sábado, 10 de fevereiro de 2007

GABRIELA RABELO - A DIREÇÃO EM TEATRO

Mário de Andrade equacionou lindamente a diferença entre os aspectos técnicos e os artísticos na criação da obra de arte: de um lado há o artesanato - que é o aspecto mais técnico da obra de arte -, que não só é ensinável como indispensável para quem se pretenda um artista bom. É impossível ser um artista bom sem saber manejar os instrumentos de que cada arte se serve, sem ser um bom artesão no seu ofício. Mas de outro lado há um aspecto da arte que é trágico porque é imprescindível desenvolver e não dá para ser ensinado: é a resposta individual do artista às questões que cada trabalho seu lhe coloca, Isso posto, fica evidente que - não há uma receita de como dirigir uma peça de teatro. Mas, se não há receita, há algumas leis gerais do teatro a que é imperioso obedecer. Neste artigo vamos falar um pouquinho de algumas delas. Desde já fica também estabelecido que aqui os termos diretor e encenador se equivalerão, embora se saiba que o termo encenador, na forma como é concebido em nossos dias, seja de origem recente. Mas a noção de encenação, entendida como a reunião numa só cabeça e numa só mão de todos os elementos constitutivos do espetáculo, é tão antiga quanto o próprio teatro, nasceu com ele. Foi com o desfiar dos anos que mudaram o papel e a importância do teatro na sociedade, e conseqüentemente as atribuições do encenador. Se verdade que em tempos passados a própria sociedade ajudava a "regular" a cena, em nossos tempos tão convulsionados, com uma multiplicidade de visões e perspectivas muito incertas, cabe ao encenador, em sua opinião individual e intransferível - porque formada a partir de sua história pessoal -, ser o regulador, o mediador entre a obra inicial (seja esta um texto já previamente escrito, um roteiro ou uma simples idéia que tomará corpo no decorrer dos ensaios) e o público. O nosso teatro hoje já não é mais um depositário ou o anunciador de 'Verdades humanistas e simbólicas válidas para todos"; nem é mais um reflexo de um modo análogo ao nosso, a ponto de nos enganar. Hoje em dia, o teatro é muito mais um campo de experimentação da intrincada vida que nos espera "lá fora", uma "propedêutica da realidade", como diz Bernard Dort. É preciso ainda salientar que a tarefa da direção mudará bastante dependendo do quadro onde o espetáculo teatral será criado: dentro de uma escola (e portanto perseguindo antes de tudo objetivos pedagógicos), por um grupo amador ou para enfrentar o mercado. A mudança de objetivos levará a mudanças de táticas. Mas os princípios que as nortearão serão os mesmos, pois se trata sempre da utilização da mesma linguagem: a teatral, Caberá ao diretor, independentemente da finalidade do seu trabalho:

l - ter uma visão geral da obra a ser encenada;
2 - coordenar, a partir dessa visão, o trabalho de todos os co-criadores do espetáculo (atores, cenógrafos, figurinista, iluminador, cenotécnico etc.).

Mas como o diretor adquire essa visão? Os caminhos são muitos, mas, inevitavelmente, terão que passar por:

a) leitura exaustiva da obra, de fora pra dentro e de dentro pra fora. Ou seja: ler a obra tentando "decifrar" o texto que está diante de seus olhos e também o que não está escrito mas que é sugerido. A leitura desse texto "submerso" é refeita durante todo o processo de ensaio, confirmando-se ou negando-se as opiniões anteriores. Tal leitura é feita isoladamente em conjunto, quer dizer, o diretor a faz sozinho, em sua casa, para se preparar e também preparar a leitura que será feita com todos os participantes do espetáculo. E assim, nesse vai e volta, a concepção do espetáculo irá sendo elaborada. É ele, o encenador, que deve conduzir o processo de discussão sobre o texto de forma aberta e democrática. Mas não pode nunca perder de vista a sua função: muitas vezes encontramos atores que executam um trabalho bastante razoável e que, no entanto, têm uma visão não muito abrangente da peça em que estão trabalhando. Se isso é possível para o ator, é totalmente impossível para o diretor, porque o trabalho de ambos é de natureza diferente: no do ator há uma grande dose de intuição (o que não dispensa o trabalho analítico via razão). Ele treina, inconsciente ou conscientemente essa forma de percepção. O diretor, não: seu trabalho parte sobretudo da apreensão consciente dos objetivos que quer alcançar e de uma atenção cuidadosa a tudo o que vem das pessoas envolvidas no trabalho. O diretor treina a percepção mais fina, mais sutil, aquela que denota nos pequenos detalhes, grandes possibilidades: mais do que a intuição é essa percepção que ele desenvolve. Não estou com isso querendo eliminar de todo a intuição como fonte de inspiração para o diretor. Estou apenas tentando delimitá-la. E a leitura tem também de ser de dentro para fora, ou seja, o diretor precisa tentar fazer seu (de todos) o texto lido, apoderando-se dele, procurando revelar, como se fosse o seu próprio autor, os caminhos que o mistério da criação percorreu, quer dizer, tornando consciente a parte inconsciente da criação artística (mas sempre tendo presente que esse é um projeto inesgotável. A arte - como o ser humano que a cria - habita o território do infinito, do irrevelado). Cada diretor usa um método próprio para conduzir essa fase de leitura: há os que pegam o texto e fazem leituras com os atores caminhando pelo palco, sem, no entanto, fixar os papéis. Cada dia é um ator diferente que lê o papel de x ou de y, Com isso, há uma multiplicidade de percepções das personagens e das relações que as determinam. Há os que se sentam junto com todo o elenco ao redor de uma mesa para que a peça seja lida, exaustivamente discutida e analisada, redividida em cenas e sequências que serão determinadas pelas análises de textos feitas. Há os que fazem uma leitura por tabela, ou seja, propondo jogos ou leituras paralelas ao tema do texto, como que preparando o terreno para o plantio definitivo da peca. Só então começam a le-la, mas ai já dentro do seu universo. Há os que misturam tudo isso. E ainda há muitos outros métodos. O que há de comum em todos eles e a procura de assenhoramento da peca, esse tomar posse física e espiritualmente do texto ou tema que será transposto para o palco.

b) Estudo do autor: o que significa essa obra dentro da obra geral do autor? E um tema reiterativo, o da peça a ser montada? Se sim, onde mais o autor tratou desse tema? Sob que óptica? Existe mais de uma versão do texto? Quais as mudanças efetuadas?

c) estudo do próprio tema: de que trata a peça? Da loucura? Da escravidão? Do amor inatingível? Estudar essas questões procurando ter uma opinião própria sobre elas. Comparar sua opinião à do autor da peça.

d) estudo do período histórico em que viveu o autor: se for contemporâneo, ter-se-á a facilidade de compartilhar com ele o tempo histórico. Mas sua visão de mundo, seus objetivos em teatro, serão os mesmos (não precisam ser, evidentemente)? Se for um autor de tempos passados, procurar saber o máximo possível sobre sua época para tentar decifrar o sentido que a obra que está sendo estudada possuía na época em que foi escrita. Isso não significa que devamos nos preocupar com a reconstituição histórica acima de tudo. O passado interessa, sobretudo porque nos explica. Afinal, somos resultado (não mecânico, evidentemente) dos tempos que nos antecederam.

Vem agora a "parte 2" da direção teatral: a colocação em cena.

Para alguns diretores, a ocupação do espaço segue paralela ao entendimento da peça: como foi dito anteriormente, os atores apreendem a peça deslocando-se pelo espaço cênico que vai sendo construído e ocupado junto coma descoberta da peça. Outros encenadores dividem claramente a montagem em duas fases:

l) entendimento da peça (ou roteiro, ou tema);
2) colocação em cena.

Também aqui não há regras estabelecidas. Pessoalmente acho que o melhor é ocupar a cena obedecendo à lógica da ação (do jeito mais stanislavskiano que se puder entender a lógica da ação). E como se obedece a essa lógica? Uma vez entendidas peça, cena, personagens, é deixar que os ator se movimentem livremente pelo palco a partir desse entendimento, sem nenhum preocupação de compor visualmente a cena. Essa tarefa caberá ao diretor, que estando fora do espaço cénico e partindo da mesma compreensão da peça, cena e personagem, irá interferindo no trabalho dizendo: "Fulano, se você se afastar, em vez de se aproximar, esta cena ficará mais clara. " ." Beltrano, experimente repetir a cena com a mesma intensidade, só que sem gritar e sem andar tanto pelo palco." etc. etc. Nessa fase o diretor é como um obstetra: depois de gerido, o espetáculo tem de ser dado literalmente à luz, É quando mais do que em qualquer outra ocasião, todas as antenas do diretor têm de ficar ligadas: tudo o que acontece é importante. E tem de avançar com grande acuidade e delicadeza. Não se pode esquecer que o ator é um artista extremamente vulnerável, Ele está lá no palco, com sua alma exposta. Cada personagem, com cada espetáculo, assemelha-se a um bebe que chega ao mundo. E o encenador tem de saber acolher essa criança, deixando-a forte, sadia, sem traumas, nas mãos do ator/mãe. Porque a criança/espetáculo (e o diretor não pode nunca esquecer isto: a natureza do trabalho teatral é coletiva) e fruto da união de todas as pessoas - artistas e técnicos - que se empenharam para seu nascimento. E quem embala o bebe, a luz dos refletores ou do sol, é o ator.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

RENATA PALOTTINI - DRAMATURGIA, CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM

AS 36 SITUAÇOES DRAMÁTICAS
Polti
1. Implorar
2. O Salvador
3. A Vingança Perseguindo o Crime
4. Vingar o Próximo no Próximo
5. Acuado
6. Desastre
7. A Presa
8. Revolta
9. Audaciosa Tentativa
10. Rapto
11. O Enigma
12. Obter
13. Odio Entre Próximos
14. Rivalidade Entre Próximos
15. Adultério Assassino
16. Loucura
17. Imprudência Fatal
18. Involuntário Crime de Amor
19. Matar um Parente sem o Saber
20. Sacrificar-se por um ideal
21. Sacrificar-se pelo próximo
22. Sacrificar tudo pela paixão
23. Ter de Sacrificar os Seus
24. Rivalidade de pessoas de Nível Diferente
25. Adultério
26. Crimes de Amor
27. Conhecer a Desonra do Ser Amado
28. Amores Impossíveis
29. Amar o Inimigo
30. A Ambição
31. Luta contra Deus
32. Ciíme Equivocado
33. Erro Judiciário
34. Remorsos
35. Reencontro
36. Perder os seus

PERSONAGEM: Ente composto pelo poeta a partir de uma seleção do que a realidade lhe oferece, cuja natureza e unidade só podem ser conseguidas a partir dos recursos utilizados para a criação.


FUNÇOES DE PERSONAGENS (SETE ESFERAS DA AÇÃO)
Vladimir I. Propp

1. O Mau (o que comete a má ação; o vilão).
2. O Doador (o que atribui o objeto mágico e seus valores)
3. O Ajudante (que socorre o herói)
4. A Princesa (a que exige uma façanha e promete matrimônio)
5. O Mandante (o que envia o herói em uma missão)
6. O Herói (o que age e se submete a diversas peripécias)
7. O Falso Herói (o que usurpa por algum tempo o papel do Herói verdadeiro)

OBS.:
a) uma esfera de ação pode corresponder exatamente a um personagem;
b) um mesmo personagem pode abarcar várias esferas de ação
c) uma mesma esfera de ação pode ser partilhada por vários personagens

CARACTERIZAÇAO
Heffner

É aquilo que diferencia um personagem do outro. Os traços da caracterização podem se classificar da seguinte maneira:
1. Traços Biológicos
2. Traços Físicos
3. Inclinações, Disposições, Atitudes
4. Traços sentimentais, de Emoção e Desejo.
5. Traços ou Características de Pensamento
6. Decisões

AS QUATRO LEIS DO DRAMA (DIALÈTICA)
Hegel/Boal

1. LEI DO CONFLITO - teatro é conflito; todo drama pressupõe o conflito, confronto de vontades, idéias, ponto de vista, ações. Onde não há conflito, não há drama.

2. DA VARIAÇAO QUANTITATIVA (AÇAO DRAMATICA) - a ação dramática, o movimento interior, o devir, constituem a própria essência de uma peça de teatro e são conseqüência do conflito. Não do conflito estático, que não aumenta, não cresce, mas sim daquele que se intensifica e, portanto, varia quantitativamente.

3. VARIAÇÂO QUALITATIVA - é o ponto de mudança para o qual caminha o conflito, em sua intensificação. Chegando a esse ponto de aquecimento máximo, a linha do conflito deve mudar sofrer uma variação - ou salto - qualitativo.

4. INTERDEPENDENCIA - Tudo isso - conflito, ação dramática, variação quantitativa, salto qualitativo - deve estar submetido a uma unidade fundamental do todo, a interdependência de todos os componentes, a constância da idéia central, espinha dorsal da obra, e que e, outra vez, o correspondente a regra aristotélica da Unidade de Ação.

AÇÂO DRAMATICA
Soriau

É o fio condutor que vai do principio ao fim da peça, não se contentando em conduzir paralelamente o destino dos personagens, mas atirando-os moralmente uns contra os outros; que os coloca, em certos momentos, dentro desses dispositivos arquitetônicos e dinâmicos que são as situações; e o que faz da apresentação intensa e da sucessão caleidoscópica dessas situações, um dos meios artisticos essenciais da obra.

LUÍS ALBERTO DE ABREU - A TRAJETÓRIA DE UM DRAMATURGO

Na dramaturgia, mais que deslumbre e arrebatamento, o ato criador é trabalho, descobrindo sagas de heróis nas páginas dos jornais. Sempre digo que não escolhi a dramaturgia, ela me escolheu. Nada de misterioso ou metafísico nessa afirmação, Ao contrário. Escolha pressupõe um leque aberto de possibilidades e aquele rapaz suburbano no começo da década de setenta não possuía esse leque, nem tinha quem bancasse a escolha. Já casado com 19 anos, apenas saído do curso clássico e com uma filha para criar, não podia gastar o tempo na escolha do melhor sonho. Ganhar o dia-a-dia era imperioso e, contando na bagagem com a vasta experiência de office-boy, arranjei emprego como faturista numa fábrica de frascos de vidro no Grande ABC (São Paulo). Bons tempos. Trabalhava, às vezes, 16 horas por dia datilografando malditas notas fiscais e a pior lembrança era passar dias encerrado no escritório sem poder ver a luz do sol. Até hoje não gosto de luz fluorescente. Mas foi um bom ritmo de passagem para o mundo adulto, o mundo do trabalho que considero fascinante. Mudar as coisas, e o trabalho é uma inestimável ferramenta, É fantástico. Tirando a privação do sol, tenho boas lembranças do tempo de fábrica. Ambiente de fábrica é divertido. Aliás, é impressionante como o ser humano consegue transformar o peso do trabalho compulsório em fardo aparentemente leve, pronto a ser carregado com bom humor. Peões são os sujeitos mais bem-humorados que conheci na vida. Foi nessa época que comecei a fazer teatro amador, como ator. Teatro era a única coisa que se apresentava possível. Sempre soube que parte fundamental da minha vida estaria envolvida em contar e inventar histórias. Talvez por ter ouvido muitas quando criança, talvez pelas vivas lembranças que me causaram, aos nove anos, as imagens de um melodrama representado em circo em que uma mulher grávida era assassinada pelo marido. Sonhava, porém, em ter no cinema ou na literatura (artes a que só agora começo a me dedicar) minha atividade principal. O teatro se impôs como coisa natural e possível naquele momento. Segui a imposição. Como ator. Não era mau ator se for confiar no testemunho dos amigos mas estava longe de ser bom. Resolvi escrever. Os resultados foram razoáveis para um iniciante e me animaram a continuar.

TEATRO COMO PROFISSÃO DE FÉ
O teatro amador foi uma grande escola e durante oito anos fiz o que todo grupo iniciante faz: viagens, festivais e apresentação em tudo quanto é lugar. Para sobreviver fazia qualquer coisa: fui revisor e repórter de pequenos jornais, redator de agência de promoções, instrutor de xadrez para adolescentes e funcionário público. De todas as profissões que exerci a que mais gostei foi ensinar xadrez pra moleque; a que mais odiei foi o cargo público. Burocracia é paraplegia do espírito, impede qualquer tentativa de trabalho. Creio que vem daí minha ojeriza maior por políticos e burocracia oficial. É um mundo à parte, às vezes inútil, às vezes em contradição com a vida. Não demorei muito como funcionário público. Aliás, não demorei muito em profissão nenhuma. Meu maior medo, nessa época, era me estabilizar em qualquer emprego de tal modo que inviabilizasse minha carreira como dramaturgo. A oportunidade veio através do agitador Calixto Inhamuns, um dos fundadores do Grupo de Teatro Mambembe, do Grupo Arteviva, e figura de proa no movimento de grupos independentes das décadas de 70 e 80. Calixto foi uma das pessoas fundamentais em minha carreira, não só como produtor de espetáculos (e entenda-se produtor aqui não o financiador e sim o que alicerça a criação dos outros) mas, principalmente, como um interlocutor pensante e privilegiado, que possuía feeling e afinada sintonia com a época e o teatro. Ele havia feito parte do pessoal de teatro amador do ABC, juntamente com Mário César Camargo, Ednaldo Freire, Jussara Freire, Noemi Gerbelli e outros. Convidou-me em 1979 a escrever um texto para o Mambembe. Larguei tudo o que estava fazendo, considerei que havia chegado a hora. Havia. Acredito que existem hora, coisa e lugar certos, é estar atento e esperar. Escrevi Foi Bom, Meu Bem?, meu texto de estréia profissional. Foi muito bem. Um elenco de primeiro time: Rosi Campos, Norival Rizzo, Calixto de Inhamuns, Maria do Carmo Soares, Genésio de Barros e Ana Lúcia Cavalieri. Para o Mambembe escrevi ainda Cala Boca Já Morreu, segundo texto que resultou de uma pesquisa de informação do movimento operário paulista. O outro foi Bella Ciao, encenado em 1982, pelo Grupo Arteviva, e que consolidou minha carreira. De lá pra cá foram 21 textos, dos quais apenas dois continuam inéditos.

