.
6. Recusa da ortodoxia do conceptualismo e da "vanguarda oficial das massas" Impõe-se a mim cada vez com mais força a convicção de que o conceito de VIDA não pode ser reintroduzido em arte senão pela AUSêNCIA DE VIDA no sentido convencional (ainda Craig e os simbolistas). Esse processo de DESMATERIALIZAçãO instalou-se em minha atividade criativas, evitando-se entretanto toda a panóplia ortodoxa da lingüística e do conceptualismo. é certo que essa escolha foi em parte influenciada pelo gigantesco engarrafamento que emporcalhou esse caminho agora oficial e que constitui, infelizmente, o último trecho da grande estrada DADAíSTA coberta de cartazes com seus slogans ARTE TOTAL, TUDO é ARTE, TODO MUNDO é ARTISTA, A ARTE ESTá NA VOSSA CABEçA, etc. Eu não gosto dos engarrafamentos. Em 1973 escrevi o esboço de um novo manifesto, que leva em conta essa falsa situação. Eis o seu começo: "Depois de Verdun, do Cabaret Voltaire e da Privada de Marcel Duchamp, quando o "fato artístico" foi encoberto pelo estrondo da Gorda Bertha, a DECISãO tornou-se a única oportunidade que resta ao homem de ousar qualquer coisa recentemente ou ainda hoje inconcebível. Ela tem sido há muito tempo o estimulante primeiro da criação, uma condição e uma definição da arte. Nestes últimos tempos milhares de indivíduos medíocres tomam, sem escrúpulos nem reticências de nenhuma espécie, decisões. A decisão tornou-se um fato banal e convencional. O que era um caminho perigoso tornou-se agora uma auto-estrada cômoda - segurança e sinalização hipermelhoradas. Guias, manuais, placas de sinalização, cartazes, centros, corporações artísticas - eis o que garante a perfeita criação artística. Somos testemunhas de um LEVANTE EM MASSA de comandos de artistas, de combatentes de rua, de artistas de choque, de artistas operários, de escrevinhadores, de caixeiros viajantes, de saltimbancos, de chefes de escritórios e de agências. Nesta auto-estrada já oficial, o tráfico, que ameaça afogar-nos sob uma onda de garatujas insignificantes e de pretensos coups de théâtre, vai crescendo a cada dia. é preciso abandoná-la o quanto antes. Mas isto não é tão fácil! Ainda mais que está no seu apogeu - cega e avalizada pelo altíssimo prestígio do INTELECTO, recobrindo tanto os sábios quanto os tolos - a ONIPRESENTE VANGUARDA..."
7. Sobre os caminhos secundários da vanguarda oficial. Os manequins fazem sua aparição Minha recusa obstinada em não aceitar as soluções do conceptualismo, embora elas me parecessem a única saída para o caminho encetado, conduziu-me a colocar, tentando circunscrevê-los, os acontecimentos relatados acima e que marcaram a última fase de minha atividade criativa sobre caminhos secundários suscetíveis de me oferecer maiores oportunidades de desembocar no DESCONHECIDO! Uma tal situação, mais que qualquer outra, deu-me confiança. Todo período novo, sempre, começa por tentativas sem grande significação, pouco notáveis, como que em surdina, não tendo grande coisas em comum com o caminho já traçado; tentativas privadas, íntimas, eu diria mesmo pouco confessáveis. Obscuras em todo caso. E difíceis! Tais são os momentos mais fascinantes e mais carregados de sentido da criação artística. E subitamente me senti interessado pela natureza dos MANEQUINS. O manequim em minha encenação de La Poule d'eau, de Witkacy (1967) e os manequins em Les Cordonniers (Os Sapateiros), de Witkacy (1970) tinham um papel bem específico; constituíam uma espécie de prolongamento imaterial, alguma coisa como um óRGãO COMPLEMENTAR do ator que era seu "proprietário". Quanto aos que utilizei em grande número na encenação da Balladyna, de Slowacki, eles constituíam os DUPLOS das personagens vivas, como se fossem dotados de uma CONSCIêNCIA superior, atingida "depois da consumação de sua própria vida". Esses manequins já estavam visivelmente marcados com o selo da MORTE.
