sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

ARTAUD - O TEATRO E SEU DUPLO

Acabar com as obras-primas

Uma das razões da atmosfera asfixiante, na qual vivemos sem escapatória possível e sem remédio - e pela qual somos todos um pouco culpados, mesmo os mais revolucionários dentre nós -, é o respeito pelo que é escrito, formulado ou pintado e que tornou forma, como se toda expressão já não estivesse exaurida e não tivesse chegado ao ponto em que é preciso que as coisas arrebentem para se começar tudo de novo. É preciso acabar com a idéia das obras-primas reservadas a uma assim chamada elite e que a massa não entende; e admitir que não existe, no espírito, uma zona reservada, como para as ligações sexuais clandestinas. As obras-primas do passado são boas para o passado, não para nós.

Temos o direito de dizer o que foi dito e mesmo o que não foi dito de um modo que seja nosso, imediato, direto, que responda aos modos de sentir atuais e que todo o mundo compreenda. É idiotice censurar a massa por não ter o senso do sublime, quando se confunde o sublime com uma de suas manifestações formais que são, aliás, e sempre, manifestações mortas. E se, por exemplo, a massa de hoje já não compreende Édipo-Rei, ouso dizer que a culpa é de Édipo-Rei e não da massa. Em Édipo-Rei há o tema do Incesto e a idéia de que a natureza zomba da moral; e que em algum lugar há forças errantes com as quais seria bom tomar cuidado; que se dê a essas forças o nome de destino ou outro qualquer. Além disso, há a presença de uma epidemia de peste que é uma encarnação física dessas forças. Mas tudo isso sob disfarces e numa linguagem que perderam qualquer contato com o ritmo epiléptico e grosseiro deste tempo. Sófocles talvez fale alto, mas com modos que já não são desta época. Ele fala fino demais para esta época, e parece que ele fala de lado.

No entanto, a massa que as catástrofes de estradas de ferro fazem tremer, que conhece os terremotos, a peste, a revolução, a guerra; que é sensível às agonias desordenadas do amor, consegue alcançar todas essas elevadas noções e só pede para tomar consciência delas, mas com a condição de que se saiba falar sua própria linguagem e do que a noção dessas coisas não lhe chegue através de disfarces e palavras adulteradas, pertencentes a épocas mortas que nunca mais poderão ser retomadas. A massa, hoje como antigamente, é ávida de mistério; ela pede apenas para tomar consciência das leis segundo as quais o destino se manifesta e, talvez, adivinhar o segredo de suas aparições. Deixemos aos peões a crítica de textos, aos estetas a crítica de formas e reconheçamos que o que já foi dito não está mais por dizer; que uma expressão não vale duas vezes, não vive duas vezes; que toda palavra pronunciada morre e só age no momento em que é pronunciada, que uma forma usada não serve mais e só convida a que se procure outra, e que o teatro é o único lugar do mundo onde um gesto feito não se faz duas vezes. Se a massa não vai às obras-primas literárias é porque essas obras-primas são literárias, isto é, fixadas; e fixadas em formas que já não respondem às necessidades do tempo. Longe de acusar a massa e o público, devemos acusar o anteparo formal que interpomos entre nós e a massa, e essa forma de idolatria nova, essa idolatria das obras-primas fixadas, que é um dos aspectos do conformismo burguês. Esse conformismo que nos faz confundir o sublime, as idéias, as coisas com as formas que tomaram através do tempo e em nós mesmos - em nossas mentalidades de esnobes, de preciosos e estetas que o público já não compreende.

