sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

ARISTÓTELES - POÉTICA - PARTE II

IX. Poesia e história. Mito trágico e mito tradicional. Particular e universal. Piedade e terror. Surpreendente e maravilhoso.

50. Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixaria de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa)- diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por "referir-se ao universal" entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens; particular, pelo contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu.

51. Quanto à comédia, já ficou demonstrado [este caráter universal da poesia]; porque os comediógrafos, compondo a fábula segundo a verosimilhança, atribuem depois às personagens os nomes que lhes parece, e não fazem como os poetas jâmbicos, que se referem a indivíduos particulares.

52. Mas na tragédia mantêm-se os nomes já existentes. A razão é a seguinte: o que é possível é plausível; ora, enquanto as coisas não acontecem, não estamos dispostos a crer que elas sejam possíveis, mas é claro que são possíveis aquelas que aconteceram, pois não teriam acontecido se não fossem possíveis.

53. Todavia, sucede também que em algumas tragédias são conhecidos os nomes de uma ou duas personagens, sendo os outros inventados; em outras tragédias nenhum nome é conhecido, como no Anteu de Agatão, em que são fictícios tanto os nomes como os fatos, o que não impede que igualmente agrade. Pelo que não é necessário seguir à risca os mitos tradicionais donde são extraídas as nossas tragédias; pois seria ridícula fidelidade tal, quando é certo que ainda as coisas conhecidas são conhecidas de poucos, e contudo agradam elas a todos igualmente.

54. Daqui claramente se segue que o poeta deve ser mais fabulador que versificador; porque ele é poeta pela imitação e porque; imita ações. E ainda que lhe aconteça fazer uso de sucessos reais, nem por isso deixa de ser poeta, pois nada impede que algumas das coisas que realmente acontecem sejam, por natureza, verossímeis e possíveis e, por isso mesmo, venha o poeta a ser o autor delas.

55. Dos mitos e ações simples, os episódicos são os piores. Digo "episódico" o mito em que a relação entre um e outro episódio não é necessária nem verossímil. Tais são os mitos de maus poetas, por [imperícia] deles, e às vezes de bons poetas, por [condescendência com os] atores. É que, para compor partes declamatórias, chegam a forçar a fábula para além dos próprios limites e a romper o nexo da ação.

56. Como, porém, a tragédia não só é imitação de uma ação completa,como também de casos que suscitam o terror e a piedade, e estas emoções se manifestam principalmente quando se nos deparam ações paradoxais, e, perante casos semelhantes, maior é o espanto que ante os feitos do acaso e da fortuna (porque, ainda entre os eventos fortuitos, mais maravilhosos parecem os que se nos afiguram acontecidos de propósito - tal é, por exemplo, o caso da estátua de Mítis em Argos, que matou, caindo-lhe em cima, o próprio causador da morte de Mítis, no momento em que a olhava -, pois fatos semelhantes não parecem devidos ao mero acaso), daqui se segue serem indubitavelmente os melhores os mitos assim concebidos. "

X Mito simples e complexo. Reconhecimento e peripécia.

57. Dos mitos, uns são simples, outros complexos, porque tal distinção existe, por natureza, entre as ações que eles imitam.

58. Chamo ação "simples" aquela que, sendo una e coerente, do modo acima determinado, efetua a mutação de fortuna, sem peripécia ou reconhecimento; ação "complexa", denomino aquela em que a mudança se faz pelo reconhecimento ou pela peripécia, ou, por ambos conjuntamente.

59. É porém necessário que a peripécia e o reconhecimento surjam da própria estrutura interna do mito, de sorte que venham a resultar dos sucessos antecedentes, ou necessária ou verossimilmente. Porque é muito diverso acontecer uma coisa por causa de outra, ou acontecer meramente depois de outra.

XI Elementos qualitativos do mito complexo: reconhecimento e peripécia.

60. "Peripécia" é a mutação dos sucesso no contrário, efetuada do modo como dissemos; e esta inversão deve produzir-se, também o dissemos, verossímil e necessariamente. Assim no Édipo, o mensageiro que viera no propósito de tranqüilizar o rei e de liberta-lo do terror que sentia nas relações com a mãe, descobrindo quem ele era, causou efeito contrário; e no Linceu: sendo Linceu levado para a morte, e seguindo-o Danau para o matar, acontece o oposto - este morre e aquele fica salvo.