8. O manequim como manifestação da realidade mais trivial. Como um procedimento de transcendência, um objeto vazio, um engodo, uma mensagem de morte, um modelo para o ator O manequim que utilizei em 1967 no teatro Cricot 2 ( La Poule d'eau) foi, depois d'O Peregrino eterno e da Embalagens humanas, o próximo dos meus personagens a entrar de maneira absolutamente natural em minha Coleção como outro fenômeno a apoiar esta convicção ancorada em mim há muito tempo de que somente a realidade mais trivial, os objetos mais modestos e os mais desprezados são capazes de revelar em uma obra de arte seu caráter específico de objeto. Manequins e figuras de cera sempre existiram, mas como que mantidos à distância à margem da cultura aceita, nas bancas dos mercados, nas barracas duvidosas dos andarilhos, longe dos esplêndidos templos da arte, vistos como curiosidades desprezíveis, boas apenas para abastecer o gosto da ralé. Mas por esta razão são eles - muito mais que as acadêmicas peças de museu - que podem, no tempo de um breve olhar, levantar uma ponta do véu. Os manequins têm também um odor de pecado - de transgressão delituosa. A existência dessas criaturas configuradas à imagem do homem de uma forma quase sacrílega e quase clandestina, fruto de procedimentos heréticos, traz a marca desse lado obscuro, noturno, sedicioso da trajetória humana, o cunho do crime e dos estigmas da morte enquanto fonte de conhecimento. A impressão confusa, inexplicada, de que é pelo artifício de uma criatura com falaciosos aspectos da vida, mas privada de consciência e de destino, que a morte e o nada transmitem sua inquietante mensagem - é isto que causa em nós esse sentimento de transgressão, ao mesmo tempo recusa e atração. Inclusão no index e fascinação. O ato de acusação esgotou todos os argumentos. O primeiro a prestar as costas aos ataques foi o próprio mecanismo dessa ação, considerada levianamente como um fim em si mesma e depois relegada entre as formas medíocres da criação artística, no mesmo saco que a imitação, a ilusão enganosa destinada a abusar do espectador como os truques do manipulador de feira, a utilização de ingênuos artifícios que escapam aos conceitos da estética, o uso fraudulento das aparências, as práticas de charlatão. E ainda por cima acrescentaram-se ao processo as acusações de uma filosofia que, desde Platão e com freqüência ainda hoje em dia, designa como finalidade da arte revelar o Ser e sua espiritualidade ao invés de patinhar na concreção material do mundo, nessa trapaça das aparências, que representam o mais baixo nível da existência. Não acho que um MANEQUIM (ou uma FIGURA DE CERA) possa substituir, como queriam Kleist e Craig, o ATOR VIVO. Isto seria fácil e excessivamente ingênuo. Esforço-me por determinar os motivos e a destinação dessa entidade insólita surgida inopinadamente em meus pensamentos e em minhas idéias. Sua aparição concorda com esta convicção cada vez mais forte em mim de que a vida não pode ser exprimida em arte senão pela falta de vida e pelo recurso à morte, através das aparências, da vacuidade, da ausência de qualquer mensagem. Em meu teatro um manequim deve tornar-se um MODELO que encarna e transmite um profundo sentimento da morte e da condição dos mortos - um modelo para o ATOR VIVO.
9. Minha interpretação da situação descrita por Craig. A aparição do ator vivo, momento revolucionário. A descoberta da imagem do homem Busco minhas considerações nas origens do teatro; mas elas aplicam-se de fato ao conjunto da arte atual. Pode-se muito bem pensar que a descrição, imaginada por Craig, das circunstâncias nas quais surgiu o ator, e que traz em si mesma uma análise terrivelmente acusadora, deveria servir a seu autor de ponto de partida para suas idéias concernentes à "SUPER-MARIONETE". Embora eu seja um admirador do soberbo desprezo professado por Craig e de suas diatribes apaixonadas - sobretudo quando estamos confrontados com o total declínio do teatro contemporâneo - devo entretanto, ao mesmo tempo que faço minha a primeira parte de seu credo, na qual ele nega ao teatro institucional qualquer razão de existir no plano da arte, tomar outra posição frente às bem conhecidas soluções a que chegou a respeito do ator. Pois o momento em que um ATOR surgiu pela primeira vez perante uma PLATéIA (para empregar o vocabulário atual) parece-me ser, bem ao contrário, um momento revolucionário e de vanguarda. Vou mesmo tentar compor e fazer "entrar na história" uma imagem oposta, na qual os acontecimentos terão uma significação inversa: Eis que do círculo comum dos costumes e dos ritos religiosos, das cerimônias e das atividades lúdicas sai ALGUéM, tendo tomado a decisão temerária de destacar-se da comunidade cultural. Não era movido nem pelo orgulho (como em Craig) nem pelo desejo de atrair sobre si a atenção de todos. Solução excessivamente simples. Eu o vejo antes como um rebelde, um objetor, um herético, livre e trágico, por ter ousado permanecer só com sua sorte e seu destino. E se acrescentamos "com seu PAPEL", teremos diante de nós o ATOR. A revolta aconteceu sobre o terreno da arte. Este acontecimento, ou antes esta manifestação, provavelmente provocou uma grande perturbação nos espíritos e suscitou opiniões contraditórias. Com toda certeza este ATO foi julgado como uma traição às antigas tradições e às práticas do culto; viu-se nele uma manifestação de orgulho profano, de ateísmo, de perigosas tendências subversivas; aos gritos falou-se em escândalo, em amoralidade, em indecência; olhou-se o homem com desprezo como a um bufão grosseiro, um cabotino, um exibicionista, um depravado. O próprio ator, relegado para fora da sociedade, terá feito tanto inimigos cruéis quanto fanáticos admiradores. Opróbrio e glória conjugados. Seria um formalismo ridículo e superficial querer explicar esse ato de RUPTURA através do egoísmo, do apetite de glória ou de uma queda inata para o exibicionismo. Deve ter sido uma questão mais considerável, uma COMUNICAçãO de importância capital. Tentemos imaginar esta situação fascinante:
FACE àqueles que tinham permanecido deste lado, um HOMEM postou-se EXATAMENTE semelhante a cada um deles e entretanto (em virtude de alguma "operação" misteriosa e admirável) infinitamente DISTANTE, terrivelmente ESTRANGEIRO, como que habitado pela morte, separado deles por uma BARREIRA que por ser invisível não deixava de ser apavorante e inconcebível, assim como o sentido verdadeiro e a HONRA não podem nos ser revelados senão pelo SONHO.