DA CRIAÇÃO
Criar é necessidade, às vezes compulsão. Às vezes penso que criamos para compensar algo de fundamental que nos falta. Só isso poderia explicar porque nos lançamos com tanto afinco ao trabalho e, às vezes, ao tortuoso ato de criar. Há muito pouco tempo de deslumbre ou de arrebatamento no ato criador A maioria das vezes é trabalho, muito trabalho, às vezes bastante enfadonho. Os poucos momentos iluminados, no entanto, compensam a procura. O problema é que esses raros momentos independem de nossa vontade e de nosso esforço. Essa é uma questão que me preocupa: de onde provém a criação? Onde nascem todas essas coisas? Imagino que se soubermos alguma coisa a respeito disso teremos andado um pequeno mas significativo pedaço de estrada. Se pudermos criar mais e melhor compensaremos o esforço de tantas horas por dia dedicadas ao trabalho da criação. Penso que é a esse equilíbrio entre o trabalho investido e o resultado alcançado que chamamos "o prazer da criação". Uma vez, ao terminar uma peça, não me senti nada satisfeito. Quando lia o texto, a sensação era de aridez e essa sensibilidade agravou-se com a encenação. Fiquei extremamente preocupado porque escrever a peça me havia causado muitíssimo trabalho e o resultado me havia desgostado em igual proporção. Foi uma experiência tão pouco satisfatória que decidi que não valia a pena repetí-la. Mas como não repetir o grosseiro erro de criar sem prazer se não entendia nada sobre o ato de criar? Aos poucos fui percebendo o óbvio: nosso conhecimento e repertório são bastante limitados. E, se essa fonte de criação logo cessa de jorrar, onde buscar uma fonte volumosa e mais perene? A resposta custou-me uma busca que dura até hoje e, seguramente, por mais anos que dedique à procura, não conseguirei desvendar uma mínima fração dessa inesgotável fonte, o desconhecido. Penetrar em um universo que não conhecia, aceitar imagens desconexas e dar-lhes formas vivas e comunicáveis, seguir atento e traçar caminhos num mundo sem estradas me pareceram um magnífico desafio. Descobri, então, um universo de imagens, histórias e sugestões inesgotáveis, o universo mítico. Norteei meu trabalho para criar a partir desse universo sagrado e não mais a partir de um dia profano e limitado. Isso não tornou mais fácil nem menos trabalhoso o processo criativo. Mas, pelo menos, não posso mais reclamar de aridez na criação.

MITOS E ARQUÉTIPOS
Descobrir o universo dos mitos e arquétipos foi para mim a salvação da lavoura. E, talvez, o mais importante foi a percepção de que esse universo não se situa num lugar distante ou de que se trata de uma terra sagrada, uma Canaã, cujo acesso só é permitido a iniciados. Tropeçamos diariamente com arquétipos e mitos e muitas vezes não os reconhecemos. Não precisamos nos reportar à Índia ancestral nem aproveitar histórias gregas dos tempos homéricos para dar suporte às nossas criações. Heróis e heroínas caminham na avenida São João e, em São Paulo ou no ABC, desenvolvem-se grandes sagas heróicas, com toda a grandeza das sagas gregas e escandinavas, que nossos olhos ainda não foram capazes de perceber, ou não tivemos talento, trabalho e amadurecimento para construir. É questão apenas de volver um outro olhar à terra e sobre os homens que nela caminham. Afinal, notícias de Medéias, Édipos e Coriolanos e inúmeros outros heróis e heroínas ainda não registrados em histórias e cantos, são dadas todos os dias nos jornais. Talvez o problema seja nosso olho que não vê. E, se vê, não acredita

FINALMENTE...
Sei que dramaturgia é um fundamento imprescindível ao Teatro e sei também que é talvez o elo mais fraco num processo de renovação teatral que apenas se inicia. Por que isso acontece não cabe discutir aqui. Mas é bom que se diga o óbvio: se a dramaturgia a imprescindível à renovação teatral que começa, não se completará sem ela. Modernamente, a dramaturgia tem sido um elemento afastado do processo do "fazer teatral", o dramaturgo era apenas o que "fazia o texto". Creio estar na hora de rever essas posições, principalmente porque o "entorno" do homem, suas relações com o mundo estão passando por mudanças extremamente rápidas e profundas. Uma das funções da arte, creio, é dar forma a essas mutações. E todo esforço, de todos os criadores, é necessário a essa tarefa.

JÚLIO GOUVEIA E TATIANA BELINKY - A EXPERIÊNCIA DO TESP

O "TESP" - Teatro-Escola de São Paulo - foi um grupo de teatro semi-amador especializado em espetáculos para crianças e adolescentes, que funcionou na cidade de São Paulo, de 1949 a 1964, quando encerrou suas atividades. De 1949 a 1951, o TESP se apresentou, todos os fins de semana, sem interrupção, em todos os teatros da Prefeitura da cidade, estreando no Teatro Municipal e levando a montagem cada semana a outra sala, primeiro nos outros teatros do Centro, depois nos teatros dos bairros, e depois na periferia, em teatros onde os havia, e onde não os havia, em outros espaços cênicos, auditórios de bibliotecas, cinemas de bairro, clubes, e ainda em hospitais etc. Foram cerca de três anos de atividade ininterrupta, com toda uma série de montagens, cada uma das quais era vista desde pelo público "burguês" do centro até o dos mais distantes distritos da periferia, portanto para todos os tipos de platéia infantil e juvenil, das mais diversas classes sócio-econômicas. E sempre com a casa lotada só de crianças, sem adultos acompanhantes a não ser alguns monitores, já que a própria Prefeitura fornecia ônibus com os quais mandava buscar as crianças dos parques infantis. Isto além de anunciar, com alto-falantes, em cada bairro, o espetáculo a ser apresentado. Por sinal com entrada franca, mas com ingressos impressos e numerados, e até com programas impressos, o que conferia maior "respeitabilidade" ao acontecimento. Tudo isso, evidentemente, se constitui numa experiência tão fascinante quanto instrutiva para os seus realizadores: o médico-psiquiatra e psicólogo Júlio Gouveia, que era o diretor artístico e orientador geral, e Tatiana Belinky, sua mulher, que escrevia os textos originais, traduções e adaptações. Em dezembro de 1951, o TESP foi convidado a se apresentar na recém-inaugurada TV Tupi de S. Paulo, com uma peça de Natal que estava sendo apresentada nos teatros da Prefeitura. E logo em seguida, dado o sucesso imediato, o grupo foi convidado para fazer um programa permanente na emissora. Era o "Fábulas Animadas", teleteatro de um ato, baseado no fabulário e no folclore nacional e internacional. E, pouco depois, os programas de TV do TESP já eram três: a série "Fábulas Animadas", que depois se transformou em seriado (tipo "novelinha", em 50 a 80 segmentos), baseado em obras literárias de várias origens, duas vezes por semana; a importante série "Sítio do Pica-Pau Amarelo", primeira adaptação para televisão no Brasil, baseada na obra de Monteiro Lobato, fiel ao original e conservando as características de humor crítico do autor, - uma vez por semana; e finalmente o "Era uma Vez", no começo contos-de-fadas e histórias maravilhosas, depois rebatizado para "Teatro da Juventude", a fim de ampliar a faixa etária e abranger uma temática mais diversificada, e que (diferente dos outros, que eram "capítulos" de meia-hora, quarenta minutos) era um grande teleteatro, com histórias completas de uma hora, hora-e-meia de duração, todos os domingos. Sempre com produção e direção de Júlio Gouveia, textos de Tatiana Belinky e o grupo semi-amador do TESP. Não um programa, mas toda uma programação de teleteatro ao vivo (ainda não existia o vídeo-tape), artístico, cultural e educacional - numa emissora comercial! - e que durou, sem solução de continuidade, cerca de 13 anos. E com uma audiência altíssima, alcançando "ibopes" de 60 e até 80%, isto com três emissoras já em funcionamento, provando que um programa "educativo" pode ter sucesso de público. E de crítica, como mostram os inúmeros prêmios de "Melhor do Ano" ganhos pelo TESP. Interessante notar que todos os programas, todas as "estórias" contadas e mostradas pêlos teleteatros do TESP eram baseadas em literatura (nacional e internacional, clássica e moderna, fantástica, realista, histórica) e promoviam abertamente a leitura, sempre remetendo o telespectador ao livro: cada programa começava numa estante de livros: o narrador (o próprio Júlio Gouveia), tirava um livro da estante, dizia o título, o nome do autor, e começava a ler as primeiras linhas da estória. Só então as câmeras passavam para o espetáculo propriamente dito. E o programa se encerrava voltando para o livro, com algumas palavras finais do narrador, e um "fechamento" clássico: para o "teatrão" dominical, que era uma estória completa, era "... e assim terminou a estória; entrou por uma porta, saiu por outra, quem quiser que conte outra". E para os capítulos dos seriados, a conclusão era um "gancho": "... então . .. bem, mas isto já é uma outra estória, que fica para uma outra vez." Durante todos aqueles anos, os cinco programas semanais mantiveram altos índices de audiência e popularidade, e o TESP só deixou a TV porque seu diretor resolveu voltar ao seu consultório médico, tendo retornado em 1968 para outra emissora, a TV Bandeirantes, onde fez o "Sítio do Pica-Pau Amarelo-" durante 14 meses, todos os dias, já em vídeo-tape. Depois disso, afastou-se definitivamente dessas atividades. Mas o "feedback" daquele trabalho se faz sentir até hoje, quando pessoas de todas as idades vêm falar com Tatiana Belinky ou Júlio Gouveia, para lamentar que não existam mais aqueles programas, e dizer coisas como "devo a minha formação aos seus programas", ou "seus programas me ensinaram a ler e a amar os livros." De modo que os seus realizadores sentem e sabem que fizeram um trabalho importante, que pegou várias gerações de crianças, baseado em toda uma "filosofia" elaborada ao fim dos primeiros três anos de teatro infanto-juvenil em palcos diversos, diante de platéias diversas, e que depois foi aplicada à televisão, para platéias infinitamente maiores. Essa "filosofia", que acreditamos válida até hoje, foi exposta por Júlio Gouveia num ensaio-tese apresentado no Primeiro Congresso Brasileiro de Teatro. Ensaio esse que, com pequenas modificações e acréscimos, segue abaixo.

O TEATRO PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES - BASES PSICOLÓGICAS, PEDAGÓGICAS, TÉCNICAS E ESTÉTICAS PARA A SUA REALIZAÇÃO.

