sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

BRECHT - PEQUENO ORGANON - PARTE II

41 Identicamente, o técnico de obras fluviais, vendo um rio, vê, ao mesmo tempo, seu leito primitivo e ainda vários outros leitos fictícios, possíveis se a inclinação do planalto ou o volume da água fossem outros. Enquanto ele vê em pensamento um outro rio, o socialista ouve, em pensamento, uma nova espécie de diálogo entre os trabalhadores rurais à beira do rio. Do mesmo modo, o nosso espectador devia encontrar no teatro esboços e ecos dos acontecimentos que se desenrolam entre os referidos trabalhadores rurais.

42 A forma de representação que foi experimentada no Teatro Schiffbauerdamm de Berlim, entre a primeira e a segunda guerra mundial, e cujo objetivo era apresentar imagens do tipo a que nos temos referido, baseia-se no eleito de distanciamento. Numa reprodução em que se manifeste o efeito de distanciamento, o objeto é susceptível de ser reconhecido, parecendo, simultaneamente, alheio. O teatro antigo e o teatro medieval distanciavam suas personagens por meio de máscaras representando homens e animais; o teatro asiático ainda hoje utiliza efeitos de distanciamento de natureza musical e pantomímica. Tais efeitos de distanciamento tornavam, sem dúvida, impossível a empatia e, no entanto, a técnica que os permitia apoiava-se, ainda mais fortemente do que a técnica que permite a empatia, em recursos sugestivos de natureza hipnótica. Os objetivos sociais destes antigos efeitos eram absolutamente diversos dos nossos.

43 Os antigos efeitos de distanciamento subtraem completamente o objeto reproduzido da intervenção do espectador, tornam-no inalterável. Quanto aos novos efeitos, estes nada mostram de bizarro - só uma visão que não seja científica classifica de bizarro o que é desconhecido. Os novos efeitos de distanciamento têm apenas como objetivo despojar os acontecimentos susceptíveis de serem influenciados socialmente no libelo de familiaridade que os resguarda, hoje em dia, de qualquer intervenção.

44 O que permanece inalterado há muito tempo, parece ser inalterável. For toda a parte, as coisas que aparecem são de uma evidência já de si tão grande que não precisamos fazer esforço nenhum para sua compreensão. Os homens encaram tudo o que vive entre si como um dado humano preestabelecido. A criança que habita um mundo de senilidade fica conhecendo o que se passa nesse mundo; para ela, as coisas vão-se tornando correntes precisamente sob a forma por que ocorrem. E se houver alguém suficientemente ousado para desejar algo que esteja para além disso, vai querê-lo como simples exceção. Mesmo que reconheça que aquilo que a "Providência" lhe impõe é o que a sociedade providenciou, ainda a sociedade - esse poderoso conjunto de seres que lhe são similares - haverá de parecer-lhe um todo maior do que a soma das partes, um todo em absoluto não susceptível de ser modificado; desta forma, tudo o que não é susceptível de ser influenciado será familiar: e quem desconfia do que é familiar? Para que todos estes inúmeros dados pudessem parecer duvidosos, teria de ser capaz de produzir em si um olhar de estranheza idêntico àquele com que o grande Galileu contemplou o lustre que oscilava. As oscilações surpreenderam-no, como se jamais tivesse esperado que fossem dessa forma, como se não entendesse nada do que se estava passando; foi assim que descobriu a lei do pêndulo. O teatro, com as suas reproduções do convívio humano, tem de suscitar no público uma visão semelhante, visão que é tão difícil quanto fecunda. Tem de fazer que o público fique assombrado, o que conseguirá, se utilizar uma técnica que o distancie de tudo que é familiar.

45 Esta técnica permite ao teatro empregar, nas suas reproduções, o método da nova ciência social, a dialética materialista. Tal método, para conferir mobilidade ao domínio social, trata as condições sociais como acontecimentos em processo e acompanha-as nas suas contradições. Para a técnica em questão, as coisas só existem na medida em que se transformam, na medida, portanto, em que estão em disparidade consigo próprias. O mesmo sucede em relação aos sentimentos, opiniões e atitudes dos homens através dos quais se exprimem, respectivamente, as diversas espécies de convívio social.

46 Um dos prazeres específicos da nossa época, que tantas e tão variadas modificações efetuou no domínio da Natureza, consiste em compreender as coisas de modo que nelas possamos intervir. Há muito de aproveitável no homem, dizemos nós, poder-se-á fazer muito dele. No estado em que se encontra, é que não pode ficar; o homem tem de ser encarado não só como é, mas também como poderia ser. Não se deve partir dele mas, sim, tê-lo como objetivo. O que significa que não devo simplesmente ocupar o seu lugar, mas pôr-me perante ele, representando todos nós. É esse o motivo por que o teatro tem de distanciar tudo o que apresenta.