61. O "reconhecimento", como indica o próprio significado da palavra, é a passagem de ignorar ao conhecer, que faz para amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita.

62. A mais bela de todas as formas de reconhecimento é a que se dá juntamente com a peripécia, como, por exemplo, no Édipo. E outras há ainda, pois com seres inanimados e casos acidentais também pode dar-se o reconhecimento do modo como ficou dito; e também constitui reconhecimento o haver ou não haver praticado uma ação. Mas é a primeira forma aquela que melhor corresponde à essência do mito e da ação, porque o reconhecimento com peripécia suscitará terror e piedade, e nós mostramos que a tragédia é imitação de ações que despertam tais sentimentos. E demais, a boa ou má fortuna resultam naturalmente de tais ações.

63. Posto que o reconhecimento é reconhecimento de pessoas, certos casos há em que o c somente de uma por outra, quando claramente se mostra quem seja esta outra; noutros casos, ao invés, dá-se o reconhecimento entre ambas as personagens. Assim, Ifigênia foi reconhecida por Orestes pelo envio da carta, mas, para que ela o reconhecesse a ele, foi mister outro reconhecimento.

64. São estas duas as partes do mito: peripécia e reconhecimento. Terceira é a catástrofe. Que sejam a peripécia e o reconhecimento, já o dissemos. A catástrofe é uma ação perniciosa e dolorosa, como o são as mortes em cena, as dores veementes, os ferimentos e mais casos semelhantes.

XII Partes quantitativas da tragédia.

65. Temos tratado daquelas partes da tragédia de que se deve usar, como de seus elementos essenciais. Mas, segundo a extensão e as ações em que pode ser repartida, as partes da tragédia são as seguintes: prólogo, episódio, êxodo, coral - dividido, este, em párodo e estásimo. Estas partes são comuns a todas as tragédias; peculiares a alguns são os "cantos da cena" e os kommói.

66. Prólogo é uma parte completa da tragédia, que precede a entrada do coro; episódio é uma parte completa da tragédia entre dois corais; êxodo é uma parte completa, à qual não sucede canto do coro; entre os corais, o párodo é o primeiro, e o estásimo é um coral desprovido de anapestos e troqueus; kommós é um canto lamentoso, da orquestra e da cena a um tempo.

67. Tratamos das partes da tragédia que devem ser usadas como elementos essenciais; estas são, por sua vez, as partes da tragédia considerada em extensão e nas ações em que é possível repartí-la.

XIII A situação trágica por excelência. O herói trágico.

68. Que situações os argumentistas devem procurar e quais devem evitar, e também por que via hão de alcançar o efeito próprio da tragédia - eis o que resta dizer depois de tudo quanto foi dito.

69. Como a composição das tragédias mais belas não é simples, mas complexa, e além disso deve imitar casos que suscitam o terror e a piedade (porque tal é o próprio fim desta imitação), evidentemente se segue que não devem ser representados nem homens muito bons que passem da boa para a má fortuna - caso que não suscita terror nem piedade, mas repugnância -- nem homens muito maus que passem da má para a boa fortuna, pois não há coisa menos trágica, faltando-lhe todos os requisitos para tal efeito; não é conforme aos sentimentos humanos, nem desperta terror ou piedade. O mito também não deve representar o malvado que se precipite da felicidade para a infelicidade. Se é certo que semelhante situação satisfaz os sentimentos de humanidade, também é certo que não provoca terror nem piedade; porque a piedade tem lugar a respeito do que é infeliz sem o merecer, e o terror, a respeito do nosso semelhante desditoso, pelo que, neste caso, o que acontece não parecerá terrível nem digno de compaixão.

70. Resta portanto a situação intermediária. É a do homem que não se distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no infortúnio, tal acontece não porque seja vil e malvado, mas por força de algum erro; e esse homem há de ser algum daqueles que gozam de grande reputação e fortuna, como Édipo e Tiestes ou outros insignes representantes de famílias ilustres.