Desnecessário seria enfatizar que, entre as várias funções do teatro para crianças, uma das mais importantes - talvez a mais importante, é a função de educar. Ê óbvio que a função de educar não deve ser interpretada meramente no sentido estrito e rigoroso de conduzir, domar ou domesticar. Educar é fornecer os instrumentos intelectuais, morais e éticos necessários à criança (e ao ser humano em geral) visando à sua integração individual, familiar e social, consciente e responsável. Educar é fornecer ao indivíduo condições para percorrer em pouquíssimo tempo o longo e árduo caminho de milênios que levou do homem primitivo ao homem civilizado, através do aprendizado por "trial and error", ao relacionamento humano autêntico e construtivo, ou seja, a aprender que é preciso respeitar para ser respeitado, e assim garantir a sua tranqüilidade pessoal e o bem-estar social. No palco, devemos criar situações e conflitos que precisam ser resolvidos. E a maneira encontrada para essa solução vai desencadear na criança processos mentais que a levarão a formular conceitos de comportamento e de relacionamento adequados para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade. Assim, a maior assiduidade da criança ao bom teatro acaba por colocá-la em contato com toda sorte de situações e conflitos, ampliando, por extensão, os seus próprios processos mentais. Através deste mecanismo, o teatro se torna uma das poucas agências educacionais que, ao invés de "fazer a cabeça" da criança (expressão horrorosa, tão em moda nos nossos dias), abre a cabeça da criança, tornando-a apta a avaliar por si mesma o "bom" e o "mau", o "certo" e o "errado". Esta criança vai deixando de "engolir sem mastigar" julgamentos apriorísticos baseados nos conceitos deturpados, viciados e falsos (melhor dito, preconceitos) adquiridos por contaminação da maioria dos adultos. Preconceitos e imensurável e estúpido acirramento, que com tanta freqüência criam neuroses e acabam sendo os principais responsáveis pelo encaminhamento do adulto ao psiquiatra. Porém não há dúvida de que o teatro para crianças tanto pode contribuir para a educação como para a deseducação. Depende do grau de competência e seriedade do autor e do diretor, e até mesmo do mais obscuro dos atores. Certa vez perguntaram a Stanislavsky, o grande teatrólogo russo criador do "método" que leva seu nome, como deveria ser o teatro para crianças. Ele pensou um instante e respondeu: "Igual ao dos adultos, só que melhor". Concordamos, porém em termos, já que os critérios aqui não podem ser absolutos, e sim relativos. Pois, se cada público tem o teatro que merece, por outro lado nenhum teatro pode ir além das possibilidades do seu próprio público. E por isso convém indicar quais as medidas que devem ser postas em prática a fim de preparar públicos cada vez melhores, tanto qualitativa como quantitativamente, para produzir a "reação em cadeia" que, ao dar ao público um teatro cada vez melhor, cria ao mesmo tempo um público cada vez mais exigente e melhor para o teatro. Portanto, no teatro como na medicina, ao lado das medidas curativas, isto é, a reeducação dos adultos imbuídos de preconceitos - tarefa ingrata, lenta e de resultados duvidosos - teremos de utilizar também e principalmente os métodos profiláticos, a saber: evitar na criança a formação de concepções falsas, desenvolver o interesse pelas coisas de teatro, e, divertindo-a, elevar o nível intelectual e artístico das novas gerações. Desta forma, chegaremos mais depressa ao dia em que o teatro, tanto o infantil como o adulto, poderá contar com um público numeroso, consciente e de padrão cultural elevado. Assim, fica claro que, enquanto o teatro para adultos deve ser encarado pelo aspecto cultural, o teatro para crianças e adolescentes só pode ser considerado como educativo - o que nos obriga imediatamente a colocá-lo no âmbito da pedagogia (aplicada), lembrando sempre que "o teatro é para a criança, e não a criança para o teatro", e que a principal finalidade do teatro para crianças não consiste apenas em formar para o futuro um público adulto de boa qualidade, mas implica primordialmente determinadas influências psicológicas de alcance muito maior do que se pensa usualmente. E isto porque todos os acontecimentos do palco passarão a fazer parte do subconsciente da criança, constituindo "engramas" e contribuindo para a formação daquele fabuloso depósito mais ou menos inconsciente de idéias e emoções, que terá posteriormente uma tremenda participação na inteligência, na sensibilidade e no comportamento da pessoa adulta. Educar uma criança é integrar a sua personalidade dentro da sociedade, sem prejuízo do senso crítico; é iniciar o processo de maturação que se prolongará por toda a existência do indivíduo. Esta integração e este amadurecimento, que constituem a base da saúde mental ideal, requerem uma harmonia perfeita entre o intelecto e as emoções; emoções que necessitam de treino, e este treino das emoções só pode ser conseguido através da participação efetiva em experiências pessoais verdadeiras. Entretanto, é claro que experiência real, em todas as situações da vida, não é possível nem desejável, especialmente em se tratando de crianças. Constatou-se, porém, que as experiências pessoais imaginadas também podem servir para exercitar e desenvolver as emoções, desde que constituam verdadeiras experiências, vivências acompanhadas de participação afetiva. Podemos, pois, valer-nos de experiências imaginárias, "vicariantes" ou "vicárias", realizadas por projeção, para, através de expressões emocionais, encarar de perto todas as relações e reações humanas. E o melhor elemento de que dispomos, para isso, é o teatro. A experiência já demonstrou sobejamente, nos Estados Unidos, na União Soviética e em alguns países europeus onde foram feitas pesquisas sobre o público teatral, que a integração e o amadurecimento da personalidade avançam um passo a cada experiência estética fornecida pelo teatro. E quanto mais verdadeira, autêntica, for a experiência estética, tanto mais profundo será o resultado educativo. Assim sendo, o valor de uma peça para crianças, ou de uma peça para adolescentes, não deve ser julgado apenas em função da sua popularidade (embora este seja um ingrediente importante), ou do resultado financeiro, mas sim através da sua contribuição para o desenvolvimento intelectual, emocional e estético dos espectadores. A primeira conclusão de tais fatos é que toda peça para crianças e adolescentes deve apresentar um conflito perfeitamente delineado, com personagens bem caracterizados e uma situação absolutamente clara, para que o jovem espectador, através da identificação com um dos personagens (ou com uma situação) sofra uma experiência, uma vivência pessoal verdadeira, com a correspondente participação emocional. Uma peça sem conflito, sem "nó dramático", pode até resultar numa contribuição estética de qualidade, mas a permanência dessa contribuição estética e a sua incorporação à personalidade da criança serão duvidosas - justamente por faltar a participação afetiva que só um conflito pode produzir, e porque somente a participação afetiva é capaz de fixar o resultado das experiências vividas. O segundo princípio básico do teatro para crianças e adolescentes é que o gosto, o interesse e a preferência desse público não podem ser avaliados e julgados diretamente pelos adultos, pois o mundo da criança é para o adulto um mundo diferente, estranho e fechado. Entre as maneiras de avaliar o interesse das crianças, devem ser recusadas e imediatamente postas de lado as seguintes: 1 - Julgar exclusivamente em função das manifestações de entusiasmo ou de júbilo durante o espetáculo. Pois não só é muito fácil provocar essas manifestações das crianças - o que absolutamente não implica boa qualidade do espetáculo - como também é muito difícil distinguir se tais manifestações partem propriamente do público infantil ou se é dos adultos que usualmente estão presentes na platéia, "incentivando" (ou tolhendo) as crianças. 2 - Entrevistar as crianças diretamente. E isto porque nenhum adulto deve pensar ou esperar que uma criança lhe confie a sua opinião real, pois mesmo que a criança estivesse disposta a isso (o que é raro) não saberia como fazê-lo. Além do que, a própria situação de entrevistado cria neste uma inibição. E mesmo que a criança responda, o mais provável é que ele queira "agradar" o adulto e procure dizer o que imagina que o adulto espera dela. A única maneira de tentar vislumbrar o que se passa no íntimo de uma criança é através da. experiência e da observação, abstraindo tanto quanto possível a situação adulta do observador, aplicando todos os conhecimentos de psicologia infantil e da pedagogia, e empregando o método científico clássico: a) observação; b) hipótese para interpretação do fato observado; c) experiência provocada para verificar a exatidão da hipótese; d) nova observação, com conseqüente confirmação ou desmentido da primeira interpretação. Este processo, que é utilizado há muitos anos na União Soviética e é aplicado também nos Estados Unidos, consiste no seguinte. O autor escreve uma peca, que supõe apropriada para crianças de determinados limites de idade, entrega-a ao diretor artístico especializado, o qual monta a peça e apresenta-a a um público-padrão, constituído de crianças de idades dentro daqueles limites e com características psicológicas conhecidas. Durante o espetáculo, o diretor artístico, o autor e alguns educadores e especialistas em psicologia infantil observam e anotam todas as reações do público, e tiram fotografias (com infravermelho) sincronizadas palco-platéia em determinadas passagens da peça. E é de acordo com essas observações que a peça será aprovada, modificada ou rejeitada para público daquela faixa etária. Neste último caso, o processo repete-se com públicos de idades maiores ou menores, até se encontrar o público certo para a peça, ou se resolva que ela não serve para crianças, mesmo alterando o texto. (Ë claro que isto é bem mais difícil no Brasil, por ora, enquanto ainda não se estabeleceu o hábito salutar de se levar as crianças ao teatro em turmas escolares). Para avaliar o interesse e as preferências do público jovem, o inquérito por escrito pode dar bons resultados, conforme constatamos em experiência realizada pela União Paulista de Educação, com cerca de mil crianças. O inquérito que realizamos baseia-se numa série de perguntas preparadas pelo professor Solon Borges dos Reis. As perguntas são formuladas por escrito e sem intervenção da professora. O exame e a comparação das respostas darão informações bastante precisas, especialmente se o mesmo inquérito for realizado com o mesmo público depois de diversos espetáculos, com peças diferentes. De uma forma ou de outra, no teatro para crianças e adolescentes, a peça deve ser apropriada para o público, partindo do ponto de vista deste e não do ponto de vista do adulto. E para tanto precisamos conhecer o público infantil, estudar seu comportamento durante e depois do espetáculo, e apresentar as conclusões aos autores de peças para crianças, para que eles possam produzir textos cada vez melhores e capazes de orientar os jovens, tanto do ponto de vista estético como do ponto de vista pedagógico, sem jamais esquecer o lúdico. Fazemos nossa a frase com que John E. Anderson encerrou o VI Congresso Americano de Teatro para Crianças: "Encerro a minha contribuição para este Congresso com o voto para a maior e melhor observação e estudo das reações das crianças nos teatros, pois uma pessoa sentada a uma escrivaninha, por mais competente que seja, dificilmente poderá nos dizer o que convém às crianças, orientando-nos nesse mundo maravilhoso e cheio de mistério que é a alma infantil." O terceiro ponto básico no teatro para crianças decorre do segundo, e é a necessidade de separar o público de acordo com as idades. O desenvolvimento mental, emocional e intelectual é tão diferente nas diversas idades, que apresentar uma peça a um público heterogêneo, formado por crianças de 4 ou 5 anos, ao lado de crianças com 10, 11 ou 12, é simplesmente absurdo, e tão obviamente errado, que dispensa comentários - especialmente se nos lembrarmos de que até para freqüentar a escola primária ou o ginásio há limites de idade, de acordo com a legislação. Aliás, a maneira mais lógica e mais viável de separar por idades o público dos espetáculos é em função do ciclo escolar: pré-escola ou Jardim da Infância, escola de 1 grau ou 2 grau, constituindo este último o público do teatro para adolescentes propriamente dito. Infelizmente, porém, a separação por idade nem sempre é possível entre nós, já que poucas escolas levam os alunos ao teatro, e os pais ainda não desenvolveram o hábito de levar os filhos aos espetáculos teatrais (onde os há), muito menos de verificar a que faixa etária essa ou aquela peça é adequada. Mas nem por isso a separação por idades deixa de ser desejável, e devemos realizá-la sempre que possível, evitando assim que os nossos espetáculos sejam prejudiciais para as crianças pequenas e insuficientes e insatisfatórios para as maiores. E para isso seria bom que os jornais e revistas (e a imprensa em geral) mantivessem sessões permanentes de crítica e informação sobre teatro infantil, para orientação de pais e mestres. Entrelaçada com a questão da separação por faixas etárias está a questão dos personagens maléficos, as bruxas, os vilões e outros "adversários" necessários. Consideremos aqui dois pontos: 1 - As atitudes dos personagens, as situações em que eles se encontram e os conflitos que enfrentam podem e devem ser dosados e controlados, na medida em que as situações e as personalidades dos personagens sejam tais, que já contenham em si todas as possibilidades de uma solução plausível (e o plausível da criança certamente não exclui o mágico) e satisfatória. Nessas condições, qualquer emoção sofrida pela criança em sua identificação com o personagem só poderá ser benéfica (e catártica), pois servirá para mostrar à criança que as dificuldades devem ser enfrentadas e podem ser vencidas, dominadas ou ultrapassadas. De qualquer forma, o "final feliz" é necessário e importante para a criança, especialmente a menorzinha. 2 - É evidente que a idade das crianças, aqui mais do que em qualquer outro ponto, é elemento de capital importância. Pois o mesmo acontecimento, ou personagem, ou situação, que para uma criança de 10 ou 11 anos seria apenas interessante, às vezes até ingênuo demais, às vezes cômico, ou no máximo emocionante, para uma criança de 5 ou 6 anos pode apresentar-se como terrivelmente dramático ou mesmo constituir motivo de pânico. Assim sendo, se outras razões não existissem, esta seria suficiente para que em todos os espetáculos para crianças houvesse sempre pelo menos a indicação das idades apropriadas para aquela determinada peça. E esse cuidado é também de capital importância nas peças para pré-adolescentes e adolescentes, pois estes, em conseqüência das suscetibilidades características da fase que atravessam, tenderão a se afastar dos espetáculos teatrais, se as peças que lhes dermos apresentarem "infantilidades" impróprias para a sua dignidade de "gente grande". Entretanto, não há dúvida de que existem textos e espetáculos com vários níveis de leitura, que podem ser assistidos com proveito por um público heterogêneo - mas são casos especiais. O quinto ponto básico a considerar na realização do teatro para crianças e adolescentes é a questão da "participação". Participação, em última análise, nada mais é do que demonstração de interesse e envolvimento pelo que acontece no palco. A exteriorização desse interesse -que pode chegar à empolgação e à absorção - e que, como sabemos, é o indicador mais importante da qualidade (e comunicabilidade) do espetáculo - pode ser verificada durante a função de duas maneiras principais: pela observação das expressões faciais e corporais do público e pela observação dos ruídos provenientes da platéia. A primeira é mais difícil, pois exige vários observadores; ou implica fotografias, com as conseqüentes possíveis perturbações e desvios de atenção. Resta-nos, porém, a possibilidade de observar a participação do público através dos ruídos da platéia. Os ruídos da platéia constituem um dos capítulos mais interessantes do teatro para crianças. Antes de mais nada, porém, é necessário ter-se a certeza de que os ruídos partem do público infantil e não dos adultos que usualmente acompanham as crianças. (Aliás, quanto menos adultos na platéia do teatro para crianças, tanto melhor, pois tanto maior será a receptividade e a espontaneidade das crianças). As manifestações sonoras do público infantil são características e de vários tipos, representando cada um deles coisas totalmente distintas. Boa classificação, completa e concisa, é a de Mrs. Filed, da Arthur Rank Organization: "As platéias infantis são as mais exigentes do mundo. Demonstram a sua aprovação ou desaprovação por cinco tipos diferentes de ruídos. Quando ficam entediados, dizem-no em voz alta ou começam a conversar entre si sobre qualquer outra coisa. Barulho agradável é quando começam a falar e a discutir sobre o que está acontecendo no palco. Barulho delicioso, quando reagem e dão gritos, e melhor ainda quando dão gostosas gargalhadas. Mas, evidentemente, quando estão silenciosas é maravilhoso". Portanto, o melhor "ruído" da platéia é o silêncio absorto e encantado. A verificação da qualidade de uma peça através dos ruídos do público deve ser feita, porém, com grande cautela, especialmente no que se refere aos gritos e gargalhadas. Com efeito, esses ruídos tanto podem traduzir uma participação natural e autêntica, como podem ser apenas o resultado de estímulos provocados deliberadamente, "de má fé", com recursos desprovidos de qualquer conteúdo emocional, ou com situações vulgares e sem significação estética. Estariam nesse caso certas correrias, certos trambolhões realizados em grande parte das peças infantis, e, em especial, as perguntas (em geral nada menos que idiotas ou provocadoras de "delação") dirigidas pelos atores diretamente ao público, com a intenção de arrancar "respostas" gritadas, que nada mais são senão um berreiro infernal, vulgar e sem sentido, que só produz uma excitação gratuita, que é o oposto da emoção verdadeira. Entramos assim no terreno da comicidade infantil. Toda peça para crianças deve conter uma grande dose de humor e comicidade, pois a criança precisa de alegria e de risos para descarregar os excedentes de energia nervosa, e, no teatro, para avaliar a tensão das situações dramáticas. É claro, porém, que nem todas as formas de comicidade estão ao alcance da criança, como também aqui cada idade tem as suas limitações próprias no que se refere ao humor. Por exemplo, o paradoxo e a ironia são formas de comicidade de difícil compreensão para a criança, enquanto que mesmo o trocadilho banal pode tornar-se difícil quando a idade implica recursos vocabulares muito reduzidos. Entretanto, as brincadeiras com palavras, o "non sense" verbal, dentro do nível de compreensão de cada grupo etário, são bem aceitas e muito úteis. Partindo do princípio de que não é a simples apreensão do fato acontecido o que suscita a comicidade e gera o riso, pois sabemos que o mesmo acontecimento pode provocar tanto a emoção quanto a hilaridade, somos forçados a admitir que a comicidade só se realiza quando o indivíduo em questão é capaz de realizar a chamada "representação efabuladora", ou seja, agir como se ele contasse para si mesmo a história referente ao fato cômico. Portanto, a comicidade depende do grau de inteligência, de sensibilidade, de cultura e de educação do indivíduo que ri. Isso explica por que a comicidade infantil é tão limitada e depende tanto da idade de quem ri. (E justifica em parte o "humor do trambolhão", quando usado com parcimônia, já que é um tipo de humor "circense", acessível até às crianças bem pequenas). O indivíduo que ri admite implicitamente relações com a personagem de quem ri, e reconhece o mundo em que este se movimenta. Ë por essa razão que as formas de comicidade são o humor do absurdo, do disparate ("non sense") e o "humor da cumplicidade". O humor da cumplicidade é a nosso ver uma forma de humor bem característica da criança, e consiste em fazê-la participar do segredo da personagem (herói ou não). Trata-se aqui de legítimo "humour", pois não há gargalhadas mas apenas um sorriso feliz e silencioso. Nada deleita mais o público infantil do que um herói, personagem superior, deixá-lo participar de alguma coisa que as outras personagens, comuns, parecem ignorar. E, finalmente; não nos esqueçamos de que a coisa mais difícil e mais maravilhosa em teatro para crianças é conseguir o silêncio da platéia. Há quem ache, absurda e desavisadamente, que uma criança sentada e quieta no seu encantamento está "passiva" - mal sabem estes que a atenção concentrada, a absorção mental, é uma atividade, e das mais nobres, pois atividade intelectual e emocional. Tudo o que dissemos até aqui refere-se naturalmente a teatro para crianças representado por adultos (ou em alguns casos por estudantes dos cursos mais adiantados), e é aos adultos que compete realizá-lo, posto que só atores adultos e amadurecidos serão capazes de apresentar espetáculos de boa qualidade artística e educacional. Só eles - competentes e experientes - serão capazes de estabelecer as necessárias relações entre palco e platéia, orientando e controlando as reações do público infantil. Sem falar que um teatro estável é um trabalho profissional árduo, certamente inadequado para crianças. Entretanto, o teatro representado pelas próprias crianças e adolescentes deve ser igualmente estimulado - na escola, na biblioteca, no clube - não só porque também constitui importante elemento de formação do hábito do teatro, como, principalmente, porque contribui como poderoso fator educativo para o desenvolvimento da personalidade "social" da criança, graças ao espírito de cooperação que caracteriza o trabalho em equipe, indispensável à realização de um espetáculo teatral. Sem falar no fator de desenvolvimento intelectual implícito no estudo e ensaio de um texto teatral. E há ainda o importantíssimo capítulo do "playmaking", do "jogo dramático", que deve ser estimulado - deveria mesmo fazer parte do currículo - nas escolas, desde tenra idade, atividade essa na qual as crianças "brincam" suas estórias espontaneamente, mas sob orientação das professoras ou de especialistas, e que se constitui em possante auxiliar no desenvolvimento emocional e na socialização da criança - mas isto já é outro assunto, que não cabe neste trabalho. Em nenhum caso, porém, sejam representados por adulto ou por criança, os espetáculos devem ser feitos "a portas abertas". A entrada do público infantil em qualquer representação teatral deve ser sempre mediante ingressos adquiridos - a preços acessíveis, mesmo simbólicos, mas adquiridos. E de preferência com lugares numerados. Ou, em alguns casos, quando não for paga, a entrada deverá ser feita mediante convites, ou ingressos-convites, obtidos antecipadamente. De uma forma ou outra, é importante que a criança perceba que deve dispender alguma coisa - dinheiro, tempo ou esforço-para assistir um espetáculo teatral. O teatro tem de se dar ao respeito. E essa será uma das melhores maneiras de, desde o começo, darmos o devido valor ao teatro perante o público ainda em formação. E, na mesma ordem de idéias, devemos abolir o abominável costume de distribuir balas ou presentinhos, ou, pior ainda, de realizar sorteios antes, durante o intervalo, ou depois da representação. O teatro é atividade de lazer cultural que constitui em si mesma um prêmio que dispensa quaisquer chamarizes, engodos ou "subornos". Todas essas considerações, em última análise, nada mais são do que uma maneira de desenvolver aquela frase de Stanislavsky: "O teatro para crianças deve ser igual ao dos adultos, só que melhor".

BETH NÉSPOLI - O MAIS FAMOSO E MAL INTERPRETADO MÉTODO DE ATOR

No ensaio de uma peça teatral, atores e atrizes estão deitados imóveis no chão e assim permanecem durante horas. Uma técnica de relaxamento? Não, trata-se de um laboratório fundamental para a criação do espetáculo, segundo o diretor, no qual eles devem compreender como se sente "um cadáver". O tal diretor jura estar aplicando um dos exercícios sugeridos pelo russo Constantin Stanislavski (1863-1938). A história absurda ocorrida na década de 70, "digna de uma peça de Ionesco", narrada pelo ator Ewerton de Castro é mais uma no imenso folclore de distorções do método de ator criado por Stanislavski, sistematizado e divulgado principalmente por meio de 3 livros, entre os 13 do autor. Os três foram publicados no Brasil pela editora Civilização Brasileira: A Preparação do Ator (12ª edição), A Construção da Personagem (8ª edição) e A Criação do Papel, cuja 6ª edição acaba de ser lançada.

Muitos acreditam que tais distorções teriam sido evitadas se os três livros tivessem sido editados simultaneamente ou, pelo menos, os intervalos não tivessem sido tão longos.

A Preparação do Ator foi publicado em Nova York em 1936, traduzido por Elizabeth Reynolds Hapgood a partir de um manuscrito enviado pelo autor. Em 1964, o mesmo livro foi publicado no Brasil numa tradução de Pontes de Paula Lima a partir da versão americana.

A Construção da Personagem só seria publicado em língua inglesa em 1949, portanto 13 anos depois do primeiro. No Brasil, foi traduzido por Pontes também a partir da versão em idioma inglês, em 1970.

A Criação do Papel foi publicado pela primeira vez nos Estados Unidos em 1961 e só chegaria ao País, igualmente traduzido Pontes da versão americana, na década de 80.