47 Para produzir o efeito de distanciamento, o ator teve de pôr de lado tudo o que havia aprendido antes para provocar no público um estado de empatia perante as suas configurações. Além de não tentar induzir o público a qualquer espécie de transe, o ator não deve também colocar-se em transe. Os seus músculos deverão permanecer relaxados. Um gesto de voltar a cabeça, por exemplo, com os músculos do pescoço contraídos, pode arrastar atrás de si, "magicamente", os olhares e., por vezes, até, as cabeças dos espectadores; mas toda e qualquer especulação ou emoção perante um gesto desta ordem apenas virá a ser debilitada pela magia que dele decorre. Que a dicção do ator não peque por um tom de ladainha de púlpito e por uma cadência que embale o espectador de modo a fazê-lo perder a noção do sentido. O ator, mesmo que esteja representando uma personagem possessa, não deve agir como possesso; como poderia então o espectador descobrir de que está possuído o possesso?

48 Em momento algum deve o ator transformar-se completamente na sua personagem. Para ele, deve ser desanimador um juízo como o que se segue: "Não, não desempenhava o papel de Lear, era o próprio Lear, em pessoa." O ator deve mostrar apenas a sua personagem, ou melhor, não deve vivê-la; o que não significa que, ao representar pessoas apaixonadas, precise mostrar-se frio. Somente os sentimentos pessoais do ator é que não devem ser, em princípio, os mesmos que os da personagem respectiva, para que os do público não se tornem também, em princípio, os da personagem. O público deve gozar, neste campo, de completa liberdade.

49 O ator está em cena como uma personagem dupla - Lau-ghton1 e Galileu -, o sujeito que faz a demonstração - Laughton - não desaparece no seu objeto - Galileu. Tudo isto, que deu a esta forma de representação a designação de "épica", não significa, enfim, outra coisa senão que o acontecimento real, profano, não será mais levado aos olhos do público: está em cena Laughton e mostra como imagina Galileu. Ao admirar Galileu, o público não esqueceria naturalmente Laughton, mesmo que este tentasse uma metamorfose completa; contudo, perderia, assim, as sensações e as opiniões do ator, completamente absorvidas pela personagem. O ator, neste caso, se apossaria das opiniões e dos sentimentos da personagem, de tal forma que resultaria deles, na realidade, um padrão único, que importa, depois, a nós. Para impedir que se dê tal atrofia, o ator tem de transformar o simples ato de mostrar num ato artístico. Utilizando uma forma de representação auxiliar, podemos completar com alguns gestos um dos aspectos da atitude dupla que referimos atrás - a do indivíduo que mostra -, para lhe conferirmos evidência. Se o ator estivesse fumando, largaria, de vez em quando, o charuto, para nos demonstrar ainda uma outra forma de comportamento da personagem simulada. Se dermos o devido desconto a qualquer precipitação e não pensarmos que tudo o que for lentidão é sinônimo de negligência, íeis-nos perante um ator que poderá nos fazer abandonar, muito facilmente, tanto aos nossos como aos seus próprios pensamentos.

50 Há mais uma outra alteração que é necessário efetuar na transmissão de reproduções por meio do ator, alteração essa que vem dando ao processo um caráter mais profano. Assim como o ator não deve iludir o público de forma que este não o veja, mas à personagem fictícia no palco, também não deve simular que o que acontece no palco não é ensaiado, mas, sim, acontece pela primeira e única vez. A distinção de Schiller, segundo a qual o rap-sodo tem de conferir ao acontecimento que narra um tratamento que o faça surgir como algo completamente passado, enquanto o mímico deve conferir a este acontecimento um tratamento que o torne completamente presente1, não revela atualmente qualquer pertinência. Ao representar, ò ator deve fazer que fique completamente evidente o fato de "já no princípio e no meio saber o fim", e deve "conservar, assim, uma tranqüila e absoluta liberdade". Por meio de uma representação viva, narra á história da sua personagem, mostrando saber mais do que esta, e apresentando o "agora" e o "aqui" não como uma ficção que é possível devido às regras da representação, mas, sim, tornando-os distintos do "ontem" e do "em outro lugar"; a associação dos acontecimentos se tornará, deste modo, mais clara.

