sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

RUBENS CORRÊA - RECADO AOS JOVENS ATORES

Fui convidado para conversar com vocês sobre o ator; sei que muitos aqui jamais representaram, e outros deram apenas os seus primeiros passos neste caminho labiríntico que é o mundo da interpretação. É uma tarefa que exige de mim sensibilidade e coragem; acho uma grande responsabilidade falar aos jovens, e é com muita emoção e prazer que passo adiante as humildes sementes do meu trabalho artístico, com a esperança de que alguma utilidade possa ser encontrada nelas e que de alguma maneira elas possam lhes tornar a caminhada menos solitária e mais solidária, na medida em que esta receita muito pessoal provoque dúvidas e reconsiderações, ou toque o sagrado dentro de cada um de vocês, ou reacenda aquela esperança cega que Prometeu garantiu ser a conquista mais urgente para a sobrevivência do homem neste planeta. O grande poeta e dramaturgo alemão Büchner escreveu numa cena de sua peça "Woyzeck": "Cada ser humano é um abismo e a gente tem vertigens quando se debruça sobre um deles." Acho que nós, atores, somos duplamente esse abismo-espelho: como seres humanos e como artistas. Nossa missão é provocar a vertigem e o revisionamento do abismo dentro de cada espectador, para que depois de cada mergulho em nossos personagens-propostas, essas pessoas pensem, se emocionem, compreendam, e amem com nova e maior intensidade. Eu, Rubens Corrêa, ator e artista de teatro, vinte e oito anos de profissão, e séculos e mais séculos de um longo período mão sei onde, ofereço a vocês com apaixonada humildade o meu aprendizado nesta caminhada em cima das brasas sem se queimar, que é a condição necessária para poder representar e viver com algum significado, neste bizarro país sul-americano. A primeira revelação que tive no ato de representar foi durante a minha infância na minha cidadezinha matogrossense: levaram-me ao circo numa certa noite - um dos poucos circos que se atreviam a ir tão longe em suas excursões pelo Brasil da década de 30. Lembro-me até do nome: Circo Teatro Zoológico. Ao final da primeira parte, depois dos trapezistas, palhaços e animais - pediram que colocássemos nossas cadeirinhas na arena central frente a uma cortina fechada por onde entravam os artistas para fazerem os seus números. Muitas marteladas, ruídos, depois o silêncio, e as clássicas 14 batidas de Molière anunciando o início do espetáculo. Aquela cortininha se abriu, e nos foi contada uma história. Aquilo me pareceu uma brincadeira excelente, e no dia seguinte, comandei o feitio de um circo no quintal de minha casa, ajudado pelos amigos, pelos lençóis da minha mãe e alguns bichos domésticos convidados para abrilhantar a apresentação. Mas faltava algo: lembrei-me então daqueles rostos magros pintados de dourado e de suor, de um certo hálito de cachaça que se notava quando eles se chegavam até nós para vender retratos nos intervalos,e não sei o que de mágico e agressividade nas fisionomias. Não dispunhamos daquela energia, daquela sedução, nem daquela maldição, e o nosso circo malogrou. Mas eu, a partir daí, passei a brincar de fazer figuras, caretas, vultos, máscaras e tipos - em frente do grande espelho do guarda-roupa de minha mãe. Esse foi o meu primeiro palco. Mas ficou-me para sempre a nostalgia da beleza daqueles meus irmãos desconhecidos, maltratados e fascinantes que marcaram para sempre com ferro em brasa a palavra TEATRO no meu coração. Anos mais tarde, já no início da década de 40, me mandaram para um Internato Marista no Rio de Janeiro. Fora das disciplinas normais que me entediavam mortalmente, estudei piano, aprendi cantochão, li Shakespeare, Calderón de la Barca, Gil Vicente, descobri música erudita e fui "coroinha", que era como chamavam os alunos que "ajudavam" na missa. O prêmio era sempre um pouco de vinho e hóstias não consagradas, mais uma saída extra por mês. Mas o que me interessava era o ritual teatralizado da missa: o texto decorado em latim, as batinas especiais, as músicas de órgão e os cantos que acompanhavam a cerimônia, mais as campainhas, o cálice, as flores, o incenso e as velas. Ajudar a missa para mim era representar. Aos poucos, porém, fui descobrindo uma espécie de logro naqueles cerimoniais; o desinteresse e a mecanidade dos padres que celebravam o ofício e toda uma sensação repressiva que o catolicismo passou a exercer sobre mim, desmancharam a magia deste meu segundo palco. Saí do colégio com a idéia de ser pianista. Assistia aos espetáculos teatrais da época feitos em cima de grandes vedetes, mas a ausência de poesia naqueles espetáculos acabou neutralizando dentro de mim aquela paixão instintiva pelo palco. Até que um dia assisti ao "Hamlet" feito pelo Teatro dos Doze, com Sérgio Cardoso no protagonista, e esse espetáculo, mais a inesquecível e apaixonante interpretação de Sérgio me revolveu as entranhas e criou dentro de mim a necessidade de uma opção: "Teatro ou Música". Fui obrigado a servir o exército e aproveitei essa calamidade para me permitir um tempo de espera antes da resolução. Porque havia um problema terrível: onde começar, como estudar e praticar? É o problema de cada nova geração e naquela época as poucas escolas não me satisfaziam e os grupos profissionais estavam por demais mergulhados no comercialismo. Aí apareceu o "Tablado". Assim que terminei o exército, ganhei uma vez, por acaso, um convite para a estréia do grupo. Era tudo o que precisava. O espetáculo tinha conjunto, equilíbrio, acabamento, simplicidade e poesia. No dia seguinte saí a procura de um professor de voz e durante dois anos me preparei para entrar no "Tablado". Estudei voz e interpretação com Martinho Severo e depois fiz o Curso de Direção da Fundação Brasileira de Teatro orientada por Adolfo Celi, Ziembinski e Gianni Ratto. No "Tablado", fiz inicialmente algumas comparcerias, coro e pequenos papéis, mas minha estréia mesmo aconteceu em dezembro de 1955 com a peça de Anton Tchecov , "Tio Vânia", onde fazia o papel de Ilia Ilitch, com direção de Geraldo Queiroz. Permaneci no Tablado durante quatro anos onde aprendi o amor e o cuidado no exercício da minha profissão, e onde dei os meus primeiros passos como ator e homem de teatro. Saí do Tablado em fins de 58, para fundar com Ivan de Albuquerque um grupo que inicialmente chamou-se Teatro do Rio, localizado no teatro de mesmo nome na rua do Catete, hoje Teatro Cacilda Becker, e que depois, com a nossa mudança para o teatro próprio em Ipanema, passou-se a chamar Teatro Ipanema. Este ano estamos completando 25 anos de atividades teatrais e estamos em cartaz com uma peça de Fauzi Anap, "Quase 84".