Memória afetiva - A defasagem entre as publicações certamente foi um dos motivos do mau entendimento do método. Isso porque no primeiro livro Stanislavski desenvolve exercícios para treinar as qualidades interiores do ator, como imaginação e concentração, incluindo-se aí a muito e às vezes "mal" aplicada "memória emotiva". O segundo enfoca preparação física, voz, gestos, o corpo. A Criação do Papel é dedicado à etapa final, a preparação de papéis específicos, a partir da leitura de textos teatrais. No livro, o autor utiliza três deles como exemplo: A Desgraça de Ter Espírito, de Griboyedov; Otelo, de Shakespeare; e O Inspetor Geral, de Gogol. O diretor Augusto Boal estudou na Universidade de Columbia a partir de 1952 e viu in loco a aplicação do método - ou a parte que se conhecia dele - no prestigiado Actor's Studio.

"O problema na adaptação americana do método foi o excesso de subjetividade", diz. "Para responder a uma pergunta simples do tipo "como vai", o ator pegava lentamente um copo, rodava-o na mão, bebia um pouco, andava até a parede e só então voltava sobre si mesmo e respondia: `Tudo bem'." Boal ressalta que nesse processo intenso de pesquisa interior - muitas vezes sobre as próprias emoções e não as do personagem - o ator acabava falhando nas inter-relações, ou seja, na contracena e também apreendia mal a idéia geral da peça. "Não basta estar emocionado: é preciso saber a qual idéia, mais ampla, serve aquela emoção." Ele lembra ainda que, além da defasagem entre as publicações, Stanislavski nunca parou de pesquisar e seguiu escrevendo livros, jamais editados no Brasil. "Tenho um livrinho fininho dele, um estudo sobre a ação física, muito interessante, no qual parte da ação para emoção: no lugar do ator entender qual é a emoção necessária para levar um personagem a pegar uma pedra e atirar numa vidraça, primeiro ele quebra a vidraça para depois entender o que sentiu."

Arlete Cavallieri, professora de cultura russa da Faculdade de Letras da USP, ressalta a importância dessas publicações, "sempre bem-vindas", mas lamenta o fato de serem traduzidas a partir das versões americanas. "Entre os livros de Stanislavski publicados no Brasil, somente Minha Vida na Arte, editado pela Perspectiva, foi traduzido diretamente do original russo pelo professor Paulo Bezerra." Segundo ela, uma boa tradução poderia desfazer algumas dessas distorções. Especialista no "método", que ela prefere chamar de "sistema", a russa Elena Vassina já esteve em diversos países realizando palestras e oficinas para atores sobre o assunto. Apaixonada pelo Brasil, um amor que nasceu a partir de suas primeiras leituras de traduções russas de romances de Guimarães Rosa e Érico Veríssimo, entre outros, Vassina aprendeu o idioma português e esteve no Brasil várias vezes ministrando palestras sobre o método. Há uma semana ela voltou ao País para dar um curso de quatro meses na Faculdade de Letras da USP.

Close - Segundo ela, a apreensão do método em todo o continente americano é claramente diferente da do resto do mundo. "Na América, o enfoque foi centrado essencialmente na memória emotiva, o que é muito útil para os atores de cinema e Hollywood é prova disso." Isso porque um "close" da câmera tem o poder de captar no olho do ator toda a gama de emoções interiores por ele investigada. No palco, o ator está distante do espectador, que jamais poderá ver no seu olho o trabalho interior realizado em meses de ensaio. "Na Rússia, o enfoque maior foi dado à análise do personagem, à criação do papel e do espetáculo." Stanislavski hesitou em escrever sobre seu sistema temendo que o "seu registro escrito pudesse assumir o aspecto de uma espécie de bíblia," diz a tradutora americana Elizabeth. Nada mais premonitório. Escaldado, o ator Ewerton de Castro, ao fundar a escola de formação de atores que leva seu nome, instituiu uma regra. "Stanislavski é leitura obrigatória, mas só depois de um ano de freqüência à escola."

O Estado de São Paulo - Caderno 2 - Página D-7.
14/08/1999.

RUBENS CORRÊA - RECADO AOS JOVENS ATORES

Fui convidado para conversar com vocês sobre o ator; sei que muitos aqui jamais representaram, e outros deram apenas os seus primeiros passos neste caminho labiríntico que é o mundo da interpretação. É uma tarefa que exige de mim sensibilidade e coragem; acho uma grande responsabilidade falar aos jovens, e é com muita emoção e prazer que passo adiante as humildes sementes do meu trabalho artístico, com a esperança de que alguma utilidade possa ser encontrada nelas e que de alguma maneira elas possam lhes tornar a caminhada menos solitária e mais solidária, na medida em que esta receita muito pessoal provoque dúvidas e reconsiderações, ou toque o sagrado dentro de cada um de vocês, ou reacenda aquela esperança cega que Prometeu garantiu ser a conquista mais urgente para a sobrevivência do homem neste planeta. O grande poeta e dramaturgo alemão Büchner escreveu numa cena de sua peça "Woyzeck": "Cada ser humano é um abismo e a gente tem vertigens quando se debruça sobre um deles." Acho que nós, atores, somos duplamente esse abismo-espelho: como seres humanos e como artistas. Nossa missão é provocar a vertigem e o revisionamento do abismo dentro de cada espectador, para que depois de cada mergulho em nossos personagens-propostas, essas pessoas pensem, se emocionem, compreendam, e amem com nova e maior intensidade. Eu, Rubens Corrêa, ator e artista de teatro, vinte e oito anos de profissão, e séculos e mais séculos de um longo período mão sei onde, ofereço a vocês com apaixonada humildade o meu aprendizado nesta caminhada em cima das brasas sem se queimar, que é a condição necessária para poder representar e viver com algum significado, neste bizarro país sul-americano. A primeira revelação que tive no ato de representar foi durante a minha infância na minha cidadezinha matogrossense: levaram-me ao circo numa certa noite - um dos poucos circos que se atreviam a ir tão longe em suas excursões pelo Brasil da década de 30. Lembro-me até do nome: Circo Teatro Zoológico. Ao final da primeira parte, depois dos trapezistas, palhaços e animais - pediram que colocássemos nossas cadeirinhas na arena central frente a uma cortina fechada por onde entravam os artistas para fazerem os seus números. Muitas marteladas, ruídos, depois o silêncio, e as clássicas 14 batidas de Molière anunciando o início do espetáculo. Aquela cortininha se abriu, e nos foi contada uma história. Aquilo me pareceu uma brincadeira excelente, e no dia seguinte, comandei o feitio de um circo no quintal de minha casa, ajudado pelos amigos, pelos lençóis da minha mãe e alguns bichos domésticos convidados para abrilhantar a apresentação. Mas faltava algo: lembrei-me então daqueles rostos magros pintados de dourado e de suor, de um certo hálito de cachaça que se notava quando eles se chegavam até nós para vender retratos nos intervalos,e não sei o que de mágico e agressividade nas fisionomias. Não dispunhamos daquela energia, daquela sedução, nem daquela maldição, e o nosso circo malogrou. Mas eu, a partir daí, passei a brincar de fazer figuras, caretas, vultos, máscaras e tipos - em frente do grande espelho do guarda-roupa de minha mãe. Esse foi o meu primeiro palco. Mas ficou-me para sempre a nostalgia da beleza daqueles meus irmãos desconhecidos, maltratados e fascinantes que marcaram para sempre com ferro em brasa a palavra TEATRO no meu coração. Anos mais tarde, já no início da década de 40, me mandaram para um Internato Marista no Rio de Janeiro. Fora das disciplinas normais que me entediavam mortalmente, estudei piano, aprendi cantochão, li Shakespeare, Calderón de la Barca, Gil Vicente, descobri música erudita e fui "coroinha", que era como chamavam os alunos que "ajudavam" na missa. O prêmio era sempre um pouco de vinho e hóstias não consagradas, mais uma saída extra por mês. Mas o que me interessava era o ritual teatralizado da missa: o texto decorado em latim, as batinas especiais, as músicas de órgão e os cantos que acompanhavam a cerimônia, mais as campainhas, o cálice, as flores, o incenso e as velas. Ajudar a missa para mim era representar. Aos poucos, porém, fui descobrindo uma espécie de logro naqueles cerimoniais; o desinteresse e a mecanidade dos padres que celebravam o ofício e toda uma sensação repressiva que o catolicismo passou a exercer sobre mim, desmancharam a magia deste meu segundo palco. Saí do colégio com a idéia de ser pianista. Assistia aos espetáculos teatrais da época feitos em cima de grandes vedetes, mas a ausência de poesia naqueles espetáculos acabou neutralizando dentro de mim aquela paixão instintiva pelo palco. Até que um dia assisti ao "Hamlet" feito pelo Teatro dos Doze, com Sérgio Cardoso no protagonista, e esse espetáculo, mais a inesquecível e apaixonante interpretação de Sérgio me revolveu as entranhas e criou dentro de mim a necessidade de uma opção: "Teatro ou Música". Fui obrigado a servir o exército e aproveitei essa calamidade para me permitir um tempo de espera antes da resolução. Porque havia um problema terrível: onde começar, como estudar e praticar? É o problema de cada nova geração e naquela época as poucas escolas não me satisfaziam e os grupos profissionais estavam por demais mergulhados no comercialismo. Aí apareceu o "Tablado". Assim que terminei o exército, ganhei uma vez, por acaso, um convite para a estréia do grupo. Era tudo o que precisava. O espetáculo tinha conjunto, equilíbrio, acabamento, simplicidade e poesia. No dia seguinte saí a procura de um professor de voz e durante dois anos me preparei para entrar no "Tablado". Estudei voz e interpretação com Martinho Severo e depois fiz o Curso de Direção da Fundação Brasileira de Teatro orientada por Adolfo Celi, Ziembinski e Gianni Ratto. No "Tablado", fiz inicialmente algumas comparcerias, coro e pequenos papéis, mas minha estréia mesmo aconteceu em dezembro de 1955 com a peça de Anton Tchecov , "Tio Vânia", onde fazia o papel de Ilia Ilitch, com direção de Geraldo Queiroz. Permaneci no Tablado durante quatro anos onde aprendi o amor e o cuidado no exercício da minha profissão, e onde dei os meus primeiros passos como ator e homem de teatro. Saí do Tablado em fins de 58, para fundar com Ivan de Albuquerque um grupo que inicialmente chamou-se Teatro do Rio, localizado no teatro de mesmo nome na rua do Catete, hoje Teatro Cacilda Becker, e que depois, com a nossa mudança para o teatro próprio em Ipanema, passou-se a chamar Teatro Ipanema. Este ano estamos completando 25 anos de atividades teatrais e estamos em cartaz com uma peça de Fauzi Anap, "Quase 84".

O CÁLICE
Representar para mim é a possibilidade que me foi dada de me comunicar com o meu semelhante através de uma troca de idéias, imagens, palavras, gestos e emoções. Um divertido, fascinante e muitas vezes cruel, jogo que mistura ficção, realidade, consciente e inconsciente, sagrado e profano, amor e ódio, vida e morte. Uma paixão. Através dos anos, venho elaborando em cima das tábuas, o meu trabalho, tentando sempre o difícil equilíbrio entre as conquistas técnicas e a simplicidade da execução. Aqueles instantes, todas as noites em que represento um papel. são sempre os melhores momentos do meu dia. Isso quer dizer que levo para o palco meus sentimentos, minhas idéias, minhas alegrias, meus abismos, meu horror e minha luz. Diariamente filtro essas emoções através das necessidades de cada personagem, e recebo de volta para mim mesmo, uma nova compreensão de meus problemas - e acrescento ao personagem um novo enriquecimento conseguido "a quente", quer dizer, arrancado de mim mesmo. Com o correr dos anos, fui aprendendo a me observar como artista e ser humano e fui tentando aproveitar em meus desenhos interpretativos a linguagem interior de minha vivência pessoal, para conseguir assim essa difícil união entre arte e vida, que foi sempre a minha grande aspiração. Sempre acreditei que cada ator traz consigo um material fantástico, inimitável e único, muito difícil de ser conservado e desenvolvido nessa nossa era brutalizada e massificada. É um cálice de cristal interior, que deve ser preservado e defendido através de muitos terremotos, muita contrariedade, muita decepção e sensação de abandono, mas com momentos também de enorme luminosidade que quando acontecem recompensam o artista e engrandecem o ser humano. Cada ator é único e inimitável se ele mergulha com honestidade em si mesmo, e retrata o seu semelhante com generosidade, verdade e paixão. "Somos feitos da essência com que os sonhos são feitos." escreveu Shakespeare, e essa é a melhor definição que conheço sobre o mistério da representação.

O CAVALO
Cada ator tem obrigação de zelar e desenvolver o seu instrumental - sua voz, seu corpo: seu cavalo. Devemos transformar nosso corpo num grande arquivo de imagens com possibilidades de serem utilizadas em nossos futuros personagens; nossa voz deve poder miar, rugir, gemer, uivar - nossas mãos podem ser galhos de árvores, garras de feras, folhas secas ao vento - nossos pés, colunas de um templo, patas de animais. Nossos olhos devem poder reproduzir o enigma do olhar da Esfinge, e a clareza cristalina de um poema de Brecht. E mais, devemos nos preparar para poder receber como artística mediunidade, a alma do mundo, as grandes interrogações do nosso tempo, a voracidade desse universo em constante transformação. Devemos ser suficientemente fortes para poder reproduzir simultâneamente a maravilha e o horror do ser human, a criatividade e a autodestrutividade de nós todos, homens, através dessa difícil caminhada da vida. O nosso cavalo deve então se preparar para poder assumir todas essas formas e por isso ele tem de ser constantemente reabastecido e renovado. O cavalo é também o estimulador de nossa energia, o conservador de nosso entusiasmo e de nossa fé; quando as crises vierem (e não tenham dúvidas de que elas virão), nada melhor do que trabalhar na fortificação do CAVALO, porque no mínimo - estaremos crescendo durante a crise, estaremos trabalhando e temperando novas energias, adquirindo novas técnicas, novos conhecimentos. Podem ter certeza de que um bom cavalo torna o ator indestrutível.

O FOGO
O fogo através do tempo sempre foi o símbolo vivo da fé, do entusiasmo e da rebeldia; mantê-lo aceso dentro de nós é também um trabalho para a vida inteira. O fogo nasce de um estado de curiosidade natural e instintivo e pode ser desenvolvido através da conquista progressiva de uma cultura geral, de uma observação apaixonada da história do Homem, da história de todas as artes, da emocionante história do teatro - e um profundo sentimento de observação do ser humano - aqueles para quem realizaremos nossas mágicas, o nosso público. Esse fogo interno, uma espécie de sol central de energia e fé, é uma grande defesa contra a acomodação e me parece ser a grande mola propulsora da criatividade; devemos estar sempre atentos aos seus chamados, e é preciso não deixar nunca, custe o que custar, esse fogo esmorecer, porque, caso isso aconteça, seremos os artifices de uma arte morta, sonâmbula, inútil, feia e resignada.

O MENINO
A recuperação da liberdade da infância através da vida adulta foi sempre uma das minhas metas; a criança é uma fonte incrível de informação artística, e a criança que nós fomos recuperadas através do nosso lado lúdico tão atrofiado pelo correr dos anos - pode nos servir de guia, mas um guia muito especial - que caminha alegre e despreocupado, que sabe descobrir o mágico dentro do cotidiano intuitivamente. Um grande exemplo da presença do menino dentro de um artista está na figura e na obra do pintor Pablo Picasso. "Eu não procuro, eu acho." afirmava o grande pintor. E essa fala denuncia o menino que Picasso levava dentro de si, que pintava cerâmica usando como base para o desenho a espinha do peixe que tinha comido no almoço, ou fazia fantástica escultura aproveitando uma roda velha e quebrada de uma bicicleta encontrada na estrada durante seu passeio matinal. O menino traz alegria e descompromisso racional para o trabalho artístico. No passeio público do Rio de Janeiro tem um menino-anjo esculpido num bebedouro (se não me engano de Mestre Valentim) com a seguinte legenda: "Ser útil, inda brincando." Essa é a lei da sabedoria dos meninos. Acho que, preservando o cálice, domando o cavalo, estimulando o fogo e soltando o menino, o artista está preparado para viver e criar uma vida bela e uma obra últil para a coletividade.