51 O que dizemos é especialmente importante na apresentação de movimentos de massas ou em casos em que o meio ambiente sofra profunda modificação, como, por exemplo, em guerras e em revoluções. Ao espectador poderão ser, assim, apresentados tanto a situação global como o decurso global da ação. Ao ouvir, por exemplo, uma mulher falar, será possível imaginá-la também falando de outro modo, passada, por exemplo, uma semana, e será possível imaginar também outras mulheres, nesse momento, em outro lugar. Tal coisa será possível ao espectador se a atriz representar como se essa mulher tivesse vivido integralmente a época em que se insere e, agora, esteja a exprimir - só de lembrança, partindo da sua experiência dos acontecimentos ulteriores - o que, de entre as suas experiências, tem validade nesse momento. Só o que vem a ser importante depois é que é válido em cada momento. Só se pode distanciar a personagem apresentada e mostrá-la como "precisamente esta personagem" e como "precisamente esta personagem, neste preciso momento" quando não se produz qualquer ilusão: nem a ilusão de o ator ser a personagem, nem a de a representação ser o acontecimento.

52 Neste ponto, há que renunciar, porém, a mais uma ilusão, a de que qualquer pessoa atuaria como a personagem apresentada. O "eu faço isto" passou a ser "eu fiz isto", e agora há que transformar o "ele fez isto" em "foi isto o que ele fez, e não outra coisa". É de uma excessiva simplicidade as ações ajustarem-se ao caráter e o caráter às ações: as contradições que as ações e o caráter dos homens autênticos acusam, não poderão ser reveladas assim. Será impossível demonstrar as leis da dinâmica social em "casos ideais", pois a "impureza" (contradição) é, justamente, um atributo do movimento e de tudo o que é movido. É apenas necessário, absolutamente necessário, que se verifiquem, de um modo geral, condições de experiência, isto é, que haja possibilidade de conceder uma experiência contrária para cada caso, respectivamente. A sociedade é, desta forma, tratada como se o que faz, fosse feito por ela a título de experiência.

53 E mesmo que no ensaio se possa utilizar empatia para com a personagem (coisa que é preciso evitar na representação), ela deverá ser somente empregada como um método de observação entre muitos. A empatia é útil durante o ensaio - pois não foi a empatia que levou, pelo desmedido emprego que dela fez o teatro contemporâneo, a um desenho caracterológico refinadíssimo? A forma mais rudimentar de empatia manifesta-se quando o espectador pergunta apenas: "Como seria eu se isto ou aquilo me acontecesse? Que efeito faria eu se dissesse isto e fizesse aquilo?", ou qualquer coisa semelhante. Mas o que o ator deveria perguntar era: "Em que circunstâncias é que eu já ouvi uma pessoa dizer isto?" ou "Quando é que vi uma pessoa fazer aquilo?", para, desta forma, tirando daqui um elemento e dali outro, conceber uma nova personagem com a qual a história poderá também ter-se desenrolado. A unidade da personagem depende da forma como se contradizem entre si cada uma das suas particularidades.

54 A observação é um elemento essencial da arte de representar. O ator observa o seu próximo, com todos os seus músculos e nervos, num ato de imitação que é, simplesmente, um processo de pensamento. Se efetuar uma simples imitação, fará, quando muito, transparecer o objeto da sua observação aos olhos do público, o que não bastará, pois o objeto original possui sempre fraco poder de afirmação. Para passar do decalque à reprodução, o ator deve olhar para as pessoas como se elas lhe estivessem mostrando o que fazem, como se recomendassem que refletisse sobre o que fazem.

55 Sem juízos críticos e sem um objetivo bem determinado, é impossível fazer uma reprodução. Sem conhecimentos, não é possível mostrar coisa alguma; como discernir o que é que vale a pena saber? O ator que não deseje assemelhar-se a um papagaio ou a um macaco tem de adquirir os conhecimentos sobre convívio humano que são patrimônio da sua época, tem de adquiri-los participando da luta de classes. Tal coisa parecerá uma degradação a muitos, a todos os que põem a arte nos píncaros (só depois de acertadas as contas, claro). Mas é numa luta travada na Terra, e não nas nuvens, que se poderá decidir tudo o que é de fato importante para o gênero humano; uma luta travada no "exterior", e não nas cabeças. A ninguém é possível colocar-se num plano superior ao das classes que lutam, pois a ninguém é possível colocar-se num plano superior ao dos homens. A sociedade não terá um porta-voz comum enquanto estiver dividida em classes que lutam. Mão ter partido, em arte, significa apenas pertencer ao partido dominante.

56 A escolha de uma perspectiva é, assim, outro aspecto essencial da arte de representar, escolha que terá de ser efetuada fora do teatro. Tal como a transformação da Natureza, a transformação da sociedade é um ato de libertação; cabe ao teatro de uma época científica transmitir o júbilo dessa libertação.