Nisso tudo, será inútil acusar o mau gosto do público que se deleita com insanidades, enquanto não se mostrar ao público um espetáculo válido; e desafio a que me seja mostrado aqui um espetáculo válido, e válido no sentido supremo do teatro, depois dos últimos grandes melodramas românticos, isto é, há cem anos. O público que toma o falso por verdadeiro tem o senso do verdadeiro e sempre reage diante do verdadeiro quando colocado à sua frente. Não é porém em cena que se deve procurá-lo hoje, mas na rua; e, ofereça-se à massa das ruas uma ocasião para mostrar sua dignidade humana, que ela a mostrará. Se a massa se desacostumou de ir ao teatro; se acabamos todos por considerar o teatro como uma arte inferior, um modo de distração vulgar, e por utilizá-lo como exutório para nossos maus instintos, foi por tanto nos dizerem que isso era teatro, ou seja, mentira e ilusão. Foi por nos habituarem desde há quatrocentos anos, desde a Renascença, a um teatro puramente descritivo e narrativo, que narra a psicologia. Foi porque se empenharam em fazer viver, em cena, seres plausíveis mas desligados, com o espetáculo de um lado e o público do outro - foi por se mostrar à massa apenas o espelho daquilo que ela é. O próprio Shakespeare é responsável por esta aberração e degradação, por essa idéia desinteressada do teatro que quer que uma representação teatral deixe o público intacto, sem que uma imagem lançada provoque qualquer abalo no organismo, imprimindo nele uma marca que não mais se apagará.

Se em Shakespeare o homem às vezes se preocupa com aquilo que o ultrapassa, trata-se sempre, definitivamente, das conseqüências dessa preocupação no homem, isto é, a psicologia. A psicologia que se empenha em reduzir o desconhecido ao conhecido, ou seja, ao cotidiano e ao comum, é a causa dessa diminuição e desse desperdício assustador de energia, que me parece ter chegado ao último grau. E me parece que tanto o teatro como nós mesmos devemos acabar com a psicologia. Creio, aliás, que a esse respeito estamos todos de acordo e que não é preciso descer até o repugnante teatro moderno e francês para condenar o teatro psicológico. Histórias de dinheiro, de angústias por causa de dinheiro, de arrivismo social, de agonias amorosas onde o altruísmo nunca interfere, de sexualidades polvilhadas de um erotismo sem mistérios não são do domínio do teatro quando são psicologia. Essas angústias, esse estupro, esses cios diante dos quais somos apenas voyeurs que se deleitam, acabam em revolução e em azedume: é preciso percebê-lo. O mais grave, porém, não é isso. Se Shakespeare e seus imitadores nos insinuaram através dos tempos uma idéia da arte pela arte, com a arte de um lado e a vida do outro, podíamos ficar tranqüilos com a idéia ineficaz e preguiçosa enquanto a vida lá fora se mantinha.

Mas agora vemos muito bem os sinais indicadores de que o que nos mantinha vivos já não se mantém, de que estamos todos loucos, desesperados e doentes. E eu nos convido a reagir. Esta idéia de arte desligada, de poesia-encantamento que só existe para encantar o lazer, é uma idéia de decadência e demonstra claramente nossa força de castração. Nossa admiração literária por Rimbaud, Jarry, Lautréamont e alguns outros, que levou dois homens ao suicídio mas que para os outros se reduz a papinhos de bar, faz parte da idéia da poesia literária, da arte desligada, da atividade espiritual neutra, que nada faz e nada produz; e constato que foi no momento em que a poesia individual, que só compromete aquele que a faz e no momento em que a faz, grassava da maneira mais abusiva que o teatro foi mais desprezado por poetas que nunca tiveram o senso nem da ação direta e em massa, nem da eficácia, nem do perigo. É preciso acabar com a superstição dos textos e da poesia escrita. A poesia escrita vale uma única vez e, depois, que seja destruída. Que os poetas mortos cedam lugar aos outros. E poderíamos mesmo assim ver que é nossa veneração diante do que já foi feito, por mais belo e válido que seja, que nos petrifica, que nos estabiliza e nos impede de tomar contato com a força que está por baixo, quer ela seja chamada energia pensante, força vital determinismo das trocas, menstruação da lua ou o que bem se entender. Sob a poesia dos textos existe a poesia tout court, sem forma e sem texto. E, tal como se esgota a eficácia das máscaras que servem às operações de magia de certos povos - e então essas máscaras só servem para serem jogadas nos museus -, do mesmo modo se esgota a eficácia poética de um texto, e a poesia e a eficácia do teatro é a que se esgota mais lentamente, uma vez que admite a ação do que se gesticula e se pronuncia e que nunca se reproduz uma segunda vez. Trata-se de saber o que queremos.