MÁRIO DE ANDRADE - O ARTISTA E O ARTESÃO - PARTE II

E por que, como disse, pretenderei dar aos meus discípulos muito mais uma limitação de conceitos que uma fixação deles? Aqui a resposta é bem mais grave e difícil. Ousarei, primeiramente, afirmar que jamais pude me prender a conceitos perfeitamente nítidos do Belo, da Arte, da Criação, do Artista, do Espectador, da Técnica, do Sentimento ou da Expressão, da Matéria e da Forma?... Essa é a verdade porém. Devo confessar preliminarmente que eu não sei o que é o Belo e nem sei o que é a Arte. Através de todos os filósofos que percorri, num primeiro e talvez fátuo anseio de saber, jamais um conceito deixou de se quebrar diante de novas experiências. Eu não sei o que é o Belo. Eu não sei o que é a Arte. E no entanto, incapaz de conceituá-los com firmeza, seria, não modesto, mas perfeitamente injusto com o meu espírito e traidor dos que me trouxeram a esta cadeira, se negasse sentir, direi mais, intuicionar o que são arte e beleza. Eu tenho em minha casa uma coleção bem regular de cabeças esculpidas. São cabeças talhadas em madeira por índios civilizados de Pernambuco, são ex-votos surripiados de igrejas antigas, são cerâmicas colhidas em cemitérios de escravos, são bronzes de escultores eruditos ou modelagens infantis. Uma feita um escultor, em visita, separou um busto em madeira, vindo da Meirim pernambucana, e uma cabeça de barro cozido encontrada num cemitério de Campinas. E me disse: "Estas duas cabeças são esplêndidas, têm um espírito"... Concordei perfeitamente com a observação do escultor. Aquelas duas cabeças tinham um "espírito"... Depois, só comigo, me pus pensamenteando: O que queria dizer exatamente essa palavra "espírito", bastante comum em crítica de arte e na terminologia dos artistas? Simples calão de ateliê? Mesmo assim, qual o conceito perfeitamente nítido dessa palavra? Significaria "vida interior"? Certamente não significaria somente isso, nem inteiramente isso. Significaria uma nobreza rítmica de linhas que, abandonando a chatice realística, como que espiritualizava as formas, deixando-as flutuantes entre a verdade e o nosso pressuposto de perfeição? Também não era somente isso, nem isso inteiramente. É preferível ficar na entressombra fecunda, que é só onde podem nascer as assombrações. A fixação dos conceitos nos levaria fatalmente a uma organização sistemática do nosso pensamento artístico, nos levaria a uma Estética, nos levaria a filósofos, senão a filosofantes, e não aos artistas que devemos ser. Já uma limitação de conceitos, não é apenas necessária aos artistas, mas imprescindível. Sem isso, creio não se poder nunca ser artista verdadeiro. Principalmente em nosso tempo, em que campeia o individualismo mais desenfreado, e o artista se tornou um joguete de suas próprias liberdades. Mesmo nos países de organização social ditatorial, como a Rússia ou a Alemanha, as restrições até agora impostas à liberdade do artista são restrições meramente sociais. Pra não dizer, meramente ditatoriais. Quero dizer: não derivam de forma alguma das necessidades da obra de arte e do múltiplo e obscuro destino da arte. Não derivam de um justo equilíbrio entre a arte e o social, entre o artista e a sociedade. Derivam só do social, derivam só da necessidade de se defender, que têm as instituições novas. De forma que o artista, pelo menos por enquanto, dentro dessas sociedades ditatoriais, não adquiriu aquela humildade, aquele retorno a mero artesão que teve no Egito e mesmo na Idade Média. Deixa de ser um artista livre e não retorna a anônimo artesão. Transformou-se essencialmente num orador de comício, mais ou menos pragmaticamente disfarçado sob a máscara da arte. Enfim, ao invés de uma atitude estética , ele assume uma atitude social. O equilíbrio ainda não se conseguiu, como o prova até a própria obra trágica e maravilhosa desse genial Chostacovitz. E é justamente isto que uma limitação de conceitos estéticos deve e pode dar ao artista: uma atitude estética diante da arte, diante da vida. E é isso justamente, essa atitude estética, o que falta à grande maioria dos artistas contemporâneos: essa contemplação, essa serenidade oposta ao enceguecimento de paixões e interesses, como a caracterizava Schiller. E é justamente por isso que também, numa enorme maioria, eles puseram de lado essa importantíssima parte do artesanato que deve haver na arte, que tem de haver nela pra que ela se torne legitimamente arte. Se desde a Grécia, pelo menos, percorremos as confissões, os escritos, os ditos dos artistas verdadeiros, mesmo os que menos se confessaram, vemos sempre que todos eles tiveram conscientemente uma atitude estética diante da arte que faziam. Descobrimos em todos eles, mesmo nos que nos parecem mais fatalizados pelas deformações do tempo ou das liberdades pessoais, como um Miguel Anjo, um Mozart, um Goethe, descobrimos em todos eles uma segura vontade estética, uma humildade e segurança na pesquisa, um respeito à obra de arte em si, uma obediência ao artesanato, que já não me parecem existir na maioria dos contemporâneos. Quando deixei São Paulo se abrira lá o Salão de Maio, interessantíssimo, apaixonante mesmo, pela multiplicidade e uniformidade das suas manifestações. O Salão de Maio é admissível apenas a artistas "modernos" - e a meu ver, ele é um exemplo excelente da arte contemporânea, sob o ponto-de-vista que tratamos: a falta de uma verdadeira atitude estética na maioria dos artistas vivos. A primeira vista se tem a impressão de uma pesquisa humilde e apaixonada, quer da expressividade do material, quer da expressão do nosso ser interior. Mas, à medida que se examina mais profundamente esses técnicos pretendidamente obedientes aos mandos do material, ou esses abstracionistas pretendidamente obedientes aos efeitos estéticos das construções, ou esses sobrerrealistas pretensamente obedientes ao subconsciente, ao sonho, às associações de imagens, a gente percebe que quase todos eles, embora sinceríssimos, são muito menos pesquisadores que orgulhosos afirmadores de si mesmos. O que lhes determina a ação não é, de forma alguma, aquela vontade estética, aquela atitude estética, que determinou a obra, na aparência tão individualistamente afirmativa, de um Greco, de um Rembrandt ou mesmo de um Canova. Em vez de uma vontade estética, o que domina a maioria dos artistas do Salão de Maio é uma vaidade de ser artista. Em vez de uma atitude artística, é uma atitude sentimental. De forma que pra eles a obra de arte quase desaparece ante essa desmedida inflação e imposição do eu. Não pesquisam, em verdade, sobre o material. Não pesquisam sequer sobre si mesmos, o que também pode ser uma atitude estética. Não são pesquisadores. São escravos da determinação contemporânea de que é preciso pesquisar. E o resultado é esse engano de descobrirem, descobrirem não, de imporem uma ou outra suposta verdade. E imporem, afirmarem essa verdade numa obra de arte, que não é mais o objeto de uma pesquisa, mas apenas o veículo de uma mais ou menos gratuita afirmação. Um grande, um doloroso, um verdadeiramente trágico engano. Há uma incongruência bem sutil em nosso tempo. Na história das artes, estamos num período que muito parece ter pesquisado e que, no entanto, é dos mais afirmativos, dos mais vaidosos, dos menos humildes diante da obra de arte. Há, por certo, em todos os artistas contemporâneos, uma desesperada, uma desapoderada vontade de acertar. Mas a inflação do individualismo, a inflação da estética experimental, a inflação do psicologismo, desnortearam o verdadeiro objeto da arte. Hoje, o objeto da arte não é mais a obra de arte, mas o artista. E não poderá haver maior engano. Faz-se necessário urgentemente que a arte retorne às suas fontes legítimas. Faz-se imprescindível que adquiramos uma perfeita consciência, direi mais, um perfeito comportamento artístico diante da vida, uma atitude estética disciplinada, apaixonadamente insubversível, livre mas legítima, severa apesar de insubmissa, disciplina de todo o ser, para que alcancemos realmente a arte. Só então o indivíduo retornará ao humano. Porque na arte verdadeira o humano é a fatalidade.

Aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, Universidade do Distrito Federal em 1938