57 Prossigamos analisando, por exemplo, como é que o ator terá de ler seu papel em função dessa perspectiva. É importante que não o "compreenda" demasiado rapidamente. E, mesmo que descubra, logo à primeira vista, o tom mais natural para o seu texto, a maneira mais cômoda de dizê-lo, não deverá nunca pensar que as afirmações que deve proferir são as mais naturais; deverá, sim, hesitar e recorrer às suas opiniões próprias de ordem geral, deverá ter em conta todas as outras afirmações possíveis, em suma, assumir a atitude de quem se admira. Deve assumir uma atitude assim para não definir demasiado cedo - isto é, antes de ter registrado a totalidade das suas afirmações e, em especial, as das outras personagens - a sua personagem, à qual muito haveria depois a acrescentar, decerto; deve assumi-la, sobretudo, para incluir na estruturação da sua personagem a alternativa "não..., antes pelo contrário...", alternativa indispensável, caso se pretenda que o público, que representa a sociedade, veja o decurso dos acontecimentos sob um prisma em que estes lhe surjam como susceptíveis de serem influenciados. O ator, em vez de lançar mão apenas ao que com ele se harmoniza, de "tudo o que é pura e simplesmente humano", deve sobretudo recorrer ao que lhe não é harmônico, ao especial. Junto com o texto, terá de decorar suas primeiras reações, reservas, críticas e perplexidades, para que elas não venham a ser, porventura, banidas "por absorção" da configuração definitiva do seu papel e sejam, pelo contrário, conservadas, permanecendo perceptíveis. Tanto as personagens como os elementos cênicos devem apenas despertar a atenção do público, em lugar de arrebatá-la.

58 A aprendizagem de cada ator deve-se processar em conjunto com a dos outros atores, e, da mesma forma, a estruturação de cada personagem tem de ser conjugada com a das restantes. É que a unidade social mínima não é o homem, e sim dois homens. Também na vida real nos formamos uns aos outros.

59 Os maus hábitos que prevalecem nos nossos teatros ensinam-nos que uma das razões por que o ator reinante, a "estrela", sobressai, é o fato de se fazer servir por todos os demais atores; ao dar à sua personagem uma feição terrível ou sábia, compele os parceiros a darem uma feição receosa ou atenta às personagens que figuram. Para que todos possam gozar desta vantagem, e para beneficiar a fábula, os atores deviam trocar os papéis entre si nos ensaios, de modo que todas as personagens tivessem possibilidade de receber umas das outras tudo aquilo de que necessitam reciprocamente. Convém, igualmente, que os atores vejam suas personagens serem imitadas por outrem, ou que as vejam com outras configurações. Uma personagem desempenhada por uma pessoa do sexo oposto revelará o seu próprio sexo muito mais incisivamente; se for representada por um ator cômico, ganhará novos aspectos, quer trágicos, quer cômicos. Ao elaborar conjuntamente com a sua as outras personagens, ou, pelo menos, ao substituir os seus intérpretes, o ator consolida, sobretudo, a decisiva perspectiva social a que obedece o seu desempenho. Assim, o senhor será somente senhor na medida em que o criado o permitir, etc.

60 Quando a personagem surge entre as outras personagens da peça, já a sua estrutura foi submetida a inúmeras intervenções; o ator deverá, então, estudar todas as conjecturas que o texto tiver suscitado. Mas é sobretudo em função do tratamento que as outras personagens lhe dispensarem que fica conhecendo melhor a sua personagem.

61 Chamamos esfera do gesto aquela a que pertencem as atitudes que as personagens assumem em relação umas às outras. A posição do corpo, a entoação e a expressão fisionômica são determinadas por um gesto social; as personagens injuriam-se mutuamente, cumprimentam-se, instruem-se mutuamente, etc. Às atitudes tomadas de homem para homem pertencem, mesmo, as que, na aparência, são absolutamente privadas, tal como a exteriorização da dor física, na doença, ou a exteriorização religiosa. A exteriorização do "gesto" é, na maior parte das vezes, verdadeiramente complexa e contraditória, de modo que não é possível transmiti-la numa única palavra; o ator, nesse caso, ao efetuar uma representação necessariamente reforçada, terá de fazê-lo cuidadosamente, de forma a nada perder e a reforçar, pelo contrário, todo o complexo expressivo.

62 O ator apodera-se da sua personagem acompanhando com uma atitude crítica as suas múltiplas exteriorizações; e é com uma atitude igualmente crítica que acompanha as exteriorizações das personagens que com ele contracenam e, ainda, as de todas as demais.