Se estamos prontos para a guerra, a peste, a fome e o massacre, nem precisamos dizer nada, basta continuar. Continuar nos comportando como esnobes e a nos locomover em massa para ver este ou aquele cantor, este ou aquele espetáculo admirável e que não ultrapassa o domínio da arte (e os bales russos mesmo no momento de seu esplendor nunca ultrapassaram o domínio da arte), esta ou aquela exposição de pintura de cavalete onde explodem aqui e ali algumas formas impressionantes mas casuais e sem uma consciência verídica das forças que poderiam acionar. É preciso parar com esse empirismo, esse acaso, esse individualismo e essa anarquia.

Basta de poemas individuais e que servem muito mais a quem os faz do que a quem os lê. Basta, de uma vez por todas, de manifestações de arte fechada, egoísta e pessoal. Nossa anarquia e nossa desordem espiritual são função da anarquia do resto - ou melhor, é o resto que ó função dessa anarquia. Não sou dos que acreditam que a civilização deva mudar para que o teatro mude; mas creio que o teatro utilizado num sentido superior e o mais difícil possível tem a força de influir sobre o aspecto e a formação das coisas: e a aproximação em cena de duas manifestações passionais, de dois núcleos vivos, de dois magnetismos nervosos é algo de tão integral, tão verdadeiro, tão determinante mesmo quanto, na vida, a aproximação entre duas epidermes num estupro sem amanhã. É por isso que proponho um teatro da crueldade. Com esta mania de rebaixar tudo o que hoje pertence a nós todos, "crueldade", quando pronunciei esta palavra, foi entendida por todo o mundo como sendo "sangue".

Mas "teatro da crueldade" quer dizer teatro difícil e cruel antes de mais nada para mim mesmo. E, no plano da representação, não se trata da crueldade que podemos exercer uns contra os outros despedaçando mutuamente nossos corpos, serrando nossas anatomias pessoais ou, como certos imperadores assírios, enviando-nos pelo correio sacos de orelhas humanas, de narizes ou narinas bem cortadas, mas trata-se da crueldade muito mais terrível e necessária que as coisas podem exercer contra nós. Não somos livres. E o céu ainda pode desabar sobre nossas cabeças. E o teatro é feito para, antes de mais nada, mostrar-nos isso. Ou seremos capazes de retornar, através dos meios modernos e atuais, à idéia superior da poesia e da poesia pelo teatro que está por trás dos Mitos contados pelos grandes trágicos da antigüidade, e capazes mais uma vez de suportar uma idéia religiosa do teatro, isto é, sem mediação, sem contemplação inútil, sem sonhos esparsos, de chegar a uma tomada de consciência e também de posse de certas forças dominantes, de certas noções que tudo dirigem; e, como as noções, quando efetivas, trazem consigo suas energias, capazes de reencontrar em nós essas energias que afinal criam a ordem e fazem aumentar os índices da vida, ou só nos resta nos abandonarmos sem reação e imediatamente, e reconhecer que só servimos mesmo para a desordem, a fome, o sangue, a guerra e as epidemias. Ou trazemos todas as artes de volta a uma atitude e a uma necessidade centrais, encontrando uma analogia entre um gesto feito na pintura ou no teatro e um gesto feito pela lava no desastre de um vulcão, ou devemos parar de pintar, de vociferar, de escrever e de fazer seja lá o que for.