MÁRIO DE ANDRADE - O ARTISTA E O ARTESÃO - PARTE I

...Que a arte na realidade não se aprende. Existe, certo, dentro da arte, um elemento, o material, que é necessário por em ação, mover, pra que a obra de arte se faça. O som em suas múltiplas maneiras de se manifestar, a cor, a pedra, o lápis, o papel, a tela, a espátula, são o material de arte que o ensinamento facilita muito a por em ação. Mas nos processos de movimentar o material, a arte se confunde quase inteiramente com o artesanato. Pelo menos naquilo que se aprende. Afirmemos, sem discutir por enquanto, que todo o artista tem de ser ao mesmo tempo artesão. Isso me parece incontestável e, na realidade, se perscrutamos a existência de qualquer grande pintor, escultor, desenhista ou músico, encontramos sempre, por detrás do artista, o artesão. O artesanato, os segredos, os caprichos, as exigências do material, isto é assunto ensinável, e de ensinamento por muitas partes dogmático, a que fugir será sempre prejudicial para a obra de arte . E se um artista é verdadeiramente artista, quero dizer, está consciente do seu destino e da missão que se deu para cumprir no mundo, ele chegará fatalmente àquela verdade de que, em arte, o que existe de principal é a obra de arte. Foram os próprios filósofos escolásticos, espantosamente, os que mais claro afirmaram isso quando, ao porem a arte no domínio do "Fazer", dela disseram ter "uma finalidade, regras e valores que não são os do homem propriamente, mas da obra de arte a ser feita" . Está claro que, especialmente para os escolásticos, mas também para qualquer artista que não se tenha entregue de pés e mãos à estreiteza sem ar da estética experimental, está claro que o ser a obra de arte a finalidade mesma da arte, não exclui os caracteres e exigências humanos, individuais e sociais, do artefazer. Pois a Arte continua essencialmente humana, se não pela sua finalidade, pelo menos "pela sua maneira de operar" . Este problema admirável eu tentarei explicar e esclarecer melhormente à medida que, em lições posteriores, penetrarmos mais intimamente na História da Arte, e nos conceitos estéticos que dela procuraremos tirar; quis apenas afirmar desde logo esta noção da importância primordial da obra de arte, para mostrar o quanto o artesanato é imprescindível para que exista um artista verdadeiro. Artista que não seja ao mesmo tempo artesão, quero dizer, artista que não conheça perfeitamente os processos, as exigências, os segredos do material que vai mover, não , que não possa ser artista (psicologicamente pode), mas não pode fazer obras de arte dignas deste nome. Artista que não seja bom artesão, não , que não possa ser artista: simplesmente, ele não é artista bom. E desde que vá se tornando verdadeiramente artista, é porque concomitantemente está se tornando artesão. Mas voltarei um dia a comentar esta importância capital do artesanato. Por hoje, quero apenas acrescentar que não se deverá, pelo menos eu não o faço, não se deverá entender por artesanato o que se entende mais geralmente por técnica. O artesanato é uma parte da técnica da arte, a mais desprezada infelizmente, mas a técnica da arte não se resume no artesanato. O artesanato é a parte da técnica que se pode ensinar. Mas há uma parte da técnica de arte que é, por assim dizer, a objetivação, a concretização de uma verdade interior do artista. Esta parte da técnica obedece a segredos, caprichos e imperativos do ser subjetivo, em tudo o que ele é, como indivíduo e como ser social. Isto não se ensina e reproduzir é imitação. Isto é o que chamamos a técnica de Rembrandt, de Fra Angelico ou de Renoir, que divergem os três profundamente não apenas na concepção do quadro, mas consequentemente na técnica de o fazer . Sobre isto lembrarei agora uma boa e curiosa lição contemporânea. É o caso do pintor espanhol Picasso que, vendo um dia um pintor de paredes usar um pincel especial que facilitava e tornava mais rápida a maneira de imitar mármores, exprimiu o desejo de possuir um pincel desses. Lhe fizeram presente de um, e Picasso, depois de demonstrar muita alegria pela posse, utilizou-se do pincel de imitar mármore pra pintar os cabelos de umas figuras. Bem se poderá, por esta anedota, perceber a diferença vasta que existe entre a técnica pessoal e artesanato. Um pincel feito pra pintar imitação de mármore serve pra pintar imitações de mármore. Com ele, será mais fácil a um aprendiz aprender a pintar mármore em pintura, bem como, com o uso dele, terá o aprendiz facilitado o seu trabalho. É o artesanato. Já se um professor, porém, ensinar todos os seus alunos a pintar cabeleiras com pincéis de imitar mármore, fará o maior dos desacertos. Porque a transposição do cabelo, em pintura como em escultura, é principalmente uma expressão individual. Por quanto acabo de afirmar se poderia pois conceber a técnica de fazer obras de arte composta de três manifestações diferentes, ou três etapas. Uma: o artesanato, a única verdadeiramente pedagógica, que é o aprendizado do material com que se faz a obra de arte. Este é o mais útil ensinamento, o que é mais prático e mais necessário. É imprescindível. Outra manifestação da técnica , a virtuosidade, digamos assim, na falta de palavra específica. Entendo aqui por virtuosidade do artista criador o conhecimento e prática das diversas técnicas históricas da arte - enfim, o conhecimento da técnica tradicional. Este aspecto da técnica, que é, por exemplo, conhecer como os Assírios, os Gregos, Miguel Anjo ou Rodin resolveram a reprodução do cabelo na pedra ou no mármore; que é conhecer a distribuição das luzes e das sombras, dos tons frios e tons quentes, ou a maneira diversa de pincelar de um Rafael, de um Duerer, de um Greco ou de um Cezanne; que é ainda conhecer a evolução histórica da cadência de dominante desde os primeiros tonalistas até os nossos dias: este aspecto da técnica a que chamei de "virtuosidade" é também ensinável e muito útil. Não me parece imprescindível, porém, e, como toda virtuosidade, apresenta grandes perigos. Não só porque pode levar o artista a um tradicionalismo técnico, meramente imitativo, em que o tradicionalismo perde suas virtudes sociais pra se tornar simplesmente "passadismo" ou, se quiserem, "academismo"; como porque pode tornar o artista uma vítima de suas próprias habilidades, um "virtuose" na pior significação da palavra, isto é, um indivíduo que nem sequer chega ao princípio estético, sempre respeitável, da arte pela arte, mas que se compraz em meros malabarismos de habilidade pessoais, entregue à sensualidade do aplauso ignaro. A técnica tradicional, a virtuosidade técnica, o conhecimento abalizado de como historicamente as épocas e os artistas resolveram os seus problemas de artefazer, é de grande utilidade para o artista. Mas, além dos perigos terríveis que esconde, e que só mesmo uma verdadeira organização moral de artista pode evitar, não me parece seja imprescindível. Por certo os senhores conhecem a anedota espanhola do moço poeta que, desejoso de fazer poemas sublimes, se dirigiu ao maior poeta do tempo e lhe perguntou como é que este fazia versos. E o grande poeta respondeu: no princípio do verso põe-se a maiúscula e no fim a pontuação. "E no meio?" indagou o moço. E o grande poeta: "Hay que poner talento"... Esta anedota nos convida a compreender a necessidade imprescindível do artesanato e a desnecessidade imediata da virtuosidade. As maiúsculas e a pontuação participam do artesanato da poesia. Mas as diversas soluções métricas, estróficas, sonoras, a própria linguagem poética de Gôngora, de Quevedo, de Encina eram desnecessárias, em princípio. Bastava que no meio do verso houvesse talento, isto é, na acepção em que o grande poeta empregou a palavra, justamente o que não se ensina. Finalmente, a terceira e última região da técnica é a solução pessoal do artista no fazer a obra de arte. Esta faz parte do "talento" de cada um, embora não seja todo ele. É de todas as regiões da técnica a mais sutil, a mais trágica, porque ao mesmo tempo imprescindível e inensinável. Não poderei insistir longamente sobre ela na conversa de hoje, tanto mais que, em sua sutileza, há muito que distinguir. Será, por exemplo, imprescindível, como afirmei? São numerosos os "exemplos" históricos aparentemente em contrário. Se tomamos a arte egípcia pra estudo, ou a grega, ou mesmo o gótico na escultura, nós conseguiremos com certa facilidade distinguir fases técnicas diversas, mas só raramente, como entre Scopas e Praxiteles, conseguimos perceber soluções técnicas pessoais . Maspero, numa página muito acertada, preocupou-se em caracterizar e explicar o aspecto de impersonalidade da arte egípcia. Depois de demonstrar que o princípio que regeu os quarenta e tantos séculos da arte egípcia não fôra de forma alguma a obtenção da beleza, mas a pesquisa do perdurável que assegurasse aos deuses e aos homens uma vida feliz e eterna, Maspero considera: "De modo geral, ninguém se enganará afirmando que o princípio de utilidade proibia, a quantos exerciam uma arte, assinar suas próprias obras, e consequentemente os condenava ao esquecimento. (...) E assim é que, estranhos a este desejo de imortalidade pela glória, cuja ação é tão poderosa em nossos dias, os artistas egípcios, em sua grande maioria, se contentaram de observar em consciência, como se se tratasse de mero ofício, as regras que o ensinamento de seus mestres declarava necessárias ao bem das almas humanas ou divinas. (...) E assim, nessa recusa sistemática em modificar os assuntos e os tipos tradicionais, a não ser no detalhe, o Egito imprimiu à sua arte esse caráter de uniformidade que nos assombra. O temperamento pessoal do indivíduo não se revela senão por detalhes de fatura quase imperceptíveis, e quem quer estude por alto a arte egípcia nada mais percebe que essa noção de impersonalidade coletiva (...)". Aliás também poderíamos afirmar de muitas manifestações artísticas, adstritas ao princípio de utilidade, especialmente das adstritas ao princípio de utilidade religiosa, que elas prescindem da técnica individual. Lembrarei outro argumento muito forte contra a minha afirmativa de que a técnica individual é imprescindível: o exemplo da arquitetura. A arquitetura é de tal forma regida pelo princípio de utilidade, de tal forma ela é condicionada às exigências da engenharia e à prática da vida, que um dos problemas bem discutidos e mais nebulosos da estética , resolver se a arquitetura é realmente uma das belas-artes, ou se entra para o conjunto das artes aplicadas. Ora, a arquitetura, enquanto boa arquitetura, é uma arte que se esquiva muitíssimo à técnica pessoal. Se vemos, por exemplo, o arquiteto Garnier ter um gesto genial de técnica individual resolvendo o problema do teatro, dividindo o edifício em três corpos funcionais distintos, o foyer, a sala de assistência e o palco, logo esta solução se tradicionaliza, é numerosamente usada, e de beleza se transforma em verdade, todos podendo se utilizar dela sem acusação de plágio. Os teatros municipais do Rio e de São Paulo repetem a solução da Opera de Paris, sem que, por isso, Pereira Passos e Ramos de Azevedo possam ser acusados de plagiários. Na verdade se poderia afirmar, embora um pouco tiranicamente, que, em arquitetura, a criação de uma técnica pessoal bem acusada só serve pra criar obras extravagantes. É o caso da torre Eiffel, em Paris, que os senhores todos conhecem por certo, uma extravagância arrojada, muito própria de exposição universal. É também o caso, muito menos defensável ainda (pois não se trata de uma experiência comprovatória de uma técnica), do arquiteto catalão Antônio Gaudi, criador nosso contemporâneo da escola de Barcelona. Não nego a seriedade, a honestidade deste artista, mas, por mais que o respeite, sou obrigado a ver na sua obra de arquitetura menos arquitetura que o desapoderado espírito separatista da Catalunha. A sua igreja da Sagrada Família, em Barcelona, é bem mais que um pesadelo sentimental e pouco menos que um horror artístico. Qualquer destes dois exemplos, o da arte egípcia condicionada ao princípio de utilidade religiosa e o da arquitetura condicionada ao princípio de utilidade funcional, é bom argumento de ordem geral pra contradizer a necessidade de uma técnica pessoal. Aduzirei contra eles apenas dois argumentos, também de ordem geral, pois que não é o momento agora pra análises mais particularizadas. Em primeiro lugar, se é muito mais difícil ou mesmo impossível a um leigo distinguir uma moradia arquitetada por Le Corbusier, de outra inventada por Flávio de Carvalho; se é dificílimo, mesmo a um estudioso longe da fonte, como seremos todos nós, observar as soluções de técnica pessoal entre duas estátuas da catedral de Burgos ou duas outras de tal dinastia egípcia, ao passo que nos é facílimo, mesmo de longe, distinguir um Rembrandt de um Velasquez, um Donatello de um Bernini, ou Mozart de Haydn; nem por isso aquela distinção deixa de existir. A um olho perito as diferenciações não escaparão; e o próprio Maspero, reconhecendo a impersonalidade da arte egípcia, se viu obrigado a acrescentar que "o temperamento pessoal do indivíduo não se revela senão por detalhes de fatura quase imperceptíveis. Por esta confissão se prova pois que a impersonalidade geral não deixa nunca de ceder aos pormenores pessoais de fatura, da mão que treme ao fazer, da criatura que sente ao criar. Além deste argumento de ordem psicológica, outro, de ordem histórica, se afirma violentamente. É que, se em épocas passadas, em geral muito distantes de nós, os diversos princípios de utilidade dominavam a criação artística e esta sujeitava-se aos ritos, às liturgias inamovíveis tanto de ordem religiosa como de ordem profana, vários elementos foram se desenvolvendo aos poucos no fenômeno da criação artística, foram, por assim dizer, se tornando mais conscientes ao artista. Este é o caso do individualismo como elemento intrínseco do artista. A noção de beleza está claro que sempre existiu, sendo ela uma das três grandes idéias normativas do ser humano. Apenas, em muitas manifestações artísticas anteriores a Cristo, ou isentas da concepção da primordialidade do indivíduo que o Cristianismo nos trouxe, o princípio de utilidade condicionava de tal forma a criação artística que a beleza era muito mais uma conseqüência que uma das finalidades da obra de arte. A beleza era apenas um meio de encantação aplicado a uma obra que se destinava a fins utilitários muito distantes dela. De outra forma não se compreenderiam as admiráveis pinturas dos homens madalenianos das cavernas de Altamira, na Espanha. Em recantos escuríssimos, onde não penetra a luz do dia, os caçadores da rena esconderam obras de arte perfeitas como realismo e espirito de síntese. Ora, a beleza nas artes plásticas requer, antes de mais nada, luz que a faça viver. Certamente essas pinturas admiráveis não se destinavam à contemplação humana; eram utensílios quer de religião, quer de magia, tinham uma utilidade prática, para aqueles homens, imediata. E a beleza era naquelas pinturas das cavernas uma resultante da necessidade de tornar a pintura um utensílio místico capaz de servir. E ocasionada por estes princípios primordiais, sempre reconhecida, mas desigualmente aplicada, mais conscientemente procurada entre gregos e romanos que entre egípcios e assírios, mais pretendida entre os polinesianos que entre os negros do Benin, só mesmo com o Renascimento, já na era cristã, é que a beleza principiou se impondo como finalidade, nas artes plásticas. Desde então, e cada vez mais, ela se tornou o objeto principal de pesquisa para o artista, e, por uma conversão natural de conceito, a beleza, pesquisada por si mesma, se tornou essencialmente objetiva e experimental, materialista por excelência, pra não dizer por exclusividade. Peço desculpa de apresentar assim abruptamente um problema de tamanha delicadeza crítica, como é este da rápida, da verdadeiramente brutal materialização da beleza, causada no Renascimento pela revalorização, ou melhor, pela colocação nova da beleza dentro do problema da criação artística. Deverá ser este um objeto de pesquisas cuidadosas em nossas aulas. Por hoje, apenas uma pequena consideração, novamente sobre os gregos e egípcios, vai nos dar uma prova em bruto de que a primazia assumida pela beleza na criação artística, durante o Renascimento, tornou-a imediatamente experimental e, por conseqüência, materialista e quase exclusivamente técnica. Contemplemos o chamado "nariz grego" ou o hieratismo da escultura egípcia. Buscando os egípcios figurar na pedra indivíduos ou deuses que iriam, por meio de uma de suas almas, de um dos seus "Ka", como eles diziam, habitar aquela pedra figurada, simplificaram ao mais possível a escultura, pra que ela resistisse o mais possível, ou mesmo eternamente, à corrupção do tempo. Daí ter a escultura em pedra dos egípcios obedecido o mais possível às exigências da pedra. Porque sendo a pedra resistente ao tempo, resistiria a escultura que lhe conservasse as propriedades mais intrínsecas. E assim a escultura egípcia tomou aquele maravilhoso caráter hierático, aquela dureza, aquela rijeza inamovível, de uma serenidade, de uma eternidade incomparáveis. Há realmente um quê de humano sobre-humano nessas figuras sublimes. Nelas reside, realmente, desculpem o exagero, nelas reside realmente uma alma, porque essas estátuas apresentam, como nenhumas de outras épocas, nem mesmo os budas asiáticos, a noção de eternidade. Com os gregos, já estamos num outro mundo, mais atento às forças da vida terrestre. Mas esta vida terrestre pra eles é ainda uma vida de rito, porque profundamente social. O indivíduo era pouco ou nada concebido lá. Assim, se a escultura grega abandona de uma vez o problema da eternidade e se torna muito mais naturalista, porque os gregos já estavam muito mais orientados pelas sensualidades da vida terrestre, jamais a estatuária grega da grande época se tornou realista, porque a determinava um conceito social da vida. Imitadores do corpo humano, e não apenas baseados nele como os egípcios, os gregos da grande época jamais conseguiram descobrir, no corpo humano, o indivíduo. Ao invés de tipos, criaram protótipos, transportando a realidade a uma idealidade superior, de ordem utilitária e de função social unitarista, unionista, unanimista. Daí o nariz grego, essa fusão perfilar de testa e nariz a uma linha praticamente reta que se tornou um ideal de beleza, por todos repetido. Mas o sentimento de eternidade, dos egípcios, como o nariz reto, dos gregos, criticamente falando, não eram apenas um ideal de beleza, eram também uma beleza ideal. Quero dizer: a sensação de beleza que essa estatuária nos dá, não tira o seu alimento apenas das linhas, dos volumes, dos claros-escuros, etc., senão que se alimenta também das necessidades outras, de exigências espirituais do indivíduo e sua finalidade. É um ideal necessário à coletividade. Estamos por certo aqui em dois momentos dos mais sublimes, dos mais complexos e completos, dos mais perfeitos da arte tendo como finalidade a obra de arte, condicionada aos destinos totais de ser humano que a faz. Ora, no Renascimento, especialmente já no alto Renascimento, com Ticiano, com Velasquez, com Rubens, com Rembrandt, com o Poussin, se cada vez mais o "ideal de beleza" plástica é procurado, raramente encontraremos essa noção de "beleza ideal". A beleza se desidealiza, a beleza se materializa, se torna objeto de uma pesquisa de caráter objetivo, ao mesmo tempo que o individualismo se acentua. Nem se pode mais decidir com clareza se, nas artes plásticas pelo menos, o individualismo é uma conseqüência da materialização da beleza, ou se esta é uma conseqüência daquele, de tal forma ambos se deduzem um do outro. Apenas o que podemos verificar historicamente, dos tempos do Renascimento até nossos dias, é que se a beleza meramente objetiva é um conceito que não se submete a uma progressão gradual, é mais consciente nuns e menos noutros artistas, não sofre o que propriamente se chamaria de evolução, pelo contrário o individualismo veio se acentuando sempre cada vez mais, até culminar no desbragado experimentalismo contemporâneo, que tanto experimenta objetivamente, com o cubismo e os abstracionistas, como subjetivamente com o expressionismo e os super-realistas. Sem dúvida esta compreensão crítica exposta aqui parece que se opõe fortemente àquele convidativo pensamento de Eugênio d'Ors que dá como origem da arte contemporânea o conflito entre a sabedoria grega e a inquietação ibérica. Se o grego sujeitava o belo às suas regras, o ibero foge constantemente das dele; o grego é repouso, o ibero, movimento; o primeiro goza plenamente do seu ser humano, ao passo que o segundo sente que o homem só é verdadeiramente homem sob a condição de se ultrapassar a si mesmo e se erguer até junto da divindade. Realmente, tenho bastante medo destas antíteses bem achadas, que pelo seu brilho são muito facilmente confundidas com a verdade. Mas, naquilo que o pensamento do espanhol tem de acertado, a maior, a esplêndida sabedoria grega que soube sujeitar o ideal da beleza às regras duma beleza ideal, e na maior inquietação perquiridora do mundo latino: o pensamento de Eugênio d'Ors em nada se opõe ao que afirmei. Apenas vejo que, do Renascimento aos nossos dias, há uma como que materialização geral da pesquisa artística, em que o homem, como atitude, menos que erguer-se até à divindade, busca participar da natureza desta mesma divindade. E, com efeito, por milhares de vezes teremos visto nos livros, nos jornais e nos discursos, essa frágil e fácil confusão do artista criador com o Deus criador - mero jogo de atributos parcialmente identificáveis. Pra não dizer, mero jogo de palavras... Ora, com essa pesquisa experimental da beleza e com esse individualismo, que se impuseram na arte desde o Renascimento, a técnica pessoal tomou importância não só de grande primazia, como de verdadeira fatalidade. Não se trata mais apenas daqueles "detalhes de fatura quase imperceptíveis" que Maspero denunciava dentro da vasta impersonalidade da arte egípcia, é antes de mais nada uma conseqüência do espírito do tempo, uma necessidade imperiosa e imprescindível do vastíssimo personalismo da arte contemporânea. E se sempre existiram e são psicologicamente fatais as minúsculas diferenciações da fatura, essa técnica pessoal, essa procura técnica de resolver o seu problema pessoal diante da obra de arte, se acresceu contemporaneamente de mais essa outra igualmente imperiosa fatalidade, que é o espírito do tempo. É verdadeiramente dramático, é sobre todos trágico o aspecto da arte contemporânea, sob este ponto-de-vista. Vêm os modernos, vêm os modernistas, vêm os futuristas, os cubistas, todos eles de bandeiras novas na mão. Esses ao menos têm a lealdade de se dizerem representantes do espírito do tempo. Mas da outra banda nos chegam os reacionários, os que se revoltam contra os modernos em nome de não sei que "leis eternas da beleza"; vêm mesmo os que se intitulam de "anti-modernos", ingenuamente virtuosísticos, falando em nome do passado, ou da tradição, ou apenas do bom-senso. Ou ainda, mais vaidosamente, em nome apenas do senso-comum! Na verdade não são todos estes, reacionários, tradicionalistas ou anti-modernos, senão representantes fatais do mesmo espírito do tempo, e cada um deles traz sua receita, sua solução, sua verdade pessoal Não temos que aprofundar nem levar mais longe o problema, para reconhecer a necessidade imprescindível de uma técnica pessoal. O espírito do tempo a exigirá de quantos se queiram artistas criadores legítimos. Mas esta técnica pessoal é inensinável, porém; cada qual terá que procurar e achar a sua, pra poder se expressar com legitimidade. E não derivará disso, não digo a grandeza de manifestações diversas da arte contemporânea, mas a incontestável desorientação, o incontestável caos, o "caoticismo" da arte atual?... Estou convencido que não. A técnica, por mais que ela possa ser concebida como expressão de um indivíduo e da sua atitude em face da vida e da obra de arte, não pode de forma alguma levar ao caos e à desorientação. Não pode, simplesmente porque ela é um fruto de relação entre um espírito e o material. E se, psicologicamente, podemos conceber um espírito tão vaidoso de suas vontadinhas que se sujeite, que se escravize às mais desabridadas liberdades, a matéria, por seu lado, isto é, a pedra, o óleo, o lápis, o som, a palavra, o gesto, a tela, o pincel, o camartelo, a voz, etc., etc., têm suas leis, porventura flexíveis mas certas, tem suas exigências naturais, que condicionam o espírito. A "técnica", no sentido em que a estou concebendo e me parece universal, é um fenômeno de relação entre o artista e a matéria que ele move. E se o espírito não tem limites na criação, a matéria o limita na criatura. O caoticismo, a desorientação de grande parte das artes contemporâneas não deriva da variabilidade maravilhosa da técnica pessoal; deriva, sim, a meu ver, em muitos artistas, da ausência de uma atitude... mais ou menos filosófica. Deixem passar este "mais ou menos", que se explicará logo. E é para a obtenção desta atitude "mais ou menos" filosófica em face da arte, que intervêm o espírito desta universidade e as conversas deste curso. Iniciando as minhas aulas, quero prevenir, desde logo, que serei muito mais um comentador que um teórico. Vou apenas ensaiar um sistema de conversas que, através da História da Arte, consiga dar aos meus companheiros de curso, muito mais uma limitação de conceitos estéticos que uma fixação deles. Um curso que, pelo seu aspecto de experimentalismo crítico sobre a História da Arte, será muito mais o convite à aquisição de uma séria consciência artística que a imposição de um sistema estético, de uma Estética perfeitamente orgânica e lógica e, por isso mesmo, para o artista, asfixiante e enceguecedora. Sem dúvida, uma orientação assim poderá ser porta aberta ao ecletismo, em todo o mau sentido que possa ter esta palavra: o ecletismo, que é acomodatício e máscara de todas as covardias. Mas a limitação dos conceitos estéticos, a aquisição de uma verdadeira atitude artística, deverá evitar os males do ecletismo. Mas por que a gente preferir apenas a aquisição de uma consciência artística, ao invés de uma Filosofia da Arte, orgânica e possivelmente lógica?... Porque estamos aqui entre pessoas que se destinam a artistas; e não cabe ao artista, a meu ver, pelo menos é perigosíssima, a fixação de um sistema filosófico da arte, que lhe iria limitar a um dogmatismo científico a liberdade incontestavelmente mais trágica da arte. Maurice Blondel diz muito bem que "se a estética fosse considerada como uma espécie de metafísica nocional ou de superintendência, feita para embridar artistas, melhor seria destrui-la. Muito antes que ser subjugada por abstrações, a atividade artística deve contribuir pra que nos libertemos delas, pois é justamente a atividade artística que nos abre um dos caminhos mais penetrantes de introdução ao ser. Ela é que, concorrendo a uma "ciência do singular" e ao progresso, à salvaguarda do pensamento concreto, esposa e fecunda a metafísica verdadeira, ao invés de se escravizar à ideologia". Ao artista cabe apenas, é imprescindível a meu ver, adquirir uma severa consciência artística que o... moralize, se posso me exprimir assim. Só esta severa atitude, antes de mais nada humana, é que deve na realidade orientar e coordenar a criação. Shulze Soelde lembra, em boa metáfora, que para o esteta a beleza é uma criada que o serve, ao passo que para o artista é uma criança de que ele se utiliza. Se esta não será a verdade inteira, a imagem serve bem pra caracterizar o lado de obediência do artista diante de elementos que têm pra com ele a complexidade, a variabilidade, a inconstância e a independência da própria infância. A História da Arte está aí para demonstrar a verdade desta afirmativa. Jamais um artista legítimo se prendeu ao dogmatismo de uma estética perfeitamente orgânica. Esta cabe aos filósofos; e todas as doutrinas estéticas até agora jamais puderam explicar ou mesmo aceitar todas as obras-primas da humanidade. Jamais os artistas verdadeiros ficaram, em suas obras, nos limites doutrinários que se prefixaram. Foram sempre além, saltaram sempre fora das limitações preestabelecidas. Lembrarei mais uma vez aqui o exemplo clássico do Humanismo, querendo repetir em toda a sua estética a tragédia grega, e criando a ópera italiana? Lembrarei mais apenas, como caso contrário, a frieza aplicada do Pré-rafaelismo inglês, um dos poucos exemplos históricos de um sistema estético dogmaticamente expresso em arte. Mas entre esta expressão legítima da mediocridade e os italianos anteriores a Rafael, vai um mundo. É porque realmente, em arte, a regra dever ser apenas uma norma e jamais uma lei. O artista que vive dentro de suas leis será sempre um satisfeito. E um medíocre. E por que, como disse, pretenderei dar aos meus discípulos muito mais uma limitação de conceitos que uma fixação deles? Aqui a resposta é bem mais grave e difícil. Ousarei, primeiramente, afirmar que jamais pude me prender a conceitos perfeitamente nítidos do Belo, da Arte, da Criação, do Artista, do Espectador, da Técnica, do Sentimento ou da Expressão, da Matéria e da Forma?... Essa é a verdade porém. Devo confessar preliminarmente que eu não sei o que é o Belo e nem sei o que é a Arte. Através de todos os filósofos que percorri, num primeiro e talvez fátuo anseio de saber, jamais um conceito deixou de se quebrar diante de novas experiências. Eu não sei o que é o Belo. Eu não sei o que é a Arte. E no entanto, incapaz de conceituá-los com firmeza, seria, não modesto, mas perfeitamente injusto com o meu espírito e traidor dos que me trouxeram a esta cadeira, se negasse sentir, direi mais, intuicionar o que são arte e beleza. Eu tenho em minha casa uma coleção bem regular de cabeças esculpidas. São cabeças talhadas em madeira por índios civilizados de Pernambuco, são ex-votos surripiados de igrejas antigas, são cerâmicas colhidas em cemitérios de escravos, são bronzes de escultores eruditos ou modelagens infantis. Uma feita um escultor, em visita, separou um busto em madeira, vindo da Meirim pernambucana, e uma cabeça de barro cozido encontrada num cemitério de Campinas. E me disse: "Estas duas cabeças são esplêndidas, têm um espírito"... Concordei perfeitamente com a observação do escultor. Aquelas duas cabeças tinham um "espírito"... Depois, só comigo, me pus pensamenteando: O que queria dizer exatamente essa palavra "espírito", bastante comum em crítica de arte e na terminologia dos artistas? Simples calão de ateliê? Mesmo assim, qual o conceito perfeitamente nítido dessa palavra? Significaria "vida interior"? Certamente não significaria somente isso, nem inteiramente isso. Significaria uma nobreza rítmica de linhas que, abandonando a chatice realística, como que espiritualizava as formas, deixando-as flutuantes entre a verdade e o nosso pressuposto de perfeição? Também não era somente isso, nem isso inteiramente. É preferível ficar na entressombra fecunda, que é só onde podem nascer as assombrações. A fixação dos conceitos nos levaria fatalmente a uma organização sistemática do nosso pensamento artístico, nos levaria a uma Estética, nos levaria a filósofos, senão a filosofantes, e não aos artistas que devemos ser. Já uma limitação de conceitos, não é apenas necessária aos artistas, mas imprescindível. Sem isso, creio não se poder nunca ser artista verdadeiro. Principalmente em nosso tempo, em que campeia o individualismo mais desenfreado, e o artista se tornou um joguete de suas próprias liberdades. Mesmo nos países de organização social ditatorial, como a Rússia ou a Alemanha, as restrições até agora impostas à liberdade do artista são restrições meramente sociais. Pra não dizer, meramente ditatoriais. Quero dizer: não derivam de forma alguma das necessidades da obra de arte e do múltiplo e obscuro destino da arte. Não derivam de um justo equilíbrio entre a arte e o social, entre o artista e a sociedade. Derivam só do social, derivam só da necessidade de se defender, que têm as instituições novas. De forma que o artista, pelo menos por enquanto, dentro dessas sociedades ditatoriais, não adquiriu aquela humildade, aquele retorno a mero artesão que teve no Egito e mesmo na Idade Média. Deixa de ser um artista livre e não retorna a anônimo artesão. Transformou-se essencialmente num orador de comício, mais ou menos pragmaticamente disfarçado sob a máscara da arte. Enfim, ao invés de uma atitude estética , ele assume uma atitude social. O equilíbrio ainda não se conseguiu, como o prova até a própria obra trágica e maravilhosa desse genial Chostacovitz. E é justamente isto que uma limitação de conceitos estéticos deve e pode dar ao artista: uma atitude estética diante da arte, diante da vida. E é isso justamente, essa atitude estética, o que falta à grande maioria dos artistas contemporâneos: essa contemplação, essa serenidade oposta ao enceguecimento de paixões e interesses, como a caracterizava Schiller. E é justamente por isso que também, numa enorme maioria, eles puseram de lado essa importantíssima parte do artesanato que deve haver na arte, que tem de haver nela pra que ela se torne legitimamente arte. Se desde a Grécia, pelo menos, percorremos as confissões, os escritos, os ditos dos artistas verdadeiros, mesmo os que menos se confessaram, vemos sempre que todos eles tiveram conscientemente uma atitude estética diante da arte que faziam. Descobrimos em todos eles, mesmo nos que nos parecem mais fatalizados pelas deformações do tempo ou das liberdades pessoais, como um Miguel Anjo, um Mozart, um Goethe, descobrimos em todos eles uma segura vontade estética, uma humildade e segurança na pesquisa, um respeito à obra de arte em si, uma obediência ao artesanato, que já não me parecem existir na maioria dos contemporâneos. Quando deixei São Paulo se abrira lá o Salão de Maio, interessantíssimo, apaixonante mesmo, pela multiplicidade e uniformidade das suas manifestações. O Salão de Maio é admissível apenas a artistas "modernos" - e a meu ver, ele é um exemplo excelente da arte contemporânea, sob o ponto-de-vista que tratamos: a falta de uma verdadeira atitude estética na maioria dos artistas vivos. A primeira vista se tem a impressão de uma pesquisa humilde e apaixonada, quer da expressividade do material, quer da expressão do nosso ser interior. Mas, à medida que se examina mais profundamente esses técnicos pretendidamente obedientes aos mandos do material, ou esses abstracionistas pretendidamente obedientes aos efeitos estéticos das construções, ou esses sobrerrealistas pretensamente obedientes ao subconsciente, ao sonho, às associações de imagens, a gente percebe que quase todos eles, embora sinceríssimos, são muito menos pesquisadores que orgulhosos afirmadores de si mesmos. O que lhes determina a ação não é, de forma alguma, aquela vontade estética, aquela atitude estética, que determinou a obra, na aparência tão individualistamente afirmativa, de um Greco, de um Rembrandt ou mesmo de um Canova. Em vez de uma vontade estética, o que domina a maioria dos artistas do Salão de Maio é uma vaidade de ser artista. Em vez de uma atitude artística, é uma atitude sentimental. De forma que pra eles a obra de arte quase desaparece ante essa desmedida inflação e imposição do eu. Não pesquisam, em verdade, sobre o material. Não pesquisam sequer sobre si mesmos, o que também pode ser uma atitude estética. Não são pesquisadores. São escravos da determinação contemporânea de que é preciso pesquisar. E o resultado é esse engano de descobrirem, descobrirem não, de imporem uma ou outra suposta verdade. E imporem, afirmarem essa verdade numa obra de arte, que não é mais o objeto de uma pesquisa, mas apenas o veículo de uma mais ou menos gratuita afirmação. Um grande, um doloroso, um verdadeiramente trágico engano. Há uma incongruência bem sutil em nosso tempo. Na história das artes, estamos num período que muito parece ter pesquisado e que, no entanto, é dos mais afirmativos, dos mais vaidosos, dos menos humildes diante da obra de arte. Há, por certo, em todos os artistas contemporâneos, uma desesperada, uma desapoderada vontade de acertar. Mas a inflação do individualismo, a inflação da estética experimental, a inflação do psicologismo, desnortearam o verdadeiro objeto da arte. Hoje, o objeto da arte não é mais a obra de arte, mas o artista. E não poderá haver maior engano. Faz-se necessário urgentemente que a arte retorne às suas fontes legítimas. Faz-se imprescindível que adquiramos uma perfeita consciência, direi mais, um perfeito comportamento artístico diante da vida, uma atitude estética disciplinada, apaixonadamente insubversível, livre mas legítima, severa apesar de insubmissa, disciplina de todo o ser, para que alcancemos realmente a arte. Só então o indivíduo retornará ao humano. Porque na arte verdadeira o humano é a fatalidade. (Aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, Universidade do Distrito Federal em 1938). ...Que a arte na realidade não se aprende. Existe, certo, dentro da arte, um elemento, o material, que é necessário por em ação, mover, pra que a obra de arte se faça. O som em suas múltiplas maneiras de se manifestar, a cor, a pedra, o lápis, o papel, a tela, a espátula, são o material de arte que o ensinamento facilita muito a por em ação. Mas nos processos de movimentar o material, a arte se confunde quase inteiramente com o artesanato. Pelo menos naquilo que se aprende. Afirmemos, sem discutir por enquanto, que todo o artista tem de ser ao mesmo tempo artesão. Isso me parece incontestável e, na realidade, se perscrutamos a existência de qualquer grande pintor, escultor, desenhista ou músico, encontramos sempre, por detrás do artista, o artesão. O artesanato, os segredos, os caprichos, as exigências do material, isto é assunto ensinável, e de ensinamento por muitas partes dogmático, a que fugir será sempre prejudicial para a obra de arte . E se um artista é verdadeiramente artista, quero dizer, está consciente do seu destino e da missão que se deu para cumprir no mundo, ele chegará fatalmente àquela verdade de que, em arte, o que existe de principal é a obra de arte. Foram os próprios filósofos escolásticos, espantosamente, os que mais claro afirmaram isso quando, ao porem a arte no domínio do "Fazer", dela disseram ter "uma finalidade, regras e valores que não são os do homem propriamente, mas da obra de arte a ser feita" . Está claro que, especialmente para os escolásticos, mas também para qualquer artista que não se tenha entregue de pés e mãos à estreiteza sem ar da estética experimental, está claro que o ser a obra de arte a finalidade mesma da arte, não exclui os caracteres e exigências humanos, individuais e sociais, do artefazer. Pois a Arte continua essencialmente humana, se não pela sua finalidade, pelo menos "pela sua maneira de operar" . Este problema admirável eu tentarei explicar e esclarecer melhormente à medida que, em lições posteriores, penetrarmos mais intimamente na História da Arte, e nos conceitos estéticos que dela procuraremos tirar; quis apenas afirmar desde logo esta noção da importância primordial da obra de arte, para mostrar o quanto o artesanato é imprescindível para que exista um artista verdadeiro. Artista que não seja ao mesmo tempo artesão, quero dizer, artista que não conheça perfeitamente os processos, as exigências, os segredos do material que vai mover, não , que não possa ser artista (psicologicamente pode), mas não pode fazer obras de arte dignas deste nome. Artista que não seja bom artesão, não , que não possa ser artista: simplesmente, ele não é artista bom. E desde que vá se tornando verdadeiramente artista, é porque concomitantemente está se tornando artesão. Mas voltarei um dia a comentar esta importância capital do artesanato. Por hoje, quero apenas acrescentar que não se deverá, pelo menos eu não o faço, não se deverá entender por artesanato o que se entende mais geralmente por técnica. O artesanato é uma parte da técnica da arte, a mais desprezada infelizmente, mas a técnica da arte não se resume no artesanato. O artesanato é a parte da técnica que se pode ensinar. Mas há uma parte da técnica de arte que é, por assim dizer, a objetivação, a concretização de uma verdade interior do artista. Esta parte da técnica obedece a segredos, caprichos e imperativos do ser subjetivo, em tudo o que ele é, como indivíduo e como ser social. Isto não se ensina e reproduzir é imitação. Isto é o que chamamos a técnica de Rembrandt, de Fra Angelico ou de Renoir, que divergem os três profundamente não apenas na concepção do quadro, mas consequentemente na técnica de o fazer . Sobre isto lembrarei agora uma boa e curiosa lição contemporânea. É o caso do pintor espanhol Picasso que, vendo um dia um pintor de paredes usar um pincel especial que facilitava e tornava mais rápida a maneira de imitar mármores, exprimiu o desejo de possuir um pincel desses. Lhe fizeram presente de um, e Picasso, depois de demonstrar muita alegria pela posse, utilizou-se do pincel de imitar mármore pra pintar os cabelos de umas figuras. Bem se poderá, por esta anedota, perceber a diferença vasta que existe entre a técnica pessoal e artesanato. Um pincel feito pra pintar imitação de mármore serve pra pintar imitações de mármore. Com ele, será mais fácil a um aprendiz aprender a pintar mármore em pintura, bem como, com o uso dele, terá o aprendiz facilitado o seu trabalho. É o artesanato. Já se um professor, porém, ensinar todos os seus alunos a pintar cabeleiras com pincéis de imitar mármore, fará o maior dos desacertos. Porque a transposição do cabelo, em pintura como em escultura, é principalmente uma expressão individual. Por quanto acabo de afirmar se poderia pois conceber a técnica de fazer obras de arte composta de três manifestações diferentes, ou três etapas. Uma: o artesanato, a única verdadeiramente pedagógica, que é o aprendizado do material com que se faz a obra de arte. Este é o mais útil ensinamento, o que é mais prático e mais necessário. É imprescindível. Outra manifestação da técnica , a virtuosidade, digamos assim, na falta de palavra específica. Entendo aqui por virtuosidade do artista criador o conhecimento e prática das diversas técnicas históricas da arte - enfim, o conhecimento da técnica tradicional. Este aspecto da técnica, que é, por exemplo, conhecer como os Assírios, os Gregos, Miguel Anjo ou Rodin resolveram a reprodução do cabelo na pedra ou no mármore; que é conhecer a distribuição das luzes e das sombras, dos tons frios e tons quentes, ou a maneira diversa de pincelar de um Rafael, de um Duerer, de um Greco ou de um Cezanne; que é ainda conhecer a evolução histórica da cadência de dominante desde os primeiros tonalistas até os nossos dias: este aspecto da técnica a que chamei de "virtuosidade" é também ensinável e muito útil. Não me parece imprescindível, porém, e, como toda virtuosidade, apresenta grandes perigos. Não só porque pode levar o artista a um tradicionalismo técnico, meramente imitativo, em que o tradicionalismo perde suas virtudes sociais pra se tornar simplesmente "passadismo" ou, se quiserem, "academismo"; como porque pode tornar o artista uma vítima de suas próprias habilidades, um "virtuose" na pior significação da palavra, isto é, um indivíduo que nem sequer chega ao princípio estético, sempre respeitável, da arte pela arte, mas que se compraz em meros malabarismos de habilidade pessoais, entregue à sensualidade do aplauso ignaro. A técnica tradicional, a virtuosidade técnica, o conhecimento abalizado de como historicamente as épocas e os artistas resolveram os seus problemas de artefazer, é de grande utilidade para o artista. Mas, além dos perigos terríveis que esconde, e que só mesmo uma verdadeira organização moral de artista pode evitar, não me parece seja imprescindível. Por