63 Para melhor conceber o conteúdo do gesto, percorramos as cenas iniciais de uma peça moderna, de minha autoria, A Vida de Galileu Galilei. E já que o nosso propósito é verificar também como as diferentes formas de exteriorização se esclarecem reciprocamente, partamos do princípio de que não se trata de um primeiro contato com a peça. Esta principia com as abluções matinais de um homem de quarenta e seis anos, que as interrompe a certa altura para vasculhar alguns livros e dar ao jovem Andrea Sarti uma lição sobre o novo sistema solar. Para desempenhar esta cena, não é verdade que o ator deve saber que a peça termina com a ceia de um homem de setenta e oito anos, a quem esse mesmo aluno terá acabado, precisamente, de deixar para sempre? Iremos encontrá-lo, então, modificado, modificação muito mais terrível do que a que poderíamos esperar que se produzisse durante este período de tempo. É com uma gula irrefreável que devora a comida, com o pensamento alheio a tudo o que não seja comer; desembaraçou-se da sua missão didática de forma ignominiosa, como se se tratasse de um fardo, e pensar que é o mesmo que outrora tomava distraído o leite, ao café da manhã, ávido de ensinar o jovem discípulo! Mas estará de fato distraído, ao tomar o leite? O prazer que sente em beber e em lavar-se não se identificará com o que sente devido aos novos pensamentos que o tomam? E não esqueçamos, também, que ele pensa pela voluptuosidade de pensar! Tal circunstância parece merecer apreço ou censura? Aconselho a que a apresente como algo que merece apreço, uma vez que ao longo de toda a peça nada encontrará que a revele desvantajosa para a sociedade e, sobretudo, porque o próprio ator - assim o espero - é um digno filho desta era científica. Note bem, muitas e terríveis coisas se vão passar. O fato de o homem que saúda agora a nova era ser obrigado, no fim, a lançar-lhe um repto, e de esta repeli-lo com desdém - se bem que expropriando-o, simultaneamente, da sua obra - relaciona-se diretamente com esses acontecimentos. No que respeita à lição, o ator terá que decidir se ela brota de um coração repleto, que não consegue travar a língua e que diria o mesmo a quem quer que fosse, neste caso até a uma criança, ou se é esta criança que tem de levá-lo a revelar-lhe o seu saber, mostrando-se interessada, como boa conhecedora que é da sua personalidade. E pode também dar-se o caso de se tratar de duas pessoas que não conseguem conter-se, uma de fazer perguntas, a outra de responder; tal afinidade seria interessante, pois haveria uma altura em que seria gravemente lesada. Decerto o ator concordará em fazer, um tanto precipitadamente, a demonstração do movimento de rotação da Terra, pois esta não lhe rende nada; surge então o discípulo estrangeiro rico, que paga a peso de ouro o tempo do sábio. Embora este não mostre interesse pêlos seus ensinamentos, Galileu não pode deixar de atendê-lo, uma vez que se encontra sem quaisquer recursos; assim o vemos dividido entre o aluno rico e o aluno inteligente, e o vemos escolher entre ambos com um suspiro. Não pode ensinar muita coisa ao novo discípulo, e é, antes, este que lhe ensina: através dele toma conhecimento da existência do telescópio, descoberto na Holanda. Tira, assim, partido, à sua maneira, da perturbação que sobreveio ao seu trabalho matinal. Aparece o Curador da Universidade. A petição de Galileu solicitando aumento de ordenado foi indeferida, a Universidade não dá de bom grado por teorias físicas a mesma quantia que paga pela teologia; dele, que se move num plano subestimado da investigação, apenas solicita algo que tenha utilidade para o dia-a-dia. Pela maneira como apresenta o seu tratado, notará que Galileu está habituado às recusas e às repreensões. O Curador aponta-lhe o fato de a República conceder liberdade de investigação, se bem que remunerando mal; Galileu responde que pouca coisa pode fazer com esta liberdade, desde que não disponha do tempo necessário que provém de uma boa remuneração. Convém que não atribua à impaciência de Galileu um caráter demasiado sobranceiro, senão a sua pobreza fica em segundo plano. Momentos depois ele está preso a lucubrações que precisam de uma explicação. O arauto de uma nova era de verdades científicas pondera acerca da possibilidade de burlar a República, apresentando-lhe o telescópio como invenção sua. Verificará que esta nova invenção, que ele estuda visando, unicamente, a dela se apoderar, não significa para Galileu senão a maneira de ganhar alguns ducados. Porém, se passar à segunda cena, verá que, ao vender à Signoria de Veneza esta invenção, com um discurso que as mentiras aviltam, quase esqueceu o dinheiro, pois descobriu que o instrumento, além de ter uma importância militar, é também valioso no campo da astronomia. A mercadoria que fabricou como que por chantagem, chamemos finalmente as coisas pelo seu nome, parece-lhe agora excelente para a investigação que tivera de interromper para fabricá-la. Ao aceitar, lisonjeado, durante a cerimônia, as honras imerecidas, ao apontar ao sábio seu amigo as suas maravilhosas descobertas - repare bem em sua atitude teatral -, descobrirá nela sua excitação muito mais profunda do que a que foi provocada pela perspectiva de lucro pecuniário. E, mesmo que a sua charlatanice pouco signifique sob este aspecto, ela revela a que ponto este homem está decidido a escolher o caminho mais fácil e a utilizar a sua razão tanto de uma forma inferior como de uma forma superior. Uma prova mais significativa está iminente, e não é verdade que uma fraqueza conduz a outra fraqueza?