No teatro, proponho a volta à idéia elementar mágica, retomada pela psicanálise moderna, que consiste, para conseguir a cura de um doente, em fazê-lo tomar a atitude exterior do estado ao qual o queremos conduzir. Proponho a renúncia ao empirismo das imagens que o inconsciente carrega ao acaso e que também lançamos ao acaso chamando-as de imagens poéticas, portanto herméticas, como se essa espécie de transe que a poesia suscita não repercutisse em toda a sensibilidade, em todos os nervos, e como se a poesia fosse uma força vaga e que não varia seus movimentos. Proponho a volta, através do teatro, a uma idéia do conhecimento físico das imagens e dos meios de provocar transes, assim como a medicina chinesa conhece, em toda a extensão da anatomia humana, os pontos que devem ser tocados e que regem até as funções mais sutis. Para quem se esqueceu do poder comunicativo e do mimetismo mágico de um gesto, o teatro pode reensiná-lo, porque um gesto traz consigo sua força e porque de qualquer modo há no teatro seres humanos para manifestar a força do gesto feito. Fazer arte é privar um gesto de sua repercussão no organismo, e essa repercussão, se o gesto é feito nas condições e com a força necessárias, convida o organismo e, através dele, toda a individualidade a tomar atitudes conformes ao gesto feito.

O teatro é o único lugar do mundo e o último meio de conjunto que nos resta para alcançar diretamente o organismo e nos momentos de neurose e baixa sensualidade, como este em que estamos mergulhados, para atacar essa baixa sensualidade através dos meios físicos aos quais ela não resistirá. Sc a música age sobre as serpentes não é pelas noções espirituais que ela lhes traz, mas porque as serpentes são compridas, porque se enrolam longamente sobre a terra, porque seu corpo toca a terra em sua quase totalidade; e as vibrações musicais que se comunicam à terra o atingem como uma sutil e demorada passagem; pois bem, proponho agir para com espectadores como para com as serpentes que se encantam e fazer com que retornem, através do organismo, até as noções mais sutis. Primeiro através de meios grosseiros e que, com o tempo, tornam-se mais sutis. Esses meios grosseiros imediatos prenderão sua atenção de início. É por isso que no "teatro da crueldade" o espectador fica no meio, enquanto o espetáculo o envolve. Nesse espetáculo a sonorização é constante: os sons, os ruídos, os gritos são buscados primeiro por sua qualidade vibratória e, a seguir, pelo que representam. Nesses meios que se sutilizam, a luz, por sua vez, intervém. A luz que não é feita apenas para colorir ou iluminar e que traz consigo sua força, sua influência, suas sugestões. E a luz de uma caverna verde não coloca o organismo nas mesmas disposições sensuais que a luz de um dia de ventania. Depois do som e da luz vem a ação, e o dinamismo da ação: é aqui que o teatro, longe de copiar a vida, põe-se em comunicação, quando pode, com as forças puras. E, quer as aceitemos ou neguemos, há um modo de falar que chama de forças o que faz nascer no inconsciente imagens enérgicas e, no exterior, o crime gratuito. Uma ação violenta e densa é uma similitude do lirismo, invoca imagens sobrenaturais, um sangue de imagens, e um jorro sangrento de imagens tanto na cabeça do poeta quanto na do espectador.

Sejam quais forem os conflitos que assombram a mente de uma época, desafio um espectador ao qual cenas violentas tenham passado seu sangue, que tenha sentido em si a passagem de uma ação superior, que tenha visto de relance em latos extraordinários os movimentos extraordinários e essenciais de seu pensamento - a violência e o sangue colocados a serviço da violência do pensamento -, desafio esse espectador a entregar-se, exteriormente, às idéias de guerra, revolta e assassinato temerário. Dita desta maneira, essa idéia parece apressada e pueril. E muitos dirão que exemplo chama exemplo, que a atitude da cura convida à cura e a do assassinato, ao assassinato. Tudo depende do modo e da pureza com que se fazem as coisas. Há um risco. Mas que ninguém esqueça que um gesto teatral é violento, porém desinteressado; e que o teatro ensina exatamente a inutilidade da ação que, uma vez feita, não está mais por ser feita, e a utilidade superior do estado inutilizado pela ação mas que, voltado, produz a sublimação.