71. É pois necessário que um mito bem estruturado seja antes simples do que duplo, como alguns pretendem; que nele se não passe da infelicidade para a felicidade, mas, pelo contrário, da dita para a desdita; e não por malvadez, mas por algum erro de uma personagem, a qual, como dissemos, antes propenda para melhor do que para pior. Que assim deve ser, o passado o assinala: outrora se serviam os poetas de qualquer mito; agora, as melhores tragédias versam sobre poucas famílias, como sejam as de Alcmêon, Édipo, Orestes, Meleagro, Tiestes, Télefo e quaisquer outros que obraram ou padeceram tremendas coisas.

72. A mais bela tragédia, conforme as regras da arte, é, portanto, a qual; for composta do modo indicado. Por isso erram os que censuram Eurípedes, por assim proceder nas suas tragédias, as quais, a maior parte das vezes, terminam no infortúnio. Tal estrutura, já o dissemos, é a correta. A melhor prova é a seguinte: na cena e nos concursos teatrais, as tragédias deste gêneros mostraram-se como as mais trágicas, quando bem representadas, e Eurípides, se bem que noutros pontos não respeite a economia da tragédia, revela-se-nos certamente como o mais trágico de todos os poetas.

73. Cabe o segundo lugar, não obstante alguns lhe atribuírem o primeiro, a tragédia de dupla intriga, como a Odisséia, que oferece opostas soluções para os bons e para os maus. Estas tragédias não parecem merecer o primeiro lugar senão por astenia do público, porque poetas complacentes as compuseram ao gosto dele. Mas o prazer que resulta deste gênero de composições é muito mais próprio da comédia, porque nela os que são na lenda inimicíssimos, como Orestes e Egisto, se tornam por fim amigos, e nenhum deles é morto pelo outro.

XIV O trágico e o monstruoso. A catástrofe. O poeta e o mito tradicional.

74. O terror e a piedade podem surgir por efeito do espetáculo cênico, mas também podem derivar da íntima conexão dos atos, e este é o procedimento preferível e o mais digno do poeta. Porque o mito deve ser composto de tal maneira que quem ouvir as coisas que vão acontecendo, ainda que nada veja, só pelos sucessos trema e se apiade, como experimentará quem ouça contar a história de Édipo. Querer produzir estas emoções unicamente pelo espetáculo é processo alheio à arte e que mais depende da tragédia.

75. Quanto aos que procuram sugerir pelo espetáculo, não o tremendo, mas o monstruoso, esses nada produzem de trágico; porque da tragédia não há que extrair toda a espécie de prazeres, mas tão-só o que lhe é próprio. Ora, como o poeta deve procurar apenas o prazer inerente à piedade e ao terror, provocados pela imitação, bem se vê que é na mesma composição dos fatos que se ingerem tais emoções.

76. Consideremos agora quais de entre os eventos do mito parecem de tremer, e quais os de se compadecer.

77. Ações deste gênero devem necessariamente desenrolar-se entre inimigos, inimigos ou indiferentes. Se as coisas se passam entre inimigos, não há que compadecer-nos, nem pelas ações, nem pelas intenções deles, a não ser pelo aspecto lutuoso dos acontecimentos; e assim, também, entre estranhos. Mas se as ações catastróficas; sucederem entre amigos - como, por exemplo, o irmão que mata ou esteja em vias de matar o irmão, ou um filho o pai, ou a mãe um filho, ou um filho a mãe, ou quando aconteçam outras coisas que tais -- eis os casos a discutir.

78. Os mitos tradicionais não devem ser alterados, e fazer, por exemplo, que Clitemnestra não seja assassinada pelo filho, e Erífala por Alcmêon. Contudo o poeta deve achar e usar artisticamente os dados da tradição. Vamos explicar o que entendemos por "usar artisticamente".