E é assim que sob a luz deslumbrante de um clarão eles percebem subitamente a IMAGEM DO HOMEM, aguda, tragicamente clownesca, como se o vissem pela PRIMEIRA VEZ, como se acabassem de ver a SI MESMOS. Este foi seguramente um conhecimento que poder-se-ia qualificar de metafísico. Essa imagem viva do HOMEM saindo das trevas, levando sua trajetória adiante, constituía um MANIFESTO, irradiante, de sua nova CONDIçãO HUMANA, somente HUMANA, com sua RESPONSABILIDADE e sua CONSCIêNCIA trágica, avaliando seu DESTINO com uma escala implacável e definitiva, a escala da MORTE. Foi dos espaços da MORTE que veio esse MANIFESTO revelador que provocou no público (utilizemos um termo atual) esse conhecimento metafísico. Os instrumentos e a arte desse homem, o ATOR (para empregar ainda nosso próprio vocabulário), ligavam-se também à MORTE, a sua trágica e horrífica beleza. Devemos dar à relação ESPECTADOR/ATOR sua significação essencial. Devemos fazer renascer esse impacto original do instante em que um homem (ator) surgiu pela primeira vez perante outros homens (espectadores), exatamente semelhante a cada um de nós e entretanto infinitamente estrangeiro, além dessa barreira que não pode ser ultrapassada.
10. Recapitulação
Embora se possa levantar suspeitas, e mesmo acusar-nos de nutrir escrúpulos fora de propósito expulsaremos nossos preconceitos e nossos medos inatos e, a fim de melhor definir a imagem no interesse de eventuais conclusões assentaremos as balizas dessa fronteira que tem um nome:

A CONDIçãO DA MORTE
porque ele constitui o ponto de referência mais avançado que jamais foi ameaçado por nenhum conformismo da CONDIçãO DO ARTISTA E DA ARTE ...essa relação particular desorientadora e sedutora a um só tempo entre os vivos e os mortos que, há pouco, quanto eles ainda estavam vivos não dava nenhum lugar a inesperados espetáculos a inúteis divisões, à desordem Eles não eram diferentes e não tomavam grandes ares e em razão desta característica aparentemente banal mas, como veremos, muito importante eles eram simplesmente, normalmente, respeitosamente não perceptíveis E eis que agora, subitamente do outro lado, perante nós eles despertam a surpresa como se nós os víssemos pela primeira vez expostos em exibição, em uma cerimônia ambígua: honrados e rejeitados a um só tempo irremediavelmente outros e infinitamente estrangeiros, e ainda: desprovidos, de alguma forma, de toda significação não sendo mais levados em conta sem a menor esperança de ocupar um lugar inteiramente à parte das texturas de nossa vida que não são acessíveis, familiares, inteligíveis senão para nós mesmos mas para eles desprovidas de sentido Se estamos de acordo em que o traço dominante dos homens vivos é sua aptidão e sua facilidade de estabelecer entre si múltiplas relações vitais é somente perante os mortos que surge em nós a tomada de consciência súbita e surpreendente que essa característica essencial dos vivos torna-se possível por sua falta total de diferenças por sua banalidadepor sua identificação universal que destrói impiedosamente toda ilusão diferente ou contrária por sua qualidade comum, aprovada sempre em vigor de permanecer indiscerníveis Somente os mortos se tornam perceptíveis (para os vivos) obtendo assim, por este alto preço seu estatuto próprio sua singularidade sua SILHUETA radiosa quase como no circo

In "Le Théâtre de la Mort ". Editions L'Age d'Homme, Lausanne , 1977, p. 215-224. Tradução de Roberto Mallet.