Proponho assim um teatro em que imagens físicas violentas triturem e hipnotizem a sensibilidade do espectador, envolvida no teatro como num turbilhão de forças superiores. Um teatro que, abandonando a psicologia, narre o extraordinário, ponha em cena conflitos naturais, forças naturais e sutis, e que se apresente antes de mais nada como uma excepcional força de derivação. Um teatro que produza transes, como as danças dos Derviches e Aissauas, e que se dirija ao organismo com meios precisos e com os mesmos meios que as músicas curativas de certos povos, que admiramos em discos mas que somos incapazes de fazer nascer entre nós. ""Há um risco, mas acho que nas circunstâncias atuais vale a pena corrê-lo. Não creio que consigamos reavivar o estado de coisas em que vivemos e nem creio que valha a pena aferrar-se a isso; mas proponho alguma coisa para sair do marasmo, em vez de continuar - a reclamar desse marasmo e do tédio, da inércia e da imbecilidade de tudo.

O teatro da crueldade (Primeiro Manifesto)

Não é possível continuar a prostituir a idéia de teatro, que só é válido se tiver uma ligação mágica, atroz, com a realidade e o perigo. Assim colocada, a questão do teatro deve despertar a atenção geral, ficando subentendido que o teatro, por seu lado físico, e por exigir a expressão no espaço, de fato a única real, permite que os meios mágicos da arte e da palavra se exerçam organicamente e em sua totalidade como exorcismes renovados. De tudo isso conclui-se que não serão devolvidos ao teatro seus poderes específicos de ação antes de lhe ser devolvida sua linguagem. Isso significa que, em vez de voltar a textos considerados como definitivos e sagrados, importa antes de tudo romper a sujeição do teatro ao texto e reencontrar a noção de uma espécie de linguagem única, a meio caminho entre o gesto e o pensamento. Essa linguagem só pode ser definida pelas possibilidades da expressão dinâmica e no espaço, em oposição às possibilidades da expressão pela palavra dialogada. E aquilo que o teatro ainda pode extrair da palavra são suas possibilidades de expansão fora das palavras, de desenvolvimento no espaço, de ação dissociadora e vibratória sobre a sensibilidade. Ë aqui que intervêm as entonações, a pronúncia particular de uma palavra. É aqui que intervém, fora da linguagem auditiva dos sons, a linguagem visual dos objetos, movimentos, atitudes, gestos, mas com a condição de que se prolonguem seu sentido, sua fisionomia, sua reunião até chegar aos signos, fazendo desses signos uma espécie de alfabeto. Tendo tomado consciência dessa linguagem no espaço, linguagem de sons, de gritos, de luzes, de onomatopéias, o teatro deve organizá-la, fazendo com as personagens e os objetos verdadeiros hieróglifos, servindo-se do simbolismo deles e de suas correspondências com relação a todos os órgãos e em todos os planos. Trata-se portanto, para o teatro, de criar uma metafísica da palavra, do gesto, da expressão, com vistas a tirá-lo de sua estagnação psicológica e humana. Mas nada disso adiantará se não houver por trás desse esforço uma espécie de tentação metafísica real, um apelo a certas idéias incomuns, cujo destino é exatamente o de não poderem ser limitadas, nem mesmo formalmente esboçadas. Essas idéias, que se referem à Criação, ao Devir, ao Caos, e que são todas de ordem cósmica, fornecem uma primeira noção de um domínio do qual o teatro se desacostumou totalmente. Elas podem criar uma espécie de equação apaixonante entre o Homem, a Sociedade, a Natureza e os Objetos. A questão não é fazer aparecer em cena, diretamente, idéias metafísicas, mas criar espécies de tentações, de atmosferas propícias em torno dessas idéias. E ao humor com sua anarquia, a poesia com seu simbolismo e suas imagens fornecem como que uma primeira noção dos meios para canalizar a tentação dessas idéias. É preciso falar agora do lado unicamente material dessa linguagem. Isto é, de todas as maneiras e de todos os meios que ela tem para agir sobre a sensibilidade. Seria inútil dizer que essa linguagem apela para a música, a dança, a pantomima ou a mímica. É evidente que ela utiliza movimentos, harmonias, ritmos, mas apenas enquanto podem contribuir para uma espécie de