64 É com uma interpretação como a que acabamos de realizar, expondo o "gesto" que informa a ação, que o ator se apodera da personagem, ao apoderar-se da "fábula". Só a partir desta, do acontecimento global delimitado, o ator consegue chegar, como de um salto, à personagem definitiva, que funde em si todos os traços particulares. Se o ator tudo fez para surpreender-se com as contradições contidas nas diversas atitudes - consciente de que terá também de levar o público a surpreender-se com elas -, encontra na fábula, encarada como um todo, uma possibilidade de associação dos aspectos contraditórios. Na medida em que a fábula é um acontecimento restrito, dela resulta um sentido bem determinado, ou seja, a fábula, entre vários interesses possíveis, satisfaz apenas certos e determinados interesses.

65 Tudo depende da "fábula", que é o cerne da obra teatral. São os acontecimentos que ocorrem entre os homens que constituem para o homem matéria de discussão e de crítica, e que podem ser por ele modificados. Mas o homem particularizado que o ator desempenha ajusta-se, ao fim, a mais do que apenas àquilo que acontece; e, se é preciso ajustá-lo apenas ao que acontece, é porque a ocorrência é tanto mais sensacional quanto se realiza num homem particularizado. A tarefa fundamental do teatro reside na "fábula", composição global de todos os acontecimentos-gesto, incluindo juízos e impulsos. E tudo isto que, de ora avante, deve constituir o material recreativo apresentado ao público.

66 Cada acontecimento comporta um "gesto" essencial. Richard Gloster corteja a viúva da sua vítima. Por meio de um círculo de giz, é descoberta a verdadeira mãe da criança. Deus aposta com o Diabo a alma do Dr. Fausto. Woyzek compra uma faca barata para assassinar a mulher, etc. Pela agrupação das personagens em cena e aos movimentos de grupo, há que alcançar a necessária beleza, principalmente através da elegância, da elegância com que são apresentados e expostos ao olhar do público todos os elementos que constituem esse "gesto".

67 Visto que o público não é solicitado a lançar-se na fábula, como se fosse num rio, e a deixar-se levar à deriva, os acontecimentos isolados têm de ser interligados de tal forma que as funções sejam evidentes. Os acontecimentos não devem seguir-se de maneira imperceptível, devemos, sim, ter a possibilidade de intervir neles com os nossos juízos críticos. (E, a dar-se o caso de o caráter obscuro das relações causais se revestir para nós de interesse, haveria que dar a essa circunstância um distanciamento suficiente.) Devemos, então, contrapor cuidadosamente as diversas partes da fábula, dando-lhes uma estrutura própria, a de uma pequena peça dentro da peça. Para atingirmos este objetivo, a melhor maneira é adotarmos títulos, como os que encontramos no item precedente. Os títulos devem conter flechas certeiras, dentro de uma perspectiva social, e explicitar, simultaneamente, algo acerca da forma de representação desejável, isto é, devem imitar, consoante o caso, o estilo do título de uma crônica, de uma balada, de um jornal ou de um quadro de costumes. O tipo de representação a que os usos e os costumes são comumente submetidos suscita facilmente o efeito de distanciamento. É possível apresentar uma visita ou a maneira de lidar com um inimigo, ou um encontro de namorados, ou quaisquer negociações comerciais ou políticas, como um costume típico em determinado local de ação. Apresentado deste modo, o acontecimento único e especial assume um aspecto "estranho", pois surge como algo geral, algo que se tornou um costume. Já o fato de se perguntar se é ao próprio acontecimento, ou a qualquer aspecto dele, que deverá ser dado o alcance de um costume, distancia esse acontecimento. Nas barracas de feira chamadas panoramas encontramos um exemplo de estilo histórico poético. Como o ato de distanciar significa também conferir celebridade a um acontecimento, é possível, desta forma, apresentar certos acontecimentos simples como se fossem célebres, como se fossem universais e conhecidos há muito, e como se nos esforçássemos por não infringir, em ponto algum, a tradição. Em suma, são possíveis muitas formas de narração: algumas já são conhecidas, outras ainda estão por serem inventadas.