O CÁLICE
Representar para mim é a possibilidade que me foi dada de me comunicar com o meu semelhante através de uma troca de idéias, imagens, palavras, gestos e emoções. Um divertido, fascinante e muitas vezes cruel, jogo que mistura ficção, realidade, consciente e inconsciente, sagrado e profano, amor e ódio, vida e morte. Uma paixão. Através dos anos, venho elaborando em cima das tábuas, o meu trabalho, tentando sempre o difícil equilíbrio entre as conquistas técnicas e a simplicidade da execução. Aqueles instantes, todas as noites em que represento um papel. são sempre os melhores momentos do meu dia. Isso quer dizer que levo para o palco meus sentimentos, minhas idéias, minhas alegrias, meus abismos, meu horror e minha luz. Diariamente filtro essas emoções através das necessidades de cada personagem, e recebo de volta para mim mesmo, uma nova compreensão de meus problemas - e acrescento ao personagem um novo enriquecimento conseguido "a quente", quer dizer, arrancado de mim mesmo. Com o correr dos anos, fui aprendendo a me observar como artista e ser humano e fui tentando aproveitar em meus desenhos interpretativos a linguagem interior de minha vivência pessoal, para conseguir assim essa difícil união entre arte e vida, que foi sempre a minha grande aspiração. Sempre acreditei que cada ator traz consigo um material fantástico, inimitável e único, muito difícil de ser conservado e desenvolvido nessa nossa era brutalizada e massificada. É um cálice de cristal interior, que deve ser preservado e defendido através de muitos terremotos, muita contrariedade, muita decepção e sensação de abandono, mas com momentos também de enorme luminosidade que quando acontecem recompensam o artista e engrandecem o ser humano. Cada ator é único e inimitável se ele mergulha com honestidade em si mesmo, e retrata o seu semelhante com generosidade, verdade e paixão. "Somos feitos da essência com que os sonhos são feitos." escreveu Shakespeare, e essa é a melhor definição que conheço sobre o mistério da representação.