expressão central, sem proveito para uma arte particular. O que também não significa que essa linguagem não se serve de fatos comuns, paixões comuns, mas apenas como de um trampolim, assim como o HUMOR-DESTRUIÇÃO, através do riso, pode servir para conciliá-la com os hábitos da razão. Mas com um sentido totalmente oriental da expressão, essa linguagem objetiva e concreta do teatro serve para cercar, encerrar órgãos. Ela circula na sensibilidade. Abandonando as utilizações ocidentais da palavra, ela faz das palavras encantações. Ela impele a voz. Utiliza vibrações e qualidades de voz. Faz ritmos baterem loucamente. Martela sons. Visa exaltar, exacerbar, encantar, deter a sensibilidade. Destaca o sentido de um novo lirismo do gesto, que, por sua precipitação ou sua amplitude no ar, acaba por superar o lirismo das palavras. Rompe enfim a sujeição intelectual à linguagem, dando o sentido de uma intelectualidade nova e mais profunda, que se oculta sob os gestos e sob os signos elevados à dignidade de exorcismes particulares, Todo esse magnetismo e toda essa poesia e esses meios de encantamentos diretos nada seriam se não colocassem o espírito fisicamente no caminho de alguma coisa, se o verdadeiro teatro não pudesse nos dar o sentido de urna criação da qual possuímos apenas uma face e cuja realização completa está em outros planos. E pouco importa que esses outros planos sejam lealmente conquistados pelo espírito, isto é, pela inteligência; isso é diminuí-los e não interessa, não tem sentido. Importa é que, através de meios seguros, a sensibilidade seja colocada num estado de percepção mais aprofundada e mais apurada, é esse o objetivo da magia e dos ritos, dos quais o teatro é apenas um reflexo.

TÉCNICA
Trata-se portanto de fazer do teatro, no sentido próprio da palavra, uma função; algo tão localizado e preciso quanto a circulação do sangue nas artérias, ou o desenvolvimento, aparentemente caótico, das imagens do sonho no cérebro, e isso através de um encadeamento eficaz., uma verdadeira escravização da atenção. O teatro só poderá voltar a ser ele mesmo, isto é, voltar a constituir um meio de ilusão verdadeira, se fornecer ao espectador verdadeiros precipitados de sonhos, onde seu gosto pelo crime, suas obsessões eróticas, sua selvageria, suas quimeras, seu sentido utópico da vida e das coisas, seu canibalismo mesmo se expandam, num plano não suposto e ilusório, mas interior. Em outras palavras, o teatro deve procurar, por todos os meios, recolocar em questão não apenas todos os aspectos do mundo objetivo e descritivo externo, mas também do mundo interno, ou seja, do homem, considerado metafisicamente. Só assim, acreditamos, poderemos voltar a falar, no teatro, dos direitos da imaginação. Nem o Humor nem a Poesia nem a Imaginação significam qualquer coisa se, por uma destruição anárquica, produtora de uma prodigiosa profusão de formas que serão todo o espetáculo, não conseguem questionar organicamente o homem, suas idéias sobre a realidade e seu lugar poético na realidade. Mas considerar o teatro como uma função psicológica ou moral de segunda mão e acreditar que os próprios sonhos não passam de uma função de substituição é diminuir o alcance poético profundo tanto dos sonhos quanto do teatro. Se o teatro, assim como os sonhos, é sanguinário e desumano, é, muito mais do que isso, por manifestar e ancorar de modo inesquecível em nós a idéia de um conflito eterno e de um espasmo onde a vida é cortada a cada minuto, onde tudo na criação se levanta e se exerce contra nosso estado de seres constituídos, é por perpetuar de um modo concreto e atual as idéias metafísicas de algumas Fábulas cuja própria atrocidade e energia bastam para desmontar a origem e o teor em princípios essenciais. Sendo assim, vê-se que, por sua proximidade dos princípios que lhe transferem poeticamente sua energia, essa linguagem nua do teatro, linguagem não virtual mas deve permitir, pela utilização do magnetismo nervoso do homem, a transgressão dos limites comuns da arte e da palavra para realizar ativamente, ou seja, magicamente, em termos verdadeiros, uma espécie de criação total, onde não reste ao homem senão retomar seu lugar entre os sonhos e os acontecimentos.