certo os senhores conhecem a anedota espanhola do moço poeta que, desejoso de fazer poemas sublimes, se dirigiu ao maior poeta do tempo e lhe perguntou como é que este fazia versos. E o grande poeta respondeu: no princípio do verso põe-se a maiúscula e no fim a pontuação. "E no meio?" indagou o moço. E o grande poeta: "Hay que poner talento"... Esta anedota nos convida a compreender a necessidade imprescindível do artesanato e a desnecessidade imediata da virtuosidade. As maiúsculas e a pontuação participam do artesanato da poesia. Mas as diversas soluções métricas, estróficas, sonoras, a própria linguagem poética de Gôngora, de Quevedo, de Encina eram desnecessárias, em princípio. Bastava que no meio do verso houvesse talento, isto é, na acepção em que o grande poeta empregou a palavra, justamente o que não se ensina. Finalmente, a terceira e última região da técnica é a solução pessoal do artista no fazer a obra de arte. Esta faz parte do "talento" de cada um, embora não seja todo ele. É de todas as regiões da técnica a mais sutil, a mais trágica, porque ao mesmo tempo imprescindível e inensinável. Não poderei insistir longamente sobre ela na conversa de hoje, tanto mais que, em sua sutileza, há muito que distinguir. Será, por exemplo, imprescindível, como afirmei? São numerosos os "exemplos" históricos aparentemente em contrário. Se tomamos a arte egípcia pra estudo, ou a grega, ou mesmo o gótico na escultura, nós conseguiremos com certa facilidade distinguir fases técnicas diversas, mas só raramente, como entre Scopas e Praxiteles, conseguimos perceber soluções técnicas pessoais . Maspero, numa página muito acertada, preocupou-se em caracterizar e explicar o aspecto de impersonalidade da arte egípcia. Depois de demonstrar que o princípio que regeu os quarenta e tantos séculos da arte egípcia não fôra de forma alguma a obtenção da beleza, mas a pesquisa do perdurável que assegurasse aos deuses e aos homens uma vida feliz e eterna, Maspero considera: "De modo geral, ninguém se enganará afirmando que o princípio de utilidade proibia, a quantos exerciam uma arte, assinar suas próprias obras, e consequentemente os condenava ao esquecimento. (...) E assim é que, estranhos a este desejo de imortalidade pela glória, cuja ação é tão poderosa em nossos dias, os artistas egípcios, em sua grande maioria, se contentaram de observar em consciência, como se se tratasse de mero ofício, as regras que o ensinamento de seus mestres declarava necessárias ao bem das almas humanas ou divinas. (...) E assim, nessa recusa sistemática em modificar os assuntos e os tipos tradicionais, a não ser no detalhe, o Egito imprimiu à sua arte esse caráter de uniformidade que nos assombra. O temperamento pessoal do indivíduo não se revela senão por detalhes de fatura quase imperceptíveis, e quem quer estude por alto a arte egípcia nada mais percebe que essa noção de impersonalidade coletiva (...)". Aliás também poderíamos afirmar de muitas manifestações artísticas, adstritas ao princípio de utilidade, especialmente das adstritas ao princípio de utilidade religiosa, que elas prescindem da técnica individual. Lembrarei outro argumento muito forte contra a minha afirmativa de que a técnica individual é imprescindível: o exemplo da arquitetura. A arquitetura é de tal forma regida pelo princípio de utilidade, de tal forma ela é condicionada às exigências da engenharia e à prática da vida, que um dos problemas bem discutidos e mais nebulosos da estética , resolver se a arquitetura é realmente uma das belas-artes, ou se entra para o conjunto das artes aplicadas. Ora, a arquitetura, enquanto boa arquitetura, é uma arte que se esquiva muitíssimo à técnica pessoal. Se vemos, por exemplo, o arquiteto Garnier ter um gesto genial de técnica individual resolvendo o problema do teatro, dividindo o edifício em três corpos funcionais distintos, o foyer, a sala de assistência e o palco, logo esta solução se tradicionaliza, é numerosamente usada, e de beleza se transforma em verdade, todos podendo se utilizar dela sem acusação de plágio. Os teatros municipais do Rio e de São Paulo repetem a solução da Opera de Paris, sem que, por isso, Pereira Passos e Ramos de Azevedo possam ser acusados de plagiários. Na verdade se poderia afirmar, embora um pouco tiranicamente, que, em arquitetura, a criação de uma técnica pessoal bem acusada só serve pra criar obras extravagantes. É o caso da torre Eiffel, em Paris, que os senhores todos conhecem por certo, uma extravagância arrojada, muito própria de exposição universal. É também o caso, muito menos defensável ainda (pois não se trata de uma experiência comprovatória de uma técnica), do arquiteto catalão Antônio Gaudi, criador nosso contemporâneo da escola de Barcelona. Não nego a seriedade, a honestidade deste artista, mas, por mais que o respeite, sou obrigado a ver na sua obra de arquitetura menos arquitetura que o desapoderado espírito separatista da Catalunha. A sua igreja da Sagrada Família, em Barcelona, é bem mais que um pesadelo sentimental e pouco menos que um horror artístico. Qualquer destes dois exemplos, o da arte egípcia condicionada ao princípio de utilidade religiosa e o da arquitetura condicionada ao princípio de utilidade funcional, é bom argumento de ordem geral pra contradizer a necessidade de uma técnica pessoal. Aduzirei contra eles apenas dois argumentos, também de ordem geral, pois que não é o momento agora pra análises mais particularizadas. Em primeiro lugar, se é muito mais difícil ou mesmo impossível a um leigo distinguir uma moradia arquitetada por Le Corbusier, de outra inventada por Flávio de Carvalho; se é dificílimo, mesmo a um estudioso longe da fonte, como seremos todos nós, observar as soluções de técnica pessoal entre duas estátuas da catedral de Burgos ou duas outras de tal dinastia egípcia, ao passo que nos é facílimo, mesmo de longe, distinguir um Rembrandt de um Velasquez, um Donatello de um Bernini, ou Mozart de Haydn; nem por isso aquela distinção deixa de existir. A um olho perito as diferenciações não escaparão; e o próprio Maspero, reconhecendo a impersonalidade da arte egípcia, se viu obrigado a acrescentar que "o temperamento pessoal do indivíduo não se revela senão por detalhes de fatura quase imperceptíveis. Por esta confissão se prova pois que a impersonalidade geral não deixa nunca de ceder aos pormenores pessoais de fatura, da mão que treme ao fazer, da criatura que sente ao criar. Além deste argumento de ordem psicológica, outro, de ordem histórica, se afirma violentamente. É que, se em épocas passadas, em geral muito distantes de nós, os diversos princípios de utilidade dominavam a criação artística e esta sujeitava-se aos ritos, às liturgias inamovíveis tanto de ordem religiosa como de ordem profana, vários elementos foram se desenvolvendo aos poucos no fenômeno da criação artística, foram, por assim dizer, se tornando mais conscientes ao artista. Este é o caso do individualismo como elemento intrínseco do artista. A noção de beleza está claro que sempre existiu, sendo ela uma das três grandes idéias normativas do ser humano. Apenas, em muitas manifestações artísticas anteriores a Cristo, ou isentas da concepção da primordialidade do indivíduo que o Cristianismo nos trouxe, o princípio de utilidade condicionava de tal forma a criação artística que a beleza era muito mais uma conseqüência que uma das finalidades da obra de arte. A beleza era apenas um meio de encantação aplicado a uma obra que se destinava a fins utilitários muito distantes dela. De outra forma não se compreenderiam as admiráveis pinturas dos homens madalenianos das cavernas de Altamira, na Espanha. Em recantos escuríssimos, onde não penetra a luz do dia, os caçadores da rena esconderam obras de arte perfeitas como realismo e espirito de síntese. Ora, a beleza nas artes plásticas requer, antes de mais nada, luz que a faça viver. Certamente essas pinturas admiráveis não se destinavam à contemplação humana; eram utensílios quer de religião, quer de magia, tinham uma utilidade prática, para aqueles homens, imediata. E a beleza era naquelas pinturas das cavernas uma resultante da necessidade de tornar a pintura um utensílio místico capaz de servir. E ocasionada por estes princípios primordiais, sempre reconhecida, mas desigualmente aplicada, mais conscientemente procurada entre gregos e romanos que entre egípcios e assírios, mais pretendida entre os polinesianos que entre os negros do Benin, só mesmo com o Renascimento, já na era cristã, é que a beleza principiou se impondo como finalidade, nas artes plásticas. Desde então, e cada vez mais, ela se tornou o objeto principal de pesquisa para o artista, e, por uma conversão natural de conceito, a beleza, pesquisada por si mesma, se tornou essencialmente objetiva e experimental, materialista por excelência, pra não dizer por exclusividade. Peço desculpa de apresentar assim abruptamente um problema de tamanha delicadeza crítica, como é este da rápida, da verdadeiramente brutal materialização da beleza, causada no Renascimento pela revalorização, ou melhor, pela colocação nova da beleza dentro do problema da criação artística. Deverá ser este um objeto de pesquisas cuidadosas em nossas aulas. Por hoje, apenas uma pequena consideração, novamente sobre os gregos e egípcios, vai nos dar uma prova em bruto de que a primazia assumida pela beleza na criação artística, durante o Renascimento, tornou-a imediatamente experimental e, por conseqüência, materialista e quase exclusivamente técnica. Contemplemos o chamado "nariz grego" ou o hieratismo da escultura egípcia. Buscando os egípcios figurar na pedra indivíduos ou deuses que iriam, por meio de uma de suas almas, de um dos seus "Ka", como eles diziam, habitar aquela pedra figurada, simplificaram ao mais possível a escultura, pra que ela resistisse o mais possível, ou mesmo eternamente, à corrupção do tempo. Daí ter a escultura em pedra dos egípcios obedecido o mais possível às exigências da pedra. Porque sendo a pedra resistente ao tempo, resistiria a escultura que lhe conservasse as propriedades mais intrínsecas. E assim a escultura egípcia tomou aquele maravilhoso caráter hierático, aquela dureza, aquela rijeza inamovível, de uma serenidade, de uma eternidade incomparáveis. Há realmente um quê de humano sobre-humano nessas figuras sublimes. Nelas reside, realmente, desculpem o exagero, nelas reside realmente uma alma, porque essas estátuas apresentam, como nenhumas de outras épocas, nem mesmo os budas asiáticos, a noção de eternidade. Com os gregos, já estamos num outro mundo, mais atento às forças da vida terrestre. Mas esta vida terrestre pra eles é ainda uma vida de rito, porque profundamente social. O indivíduo era pouco ou nada concebido lá. Assim, se a escultura grega abandona de uma vez o problema da eternidade e se torna muito mais naturalista, porque os gregos já estavam muito mais orientados pelas sensualidades da vida terrestre, jamais a estatuária grega da grande época se tornou realista, porque a determinava um conceito social da vida. Imitadores do corpo humano, e não apenas baseados nele como os egípcios, os gregos da grande época jamais conseguiram descobrir, no corpo humano, o indivíduo. Ao invés de tipos, criaram protótipos, transportando a realidade a uma idealidade superior, de ordem utilitária e de função social unitarista, unionista, unanimista. Daí o nariz grego, essa fusão perfilar de testa e nariz a uma linha praticamente reta que se tornou um ideal de beleza, por todos repetido. Mas o sentimento de eternidade, dos egípcios, como o nariz reto, dos gregos, criticamente falando, não eram apenas um ideal de beleza, eram também uma beleza ideal. Quero dizer: a sensação de beleza que essa estatuária nos dá, não tira o seu alimento apenas das linhas, dos volumes, dos claros-escuros, etc., senão que se alimenta também das necessidades outras, de exigências espirituais do indivíduo e sua finalidade. É um ideal necessário à coletividade. Estamos por certo aqui em dois momentos dos mais sublimes, dos mais complexos e completos, dos mais perfeitos da arte tendo como finalidade a obra de arte, condicionada aos destinos totais de ser humano que a faz. Ora, no Renascimento, especialmente já no alto Renascimento, com Ticiano, com Velasquez, com Rubens, com Rembrandt, com o Poussin, se cada vez mais o "ideal de beleza" plástica é procurado, raramente encontraremos essa noção de "beleza ideal". A beleza se desidealiza, a beleza se materializa, se torna objeto de uma pesquisa de caráter objetivo, ao mesmo tempo que o individualismo se acentua. Nem se pode mais decidir com clareza se, nas artes plásticas pelo menos, o individualismo é uma conseqüência da materialização da beleza, ou se esta é uma conseqüência daquele, de tal forma ambos se deduzem um do outro. Apenas o que podemos verificar historicamente, dos tempos do Renascimento até nossos dias, é que se a beleza meramente objetiva é um conceito que não se submete a uma progressão gradual, é mais consciente nuns e menos noutros artistas, não sofre o que propriamente se chamaria de evolução, pelo contrário o individualismo veio se acentuando sempre cada vez mais, até culminar no desbragado experimentalismo contemporâneo, que tanto experimenta objetivamente, com o cubismo e os abstracionistas, como subjetivamente com o expressionismo e os super-realistas. Sem dúvida esta compreensão crítica exposta aqui parece que se opõe fortemente àquele convidativo pensamento de Eugênio d'Ors que dá como origem da arte contemporânea o conflito entre a sabedoria grega e a inquietação ibérica. Se o grego sujeitava o belo às suas regras, o ibero foge constantemente das dele; o grego é repouso, o ibero, movimento; o primeiro goza plenamente do seu ser humano, ao passo que o segundo sente que o homem só é verdadeiramente homem sob a condição de se ultrapassar a si mesmo e se erguer até junto da divindade. Realmente, tenho bastante medo destas antíteses bem achadas, que pelo seu brilho são muito facilmente confundidas com a verdade. Mas, naquilo que o pensamento do espanhol tem de acertado, a maior, a esplêndida sabedoria grega que soube sujeitar o ideal da beleza às regras duma beleza ideal, e na maior inquietação perquiridora do mundo latino: o pensamento de Eugênio d'Ors em nada se opõe ao que afirmei. Apenas vejo que, do Renascimento aos nossos dias, há uma como que materialização geral da pesquisa artística, em que o homem, como atitude, menos que erguer-se até à divindade, busca participar da natureza desta mesma divindade. E, com efeito, por milhares de vezes teremos visto nos livros, nos jornais e nos discursos, essa frágil e fácil confusão do artista criador com o Deus criador - mero jogo de atributos parcialmente identificáveis. Pra não dizer, mero jogo de palavras... Ora, com essa pesquisa experimental da beleza e com esse individualismo, que se impuseram na arte desde o Renascimento, a técnica pessoal tomou importância não só de grande primazia, como de verdadeira fatalidade. Não se trata mais apenas daqueles "detalhes de fatura quase imperceptíveis" que Maspero denunciava dentro da vasta impersonalidade da arte egípcia, é antes de mais nada uma conseqüência do espírito do tempo, uma necessidade imperiosa e imprescindível do vastíssimo personalismo da arte contemporânea. E se sempre existiram e são psicologicamente fatais as minúsculas diferenciações da fatura, essa técnica pessoal, essa procura técnica de resolver o seu problema pessoal diante da obra de arte, se acresceu contemporaneamente de mais essa outra igualmente imperiosa fatalidade, que é o espírito do tempo. É verdadeiramente dramático, é sobre todos trágico o aspecto da arte contemporânea, sob este ponto-de-vista. Vêm os modernos, vêm os modernistas, vêm os futuristas, os cubistas, todos eles de bandeiras novas na mão. Esses ao menos têm a lealdade de se dizerem representantes do espírito do tempo. Mas da outra banda nos chegam os reacionários, os que se revoltam contra os modernos em nome de não sei que "leis eternas da beleza"; vêm mesmo os que se intitulam de "anti-modernos", ingenuamente virtuosísticos, falando em nome do passado, ou da tradição, ou apenas do bom-senso. Ou ainda, mais vaidosamente, em nome apenas do senso-comum! Na verdade não são todos estes, reacionários, tradicionalistas ou anti-modernos, senão representantes fatais do mesmo espírito do tempo, e cada um deles traz sua receita, sua solução, sua verdade pessoal Não temos que aprofundar nem levar mais longe o problema, para reconhecer a necessidade imprescindível de uma técnica pessoal. O espírito do tempo a exigirá de quantos se queiram artistas criadores legítimos. Mas esta técnica pessoal é inensinável, porém; cada qual terá que procurar e achar a sua, pra poder se expressar com legitimidade. E não derivará disso, não digo a grandeza de manifestações diversas da arte contemporânea, mas a incontestável desorientação, o incontestável caos, o "caoticismo" da arte atual?... Estou convencido que não. A técnica, por mais que ela possa ser concebida como expressão de um indivíduo e da sua atitude em face da vida e da obra de arte, não pode de forma alguma levar ao caos e à desorientação. Não pode, simplesmente porque ela é um fruto de relação entre um espírito e o material. E se, psicologicamente, podemos conceber um espírito tão vaidoso de suas vontadinhas que se sujeite, que se escravize às mais desabridadas liberdades, a matéria, por seu lado, isto é, a pedra, o óleo, o lápis, o som, a palavra, o gesto, a tela, o pincel, o camartelo, a voz, etc., etc., têm suas leis, porventura flexíveis mas certas, tem suas exigências naturais, que condicionam o espírito. A "técnica", no sentido em que a estou concebendo e me parece universal, é um fenômeno de relação entre o artista e a matéria que ele move. E se o espírito não tem limites na criação, a matéria o limita na criatura. O caoticismo, a desorientação de grande parte das artes contemporâneas não deriva da variabilidade maravilhosa da técnica pessoal; deriva, sim, a meu ver, em muitos artistas, da ausência de uma atitude... mais ou menos filosófica. Deixem passar este "mais ou menos", que se explicará logo. E é para a obtenção desta atitude "mais ou menos" filosófica em face da arte, que intervêm o espírito desta universidade e as conversas deste curso. Iniciando as minhas aulas, quero prevenir, desde logo, que serei muito mais um comentador que um teórico. Vou apenas ensaiar um sistema de conversas que, através da História da Arte, consiga dar aos meus companheiros de curso, muito mais uma limitação de conceitos estéticos que uma fixação deles. Um curso que, pelo seu aspecto de experimentalismo crítico sobre a História da Arte, será muito mais o convite à aquisição de uma séria consciência artística que a imposição de um sistema estético, de uma Estética perfeitamente orgânica e lógica e, por isso mesmo, para o artista, asfixiante e enceguecedora. Sem dúvida, uma orientação assim poderá ser porta aberta ao ecletismo, em todo o mau sentido que possa ter esta palavra: o ecletismo, que é acomodatício e máscara de todas as covardias. Mas a limitação dos conceitos estéticos, a aquisição de uma verdadeira atitude artística, deverá evitar os males do ecletismo. Mas por que a gente preferir apenas a aquisição de uma consciência artística, ao invés de uma Filosofia da Arte, orgânica e possivelmente lógica?... Porque estamos aqui entre pessoas que se destinam a artistas; e não cabe ao artista, a meu ver, pelo menos é perigosíssima, a fixação de um sistema filosófico da arte, que lhe iria limitar a um dogmatismo científico a liberdade incontestavelmente mais trágica da arte. Maurice Blondel diz muito bem que "se a estética fosse considerada como uma espécie de metafísica nocional ou de superintendência, feita para embridar artistas, melhor seria destrui-la. Muito antes que ser subjugada por abstrações, a atividade artística deve contribuir pra que nos libertemos delas, pois é justamente a atividade artística que nos abre um dos caminhos mais penetrantes de introdução ao ser. Ela é que, concorrendo a uma "ciência do singular" e ao progresso, à salvaguarda do pensamento concreto, esposa e fecunda a metafísica verdadeira, ao invés de se escravizar à ideologia". Ao artista cabe apenas, é imprescindível a meu ver, adquirir uma severa consciência artística que o... moralize, se posso me exprimir assim. Só esta severa atitude, antes de mais nada humana, é que deve na realidade orientar e coordenar a criação. Shulze Soelde lembra, em boa metáfora, que para o esteta a beleza é uma criada que o serve, ao passo que para o artista é uma criança de que ele se utiliza. Se esta não será a verdade inteira, a imagem serve bem pra caracterizar o lado de obediência do artista diante de elementos que têm pra com ele a complexidade, a variabilidade, a inconstância e a independência da própria infância. A História da Arte está aí para demonstrar a verdade desta afirmativa. Jamais um artista legítimo se prendeu ao dogmatismo de uma estética perfeitamente orgânica. Esta cabe aos filósofos; e todas as doutrinas estéticas até agora jamais puderam explicar ou mesmo aceitar todas as obras-primas da humanidade. Jamais os artistas verdadeiros ficaram, em suas obras, nos limites doutrinários que se prefixaram. Foram sempre além, saltaram sempre fora das limitações preestabelecidas. Lembrarei mais uma vez aqui o exemplo clássico do Humanismo, querendo repetir em toda a sua estética a tragédia grega, e criando a ópera italiana? Lembrarei mais apenas, como caso contrário, a frieza aplicada do Pré-rafaelismo inglês, um dos poucos exemplos históricos de um sistema estético dogmaticamente expresso em arte. Mas entre esta expressão legítima da mediocridade e os italianos anteriores a Rafael, vai um mundo. É porque realmente, em arte, a regra dever ser apenas uma norma e jamais uma lei. O artista que vive dentro de suas leis será sempre um satisfeito. E um medíocre.