79. É possível que uma ação seja praticada a modo como a poetaram os antigos, isto é, por personagens que sabem e conhecem o que fazem, como a Medéia de Eurípides, quando mata os próprios filhos. Mas também pode dar-se que algum obre sem conhecimento do que há de malvadez nos seus atos, e só depois se revele o laço de parentesco, como no Édipo de Sófocles (esta ação é verdade que decorre fora do drama representado, mas, por vezes, o mesmo se dá na própria tragédia, como a de Alcmêon, na homônima tragédia de Astidamas, e a de Telégono no Ulisses Ferido). Há um terceiro caso, que é o de quem está para cometer por ignorância algo terrível, e depois o reconhece, antes de agir. E além destas não há outras situações tragicamente possíveis. Porque age ou não age o ciente ou o ignorante.

80. Destes casos, o pior é o do sabedor que se apresta a agir e não age; é repugnante e não trágico, porque sem catástrofe: com efeito, raramente uma personagem procede como Hêmon para com Creonte, na Antígona. Vem, em segundo lugar, o caso do agente sabedor. Melhor é, todavia, o do que age ignorando, e que, perpetrada a ação, vem a conhecê-la; ação tal não repugna, e o reconhecimento surpreende. Mas superior a todos é o último, por exemplo o que se dá no Cresfonte, quando Mérope está pata matar o filho, e não mata porque o reconhece; e na Ifigênia, em que a irmã vai matar o irmão; e na Hele, onde o filho, quando vai entregar sua mãe, então a reconhece.

81. Por esta razão, como dissemos antes, não há muitas famílias de cuja história se possa tirar argumento de tragédias: quando buscavam situações trágicas, os poetas as encontraram, não por arte, mas por fortuna, nos mitos tradicionais, não tendo mais que acomodá-los a seus propósitos; eis por que se constrangeram a recorrer à história das famílias em que semelhantes calamidades sucederam.

82. Basta o que dissemos, quanto à composição dos atos e à qualidade dos mitos.

XV Caracteres. Verossimilhança e necessidade. Deus ex machina.

83. No respeitante a caracteres, a quatro pontos importa visar. Primeiro e mais importante é que devem eles ser bons. E se, como dissemos, há caráter quando as palavras e as ações derem a conhecer alguma propensão, se esta for boa, é bom o caráter. Tal bondade é possível em toda categoria de pessoas; com efeito, há uma bondade de mulher e uma bondade de escravo, se bem que o [caráter de mulher] seja inferior, e o [de escravos], genericamente insignificante.

84. Segunda qualidade do caráter é a conveniência: há um caráter de virilidade, mas não convém à mulher ser viril ou terrível.

85. Terceira é a semelhança, qualidade distinta da bondade e da conveniência, tal como foram explicadas.

86. E quarta é a coerência: ainda que a personagem a representar não seja coerente nas suas ações, é necessário, todavia, que [no drama] ela seja incoerente coerentemente.

87. Exemplo de maldade de caráter desnecessária: o Menelau do Orestes; de impropriedade e inconveniência: as lamentações de Ulisses na Cila e o discurso de Melanipa; paradigma de caráter incoerente é a Ifigênia em Áulis, porque a Ifigênia suplicante é muito diversa da Ifigênia que se mostra no fim.

88. Tanto na representação dos caracteres como no entrecho das ações importa procurar sempre a verossimilhança e a necessidade; por isso, as palavras e os atos de uma personagem de certo caráter devem justificar-se por sua verossimilhança e necessidade, tal como nos mitos os sucessos de ação para ação.

89. É pois evidente que tais desenlaces devem resultar da própria estrutura do mito, e não do deus ex machina, como acontece na Medéia ou naquela parte da Ilíada em que se trata do regresso das naves. Ao deus ex machina pelo contrário, não se deve recorrer senão em acontecimentos que se passam fora do drama, ou nos do passado, anteriores aos que se desenrolam em cena, ou nos que ao homem é vedado conhecer, ou nos futuros que necessitam ser preditos ou prenunciados - pois que aos deuses atribuímos nós o poder de tudo verem. O irracional também não deve entrar no desenvolvimento dramático, mas se entrar, que seja unicamente fora da ação, como no Édipo de Sófocles.

90. Se a tragédia é imitação de homens melhores que nós, importa seguir o exemplo dos bons retratistas, os quais, ao reproduzir a forma peculiar dos modelos, respeitando embora a semelhança, os embelezam. Assim também, imitando homens violentos ou fracos, ou com tais outros defeitos de caráter, devem os poetas sublimá-los, sem que deixem de ser o que são: assim procederam Agatão e Homero para com Aquiles, paradigma de rudeza.