OS TEMAS
Não se trata de assassinar o público com preocupações cósmicas transcendentes. O fato de existirem chaves profundas do pensamento e da ação para se ler todo o espetáculo não diz respeito ao espectador em geral, que não se interessa por isso. Mas de todo modo é preciso que essas chaves existam e isso nos diz respeito. O

ESPETÁCULO:
Todo espetáculo conterá um elemento físico e objetivo, sensível a todos. Gritos, lamentações, aparições, surpresas, golpes teatrais de todo tipo, beleza mágica das roupas feitas segundo certos modelos rituais, deslumbramento da luz, beleza encantatóría das vozes, encanto da harmonia, raras notas musicais, cor dos objetos, ritmo físico dos movimentos cujo crescendo e decrescendo acompanhará a pulsação de movimentos familiares a todos, aparições concretas de objetos novos e surpreendentes, máscaras, bonecos de vários metros, mudanças bruscas da luz, ação física da luz que desperta o calor e o frio, etc.

A ENCENAÇÃO:
É em torno da encenação, considerada não como o simples grau de refração de um texto sobre a cena, mas como o ponto de partida de toda criação teatral, que será constituída a linguagem-tipo do teatro. E é na utilização e no manejo dessa linguagem que se dissolverá a velha dualidade entre autor e diretor, substituídos por uma espécie de Criador único a quem caberá a dupla responsabilidade pelo espetáculo e pela ação.

A LINGUAGEM DA CENA:
Não se trata de suprimir o discurso articulado, mas de dar às palavras mais ou menos a importância que elas têm nos sonhos. Quanto ao resto, é preciso encontrar novos meios de anotar essa linguagem, quer esses meios sejam aparentados com os da transcrição musical, quer se faça uso de uma espécie de linguagem cifrada. No que diz respeito aos objetos comuns, ou mesmo ao corpo humano, elevados à dignidade de signos, é evidente que se pode buscar inspiração nos caracteres hieroglíficos, não apenas para anotar esses signos de uma maneira legível e que permita sua reprodução conforme a vontade, mas também para compor em cena símbolos precisos e legíveis diretamente. Por outro lado, essa linguagem cifrada e essa transcrição musical serão preciosas como meio de transcrever as vozes. Urna vez que faz parte da base dessa linguagem uma utilização particular das entonações, essas entonações devem constituir uma espécie de equilíbrio harmônico, de deformação secundária da palavra, que deve poder ser reproduzida à vontade. Do mesmo modo, as dez mil e uma expressões do rosto consideradas em estado de máscaras poderão ser rotuladas e catalogadas, com o objetivo de participarem diretamente e simbolicamente dessa linguagem concreta da cena; e isto além de sua utilização psicológica particular. Além disso, os gestos simbólicos, as máscaras as atitudes, os movimentos particulares ou de conjunto, cujas inúmeras significações constituem uma parte importante da linguagem concreta do teatro, gestos evocadores, atitudes emotivas ou arbitrárias, marcação desvairada de ritmos e sons se duplicarão, serão multiplicados por espécies de gestos e atitudes reflexos, constituídos pelo acúmulo de todos os gestos impulsivos, de todas as atitudes falhas, de todos os lapsos do espírito e da língua através dos quais se manifesta aquilo que se poderia chamar de impotências da palavra, e existe nisso uma prodigiosa riqueza de expressão, à qual não deixaremos de recorrer ocasionalmente. Além disso, existe uma idéia concreta da música em que os sons intervêm como personagens, em que harmonias são cortadas ao meio e se perdem nas intervenções precisas das palavras. Entre um e outro meio de expressão criam-se correspondências e níveis; e até mesmo a luz poderá ter um sentido intelectual determinado.