68 A determinação de qual o aspecto a distanciar e como fazê-lo depende da interpretação dada ao acontecimento global, e é aí que o teatro pode e deve defender vigorosamente os interesses da sua época. Citemos como exemplo de uma interpretação deste tipo uma peça antiga, o Hamlet. Ã luz dos tempos que correm e em que estou escrevendo estas linhas, tempos sangrentos e tenebrosos, à luz. da existência de classes dominantes criminosas e de uma desconfiança generalizada na razão, da qual continuamente se abusa, creio poder ler esta fábula da seguinte forma: está-se em tempo de guerra. O pai de Hamlet, rei da Dinamarca, abateu, numa guerra de pilhagem, para ele vitoriosa, o rei da Noruega. Quando o filho deste, Fortinbras, se arma para uma nova guerra, o rei da Dinamarca é também derrubado, e pelo seu próprio irmão. Os irmãos dos reis assassinados, agora de posse do trono, fazem que a guerra se desvie noutro sentido; as tropas norueguesas obtêm permissão de atravessar o território dinamarquês para realizarem uma incursão na Polônia. Mas o jovem Hamlet é então chamado pelo espírito do seu belicoso pai a vingar o crime contra ele perpetrado. Após uma certa hesitação em responder a um ato sangrento com outro ato igualmente sangrento, e estando, mesmo, disposto a partir para o exílio, encontra na costa do seu país o jovem Fortinbras, que vai a caminho da Polônia com as suas tropas. Sugestionado por esse exemplo, volta atrás e, numa bárbara carnificina, liquida o tio e a mãe, e liquida-se a si próprio, deixando a Dinamarca à mercê do norueguês. Esses acontecimentos nos mostram o jovem Hamlet, que, contudo, já é um homem feito, a utilizar, de forma absolutamente insuficiente, a nova visão racional que adquirira na Universidade de Wittenberg. Tal visão é para ele um obstáculo nas questões de caráter feudal às quais regressa. Perante a praxis irracional, a sua razão é por completo improcedente. Tomba tragicamente, sacrificado à contradição entre uma forma de raciocínio e outra forma de ação. Esta maneira de ler a peça (que admite mais de uma forma de leitura) poderia, a meu ver, interessar o nosso público.

69 Todos os avanços, toda e qualquer emancipação da natureza, no domínio da produção, que levem a uma transformação da sociedade, todas as tentativas orientadas numa nova direção, que têm sido empreendidas pela humanidade para melhorar o seu destino, conferem-nos um sentimento de triunfo e de confiança e nos proporcionam a fruição das possibilidades de transformação de todas as coisas, quer a literatura nos descreva essas tentativas como bem sucedidas, quer como malogradas. É exatamente isto o que Galileu exprime quando diz: "Em meu parecer, a Terra é algo muito nobre e digno de admiração, em vista das muitas e variadas modificações e gerações que nela surgem, continuamente."

70 A interpretação da fábula e a sua transmissão por intermédio de efeitos de distanciamento adequados deverão ser a tarefa capital do teatro. Mas não é o ator que precisa fazer tudo, ainda que nada se deva fazer que não esteja com ele relacionado. A fábula é interpretada, produzida e apresentada pelo teatro como um todo, constituído pêlos atores, cenógrafos, maquiladores, encarregados dos guarda-roupas, músicos e coreógrafos. Todos eles conjugam as suas artes para um empreendimento comum, sem renunciar, no entanto, à sua autonomia.

71 O gesto geral da demonstração, que sempre acompanha o gesto do que está sendo mostrado em particular, é realçado por meio de apelos musicais dirigidos ao público nas canções. Os atores jamais devem fazer uma passagem natural da fala para o canto; devem, sim, destacá-lo nitidamente do restante, através de recursos cênicos adequados, como, por exemplo, mudança de iluminação ou emprego de títulos. A música, por seu turno, tem de resistir por completo à "sintonização" que lhe é geralmente exigida e que a degrada, tornando-a um autômato subserviente. A música não deve "acompanhar", a não ser por comentários. Não deve contentar-se com "exprimir-se", esvaziando-se, pura e simplesmente, do tom emocional que lhe sobrevêm durante os acontecimentos. Eisler, por exemplo, cuidou, de forma exemplar, da associação dos acontecimentos, compondo uma música triunfante e ameaçadora para as cenas do Entrudo do Galileu Galilei, para o desfile de máscaras das corporações, música que revela como a plebe deu às teorias astronômicas do sábio um novo teor revolucionário. Identicamente, no Círculo de Giz Caucasiano, o modo frio e indiferente com que o cantor canta, ao descrever o salvamento da criança pela criada, apresentado no palco sob a forma de pantomima, põe a nu todo o horror de uma época em que a maternidade pode transforíiiar-se cm fraque/a suicida. A música pode, assim, revestir-se de diversas formas, sem perder a sua independência. Pode também adotar uma atitude, a seu modo, em relação aos temas. Mas sua única preocupação pode ser também a de tornar variada a diversão.