O CAVALO
Cada ator tem obrigação de zelar e desenvolver o seu instrumental - sua voz, seu corpo: seu cavalo. Devemos transformar nosso corpo num grande arquivo de imagens com possibilidades de serem utilizadas em nossos futuros personagens; nossa voz deve poder miar, rugir, gemer, uivar - nossas mãos podem ser galhos de árvores, garras de feras, folhas secas ao vento - nossos pés, colunas de um templo, patas de animais. Nossos olhos devem poder reproduzir o enigma do olhar da Esfinge, e a clareza cristalina de um poema de Brecht. E mais, devemos nos preparar para poder receber como artística mediunidade, a alma do mundo, as grandes interrogações do nosso tempo, a voracidade desse universo em constante transformação. Devemos ser suficientemente fortes para poder reproduzir simultâneamente a maravilha e o horror do ser human, a criatividade e a autodestrutividade de nós todos, homens, através dessa difícil caminhada da vida. O nosso cavalo deve então se preparar para poder assumir todas essas formas e por isso ele tem de ser constantemente reabastecido e renovado. O cavalo é também o estimulador de nossa energia, o conservador de nosso entusiasmo e de nossa fé; quando as crises vierem (e não tenham dúvidas de que elas virão), nada melhor do que trabalhar na fortificação do CAVALO, porque no mínimo - estaremos crescendo durante a crise, estaremos trabalhando e temperando novas energias, adquirindo novas técnicas, novos conhecimentos. Podem ter certeza de que um bom cavalo torna o ator indestrutível.

O FOGO
O fogo através do tempo sempre foi o símbolo vivo da fé, do entusiasmo e da rebeldia; mantê-lo aceso dentro de nós é também um trabalho para a vida inteira. O fogo nasce de um estado de curiosidade natural e instintivo e pode ser desenvolvido através da conquista progressiva de uma cultura geral, de uma observação apaixonada da história do Homem, da história de todas as artes, da emocionante história do teatro - e um profundo sentimento de observação do ser humano - aqueles para quem realizaremos nossas mágicas, o nosso público. Esse fogo interno, uma espécie de sol central de energia e fé, é uma grande defesa contra a acomodação e me parece ser a grande mola propulsora da criatividade; devemos estar sempre atentos aos seus chamados, e é preciso não deixar nunca, custe o que custar, esse fogo esmorecer, porque, caso isso aconteça, seremos os artifices de uma arte morta, sonâmbula, inútil, feia e resignada.

O MENINO
A recuperação da liberdade da infância através da vida adulta foi sempre uma das minhas metas; a criança é uma fonte incrível de informação artística, e a criança que nós fomos recuperadas através do nosso lado lúdico tão atrofiado pelo correr dos anos - pode nos servir de guia, mas um guia muito especial - que caminha alegre e despreocupado, que sabe descobrir o mágico dentro do cotidiano intuitivamente. Um grande exemplo da presença do menino dentro de um artista está na figura e na obra do pintor Pablo Picasso. "Eu não procuro, eu acho." afirmava o grande pintor. E essa fala denuncia o menino que Picasso levava dentro de si, que pintava cerâmica usando como base para o desenho a espinha do peixe que tinha comido no almoço, ou fazia fantástica escultura aproveitando uma roda velha e quebrada de uma bicicleta encontrada na estrada durante seu passeio matinal. O menino traz alegria e descompromisso racional para o trabalho artístico. No passeio público do Rio de Janeiro tem um menino-anjo esculpido num bebedouro (se não me engano de Mestre Valentim) com a seguinte legenda: "Ser útil, inda brincando." Essa é a lei da sabedoria dos meninos. Acho que, preservando o cálice, domando o cavalo, estimulando o fogo e soltando o menino, o artista está preparado para viver e criar uma vida bela e uma obra últil para a coletividade.

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