91. A tudo isto é preciso atender, e mais ainda às regras concernentes às sensações que necessariamente acompanham a poesia, pois também por este lado muitos erros se cometem. De tal assunto, porém, bastante tratei nos escritos publicados.

XVI Reconhecimento: classificação de reconhecimentos.

92. Que seja o reconhecimento, dissemo-lo antes; mas de reconhecimentos há várias espécies.

93. A primeira e de todas a menos artística, se bem que a mais usada, por incapacidade (inventiva do poeta), é a que se efetua por sinais. Dos sinais uns são congênitos, como a "lança que" em si trazem os filhos da Terra", ou as estrelas no Tiestes de Cárcino; outros são adquiridos e, ou se encontram no corpo, como as cicatrizes, ou fora do corpo, como os colares ou aquela cestinha, mediante a qual se dá o reconhecimento na Tiro. Mas também destes sinais menos artísticos se pode fazer melhor ou pior uso; assim, Ulisses foi reconhecido de uma maneira pela ama, e de outra pelos porqueiros.Na verdade, são estes sinais, usados como meio de persuasão, os menos artísticos; portanto, e em geral, todos os reconhecimentos congêneres. Melhores são os que resultam de uma peripécia, como o reconhecimento na cena do Banho.

94. Em segundo lugar vem o reconhecimento urdido pelo poeta, e que; por isso mesmo, também não é artístico. Exemplo: o modo como Orestes, na Ifigênia· se dá a conhecer; pois enquanto Ifigênia é reconhecida pelo envio da carta, diz Orestes o que a poeta quer que ele diga, e não o que a mito exige. Pelo que cai tal reconhecimento no erro supramencionado, pois o mesmo aconteceria se Orestes levasse em si qualquer sinal. E outro tanta se diria da "voz da lançadeira' no Tereu de Sófocles.

95. A terceira espécie de reconhecimento efetua-se pelo despertar da memória sob as impressões que se manifestam à vida como nos Cipriotas de Diceógenes, em que a personagem, olhando o quadro, rompe em pranto; ou na narrativa a Alcínoo, em que Ulisses, ouvindo o citarista, recorda e chora, e assim o reconheceram.

96. A quarta espécie de se conhecimento provém de um silogismo, como nas Coéforas, pelo seguinte raciocínio: alguém chegou, que me é semelhante, mas ninguém se me assemelha senão Orestes, logo quem veio foi Orestes.Reconhecimento por silogismo é também aquele inventado pelo sofista Políido para a Ifigênia, porque verossímil seria Orestes discorrer que, se a irmã tinha sido sacrificada, também ele o havia de ser. Outro exemplo é o reconhecimento do Tideu de Teodectes,em que o pai diz: "Venho para salvar meu filho e eu próprio devo morrer". Outro exemplo, ainda, o das Fineidas, em que, vendo elas o lugar, compreenderam seu destino, concluindo que nesse lugar morreriam, porque ali foram expostas.

97. Mas também há o reconhecimento combinado com um paralogismo da parte dos espectadores. Por exemplo, no Ulisses, Falso Mensageiro: [que Ulisses seja o único que pode tender o arco, e nenhum outro senão ele; tal é a ficção e hipótese do poeta, ainda que] em certo momento do drama Ulisses diga que reconheceu o arco sem o ter visto; ora,o supor que o reconhecimento de Ulisses se efetue deste modo, eis o paralogismo.

98. De todos os reconhecimentos, melhores são os que derivam da própria intriga, quando a surpresa resulta de modo natural, como é o caso do Édipo de Sófocles e da Ifigênia, porque é natural que ela quisesse enviar alguma carta. Só os reconhecimentos desta espécie dispensam artifícios, sinais e colares. Em segundo lugar vêm os que provêm de um silogismo.

XVII Exortações ao poeta trágico. Os episódios na tragédia e na epopéia.