72 Tal como o músico readquire a sua liberdade não tendo de criar estados de alma que facilitem ao público abandonar-se irresistivelmente aos acontecimentos em cena, o cenógrafo passa igualmente a dispor de grande liberdade, se não tiver que conseguir a ilusão de um quarto ou de uma paisagem, ao montar a cena. Bastam-lhe alusões; estas alusões devem, contudo, ser um testemunho histórico ou social muito mais incisivo do que o ambiente real. No teatro judeu de Moscou conseguiu-se o efeito de distanciamento do Rei Lear com uma construção cênica que sugeria um tabernáculo medieval. Neher colocou Galileu à frente de projeções de mapas, documentos e obras de arte da Renascença. No Teatro Piscator, Heartfield empregou, em Tai Yang Desperta, um fundo de bandoleiras giratórias com dísticos que indicavam as modificações da situação política, desconhecida, por vezes, das pessoas em cena.

73 Também à coreografia advêm, de novo, obrigações de caráter realista. E um equívoco afirmar, como se tem feito ultimamente. que a coreografia não é chamada para uma reprodução dos "homens tal como são na realidade". Arte, quando espelha a vida. o faz com espelhos especiais. A arte não deixa de ser realista por alterar as proporções, deixa, sim, quando as altera de tal modo que o público, ao utilizar as reproduções, na prática, em idéias e impulsos, naufraga na realidade. Evidentemente, é necessário que a estilização não suprima a naturalidade do objeto, mas, sim, que a intensifique. Porém, seja qual for o caso, a verdade é que um teatro que tudo extrai do gesto não pode prescindir da coreografia. A elegância de um movimento e a graça de determinada disposição coreográfica são, já em si, efeitos de distanciamento, e a invenção pantomímica é um precioso auxiliar da fábula.

74 Há, pois, que intimar todas as artes afins da arte dramática a não produzirem uma "obra de arte global", na qual todas renunciem a si próprias e se percam, mas, sim, a promoverem, nas suas diversas formas, em conjunto com a arte dramática, uma missão comum. As relações que devem manter entre si consistem em se distanciarem reciprocamente.

75 Mais uma vez deve ser lembrado que essa missão é a de recrear os filhos de uma era científica, proporcionando-lhes o prazer dos sentidos e a alegria. Não serão nunca demasiadas as vezes que repetiremos, a nós próprios, alemães, esta recomendação, pois, entre nós, tudo resvala muito facilmente para o plano do imaterial e do abstraio, a ponto de nos pormos a falar de uma mundivivência, mesmo depois de o mundo já se ter desintegrado. O próprio materialismo, entre nós, quase não vai além de uma idéia. Do prazer sexual extraímos deveres conjugais, o prazer artístico está ao serviço da cultura, e aprender não significa conhecer aprazivelmente, mas, sim, aferrar o nariz ao objeto do conhecimento. Nada do que fazemos representa um esforço aprazível, e, para justificarmos os nossos atos, não invocamos o que gozamos com isto ou com aquilo, mas, sim, quanto suor nos custou.

76 Há ainda outra questão a abordar: a entrega ao público do que se preparou nos ensaios. Ë necessário que o gesto de entregar algo já concluído esteja sempre subjacente à representação propriamente dita. Perante o espectador surge, agora, tudo o que não foi rejeitado e que foi submetido a múltiplas repetições; as reproduções concluídas devem, pois, ser apresentadas com absoluta lucidez, para que possam ser recebidas com lucidez.

77 Ou seja, as reproduções devem ceder passo ao que está sendo reproduzido, ao convívio dos homens, e o prazer da sua perfeição deve ser elevado ao nível de um prazer superior, que deriva da circunstância de as normas que se manifestaram neste convívio humano serem tratadas como provisórias e imperfeitas. Por esta forma superior de prazer o teatro leva o seu espectador a uma atitude fecunda, para além do simples ato de olhar. No seu teatro o espectador poderá recrear-se, como se se tratasse de uma diversão, com as tremendas e infindáveis canseiras que lhe hão de dar a subsistência, e com o pavor que lhe inspira a sua interminável transformação. Num teatro deste tipo o espectador tem a possibilidade de formar a si próprio da maneira mais simples, pois a forma mais simples de existência é a arte que no-la proporciona.

(1948)

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