sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

BETH NÉSPOLI - O MAIS FAMOSO E MAL INTERPRETADO MÉTODO DE ATOR

No ensaio de uma peça teatral, atores e atrizes estão deitados imóveis no chão e assim permanecem durante horas. Uma técnica de relaxamento? Não, trata-se de um laboratório fundamental para a criação do espetáculo, segundo o diretor, no qual eles devem compreender como se sente "um cadáver". O tal diretor jura estar aplicando um dos exercícios sugeridos pelo russo Constantin Stanislavski (1863-1938). A história absurda ocorrida na década de 70, "digna de uma peça de Ionesco", narrada pelo ator Ewerton de Castro é mais uma no imenso folclore de distorções do método de ator criado por Stanislavski, sistematizado e divulgado principalmente por meio de 3 livros, entre os 13 do autor. Os três foram publicados no Brasil pela editora Civilização Brasileira: A Preparação do Ator (12ª edição), A Construção da Personagem (8ª edição) e A Criação do Papel, cuja 6ª edição acaba de ser lançada.

Muitos acreditam que tais distorções teriam sido evitadas se os três livros tivessem sido editados simultaneamente ou, pelo menos, os intervalos não tivessem sido tão longos.

A Preparação do Ator foi publicado em Nova York em 1936, traduzido por Elizabeth Reynolds Hapgood a partir de um manuscrito enviado pelo autor. Em 1964, o mesmo livro foi publicado no Brasil numa tradução de Pontes de Paula Lima a partir da versão americana.

A Construção da Personagem só seria publicado em língua inglesa em 1949, portanto 13 anos depois do primeiro. No Brasil, foi traduzido por Pontes também a partir da versão em idioma inglês, em 1970.

A Criação do Papel foi publicado pela primeira vez nos Estados Unidos em 1961 e só chegaria ao País, igualmente traduzido Pontes da versão americana, na década de 80.

Memória afetiva - A defasagem entre as publicações certamente foi um dos motivos do mau entendimento do método. Isso porque no primeiro livro Stanislavski desenvolve exercícios para treinar as qualidades interiores do ator, como imaginação e concentração, incluindo-se aí a muito e às vezes "mal" aplicada "memória emotiva". O segundo enfoca preparação física, voz, gestos, o corpo. A Criação do Papel é dedicado à etapa final, a preparação de papéis específicos, a partir da leitura de textos teatrais. No livro, o autor utiliza três deles como exemplo: A Desgraça de Ter Espírito, de Griboyedov; Otelo, de Shakespeare; e O Inspetor Geral, de Gogol. O diretor Augusto Boal estudou na Universidade de Columbia a partir de 1952 e viu in loco a aplicação do método - ou a parte que se conhecia dele - no prestigiado Actor's Studio.

"O problema na adaptação americana do método foi o excesso de subjetividade", diz. "Para responder a uma pergunta simples do tipo "como vai", o ator pegava lentamente um copo, rodava-o na mão, bebia um pouco, andava até a parede e só então voltava sobre si mesmo e respondia: `Tudo bem'." Boal ressalta que nesse processo intenso de pesquisa interior - muitas vezes sobre as próprias emoções e não as do personagem - o ator acabava falhando nas inter-relações, ou seja, na contracena e também apreendia mal a idéia geral da peça. "Não basta estar emocionado: é preciso saber a qual idéia, mais ampla, serve aquela emoção." Ele lembra ainda que, além da defasagem entre as publicações, Stanislavski nunca parou de pesquisar e seguiu escrevendo livros, jamais editados no Brasil. "Tenho um livrinho fininho dele, um estudo sobre a ação física, muito interessante, no qual parte da ação para emoção: no lugar do ator entender qual é a emoção necessária para levar um personagem a pegar uma pedra e atirar numa vidraça, primeiro ele quebra a vidraça para depois entender o que sentiu."

Arlete Cavallieri, professora de cultura russa da Faculdade de Letras da USP, ressalta a importância dessas publicações, "sempre bem-vindas", mas lamenta o fato de serem traduzidas a partir das versões americanas. "Entre os livros de Stanislavski publicados no Brasil, somente Minha Vida na Arte, editado pela Perspectiva, foi traduzido diretamente do original russo pelo professor Paulo Bezerra." Segundo ela, uma boa tradução poderia desfazer algumas dessas distorções. Especialista no "método", que ela prefere chamar de "sistema", a russa Elena Vassina já esteve em diversos países realizando palestras e oficinas para atores sobre o assunto. Apaixonada pelo Brasil, um amor que nasceu a partir de suas primeiras leituras de traduções russas de romances de Guimarães Rosa e Érico Veríssimo, entre outros, Vassina aprendeu o idioma português e esteve no Brasil várias vezes ministrando palestras sobre o método. Há uma semana ela voltou ao País para dar um curso de quatro meses na Faculdade de Letras da USP.

Close - Segundo ela, a apreensão do método em todo o continente americano é claramente diferente da do resto do mundo. "Na América, o enfoque foi centrado essencialmente na memória emotiva, o que é muito útil para os atores de cinema e Hollywood é prova disso." Isso porque um "close" da câmera tem o poder de captar no olho do ator toda a gama de emoções interiores por ele investigada. No palco, o ator está distante do espectador, que jamais poderá ver no seu olho o trabalho interior realizado em meses de ensaio. "Na Rússia, o enfoque maior foi dado à análise do personagem, à criação do papel e do espetáculo." Stanislavski hesitou em escrever sobre seu sistema temendo que o "seu registro escrito pudesse assumir o aspecto de uma espécie de bíblia," diz a tradutora americana Elizabeth. Nada mais premonitório. Escaldado, o ator Ewerton de Castro, ao fundar a escola de formação de atores que leva seu nome, instituiu uma regra. "Stanislavski é leitura obrigatória, mas só depois de um ano de freqüência à escola."

O Estado de São Paulo - Caderno 2 - Página D-7.
14/08/1999.

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