99. Deve pois o poeta ordenar as fábulas e compor as elocuções das personagens, tendo-as à vista o mais que for possível, porque desta sorte, vendo as coisas claramente, como se estivesse presente aos mesmos sucessos, descobrirá o que convém e não lhe escapará qualquer eventual contradição. Que assim deve ser, assinala-o a censura em que incorre Cárcino: Anfiarau saía do templo, mas de tal não se apercebeu o poeta, porque não olhava a cena como espectador, e o público protestou porque o ofendia a contradição.

100. Deve também reproduzir [por si mesmo], tanto quanto possível, os gestos [das personagens]. Mais persuasivos, com efeito, são [os poetas] que,, naturalmente movidos de ânimo [igual ao das suas personagens], vivem as mesmas paixões; e por isso, o que está violentamente agitado excita nos outros a mesma agitação, e o irado, a mesma ira. Eis por que o poetar é conforme a seres bem dotados ou a temperamentos exaltados, a uns porque plasmável é a sua natureza, a outros por virtude do êxtase que os arrebata.

101. Quanto aos argumentos, quer os que já tenham sido tratados, quer os que ele próprio invente, deve o poeta [dispô-los assim em termos gerais] e só depois introduzir os episódios e dar-lhes a conveniente extensão.

102. Que entendo por este "[dispô-los] assim [em termos gerais]", vou mostrá-lo com o exemplo da Ifigênia. Certa donzela, no momento de ser sacrificada, desaparece aos olhos dos sacrificadores e, transportada a terra estranha, onde era lei que os forasteiros fossem imolados aos deuses, aí foi investida no sacerdócio. Pelo tempo adiante, sucedeu que o irmão da sacerdotisa arribou àquela terra (que a ordem de vir a este lugar provenha da divindade, com que intenção a divindade o tenha feito, e para que fim ele tenha vindo, tudo isso cai fora do entrecho dramático). Chegado, é preso; mas, quando ia ser sacrificado, foi reconhecido (ou à maneira de Eurípides, ou à maneira de Políido, dizendo Orestes, como é plausível que o dissesse, que não só a irmã tivera de ser imolada, mas também ele o tinha de ser), e assim ficou salvo.

103. Depois disso, e uma vez denominadas as personagens, desenvolvem-se os episódios. Estes devem ser conformes ao assunto, como, no caso de Orestes, o da loucura, pela qual foi capturado, e o da purificação, pela qual foi salvo.

104. Nos dramas os episódios devem ser curtos, ao contrário da epopéia, que, por eles, adquire maior extensão. De fato, breve é o argumento da Odisséia: um homem vagueou muitos anos por terras estranhas, sempre sob a vigilância (adversa] de Poseidon, e solitário; entretanto, em casa, os pretendentes de sua mulher lhe consomem os bens e armam traições ao filho, mas, finalmente, regressa à pátria, e depois de se dar a reconhecer a algumas pessoas, assalta os adversários e enfim se salva, destruindo os inimigos. Eis o que é próprio do assunto; tudo o mais são episódios.

XVIII Nó e desenlace. Tipos de tragédia, classificação pela relação entre nó e desenlace. Estrutura da epopéia e da tragédia.

105. Em toda tragédia há o nó e o desenlace. O nó é constituído por todos os casos que estão fora da ação e muitas vezes por alguns que estào dentro da ação. O resto é o desenlace.Digo pois que o nó é toda a parte da tragédia desde o princípio até aquele lugar onde se dá o passo para a boa ou má fortuna; e o desenlace, a parte que vai do início da mudança até o fim.Assim, no Linceu de Teodectes, constituem o nó todos os acontecimentos que precedem c rapto da criança, o mesmo rapto, e ainda a captura dos progenitores; e o desenlace vai da acusação de assassínio até o fim.

106. Há quatro tipos de tragédia. pois quatro são também as suas partes, como dissemos: a tragédia complexa, que consiste toda ela em peripécia e reconhecimento; a tragédia catastrófica, como as do tipo) de Ájax e Íxion, a tragédia de caracteres, como as Ftiótidas e Peleu, e, em quarto lugar, as episódicas, como as Filhas de Fórcis, Prometeu e quantas se passam no Hades.

107. Os poetas devem esforçar-se o mais possível por reunir todos estes elementos, ou, se não todos, pelo menos os mais importantes e a maior parte, dadas as críticas a que hoje estão sujeitos; porque. se os houve excelentes em cada parte constitutiva da tragédia, pretende-se que um poeta só haja de ultrapassar todos os bons poetas em sua peculiar excelência. Ora, o que é justo dizer é que, pelo mito, melhor que por outro elemento,se estabelece a igualdade ou a diferença entre as tragédias; e que são iguais quando o sejam o nó e o desenlace. Porém há muitos que bem tecem a intriga e mal a desenlaçam; o que importa é conjugar ambas as aptidões.

108. É pois necessário ter presente o que já por várias vezes dissemos, e não fazer uma tragédia como se ela fosse uma composição épica (chamo composição épica à que contém muitos mitos), como seria o caso do poeta que pretendesse introduzir numa só tragédia todo o argumento da Ilíada. Na epopéia a extensão que é própria a tal gênero de poesia permite que as suas partes assumam o desenvolvimento que lhes convém, enquanto nos dramas o resultado do desenvolvimento seria contrário à expectativa. Que bem o mostraram todos os poetas que quiseram incluir em uma tragédia todo o argumento da Ruína de Tróia, em vez de uma só parte, como o fez Eurípides [na Hécuba), ou toda a história de Níobe, contrariamente ao que fez Ésquilo. Todos esses poetas falharam ou foram mal sucedidos nos concursos, e o próprio Agatão falhou pelo mesmo defeito.

109. Quer nas tragédias com peripécia, quer nas episódicas, podem os poetas obter o desejado efeito mediante o maravilhoso, como no caso de um homem astuto, porém mau, que é enganado, como Sísifo, ou quando corajoso, mas injusto, é vencido - situações estas tanto mais trágicas e mais conformes ao sentido humano. Todas são verossímeis ao modo como o entende Agatão, quando diz: verossimilmente muitos casos se dão e ainda que contrários à verossimilhança.

110. O coro também deve ser considerado como um dos atores; deve fazer parte do todo, e da ação, à maneira de Sófocles e não à de Eurípides. Na maioria dos poetas, contudo, os corais tão pouco pertencem à tragédia em que se encontram como a qualquer outra, e por isso, desde o exemplo de Agatão, é costume cantar interlúdios nas tragédias. Mas que diferença haverá entre cantar interlúdios e transpor de uma para outra tragédia recitativos ou episódios inteiros?

XIX O pensamento. Modos da elocução.

111. Resta tratar da elocução e do pensamento, pois das outras partes da tragédia já falamos.

112. O que respeita ao pensamento tem seu lugar na retórica, por que o assunto mais pertence ao campo desta disciplina. O pensamento inclui todos os efeitos produzidos mediante a palavra; dele fazem parte o demonstrar e o refutar, suscitar emoções (como a piedade, o terror, a ira e outras que tais) e ainda o majorar e o minorar o valor das coisas.

113. Evidentemente, quando seja mister despertar as emoções de piedade e de terror, ou o acrescimento de certas impressões, a aceitação de algo como verossímil, há que tratar os fatos segundo os mesmos princípios. Apenas com uma diferença: [na poesia], os sobreditos efeitos devem resultar somente da ação e sem interpretação explícita, enquanto [na retórica] resultam da palavra de quem fala. Pois de que serviria a obra do orador, se o pensamento dele se revelasse de per si, e não pelo discurso?

114. Quanto à elocução, há uma parte dela, constituída pelos respectivos modos, cujo conhecimento é próprio do ator e de quem faça profissão dessa arte, que consiste em saber o que é uma ordem ou uma súplica, uma explicação, uma ameaça, uma prgunta, uma resposta, e outras que tais.

115. Assim, pelo conhecimento ou desconhecimento destas coisas, nenhuma censura digna de consideração se poderáenunciar contra o poeta como tal. Pois quem poderia crer que Homero haja incorrido na falta que lhe atribui Protágoras, como se, dizendo "canta. ó deusa. a ira.: houvesse pronunciado uma ordem, querendo ele exprimir uma; súplica? Com efeito, segundo Protágoras, o dizer que se faça ou se não faça uma coisa é uma ordem. Mas deixemos esta parte da questão, porque é alheia à poética.

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