OS INSTRUMENTOS MUSICAIS:
Serão usados em sua condição de objetos e como se fizessem parte do cenário. Além disso, a necessidade de agir diretamente e profundamente sobre a sensibilidade pelos órgãos convida, do ponto de vista sonoro, a que se procurem qualidades e vibrações de sons absolutamente incomuns, qualidades que os instrumentos musicais atuais não possuem, e que levam ao uso de instrumentos antigos e esquecidos, ou a criar novos instrumentos. Elas também levam a que se procurem, além da música, instrumentos e aparelhos que, baseados em fusões especiais ou em novas combinações de metais, possam atingir um novo diapasão da oitava, produzir sons ou ruídos insuportáveis, lancinantes.

AS ILUMINAÇÕES:
Os aparelhos luminosos atualmente em uso nos teatros já não podem ser suficientes. Entrando em jogo a ação particular da luz sobre o espírito, devem-se buscar efeitos de vibração luminosa, novos modos de difundir a iluminação em ondas, ou por camadas, ou como uma fuzilaria de flechas incendiárias. A gama colorida dos aparelhos atualmente em uso deve ser revista de ponta a ponta. A fim de produzir qualidades de tons particulares, deve-se reintroduzir na luz um elemento de sutileza, densidade, opacidade, com o objetivo de produzir calor, frio, raiva, medo, etc.

A ROUPA:
Com respeito à roupa, e sem pensar que possa haver uma roupa uniforme para o teatro, a mesma para todas as peças, deve-se procurar evitar o mais possível a roupa moderna, não por um gosto fetichista e supersticioso pelo antigo, mas porque surge como absolutamente evidente que certas roupas milenares, de uso ritual, mesmo tendo sido de época num certo momento, conservam uma beleza e uma aparência reveladoras, em virtude da proximidade que mantêm com as tradições que lhes deram origem.

A CENA - A SALA: Suprimimos o palco e a sala, substituídos por uma espécie de lugar único, sem divisões nem barreiras de qualquer tipo, e que se tomará o próprio teatro da ação. Será restabelecida uma comunicação direta entre o espectador e o espetáculo, entre ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação, estar envolvido e marcado por ela. Esse envolvimento provém da própria configuração da sala. Assim, abandonando as salas de teatro existentes, usaremos um galpão ou um celeiro qualquer, que reconstruiremos segundo os procedimentos que resultaram na arquitetura de certas igrejas e certos lugares sagrados, de certos templos do Alto Tibete. No interior dessa construção reinarão proporções particulares em altura e profundidade. A sala será fechada por quatro paredes, sem qualquer espécie de ornamento, e o público ficará sentado no meio da sala, na parte de baixo, em cadeiras móveis que lhe permitirão seguir o espetáculo que se desenvolverá à sua volta. Com efeito, a ausência de palco, no sentido comum da palavra, convidará a ação a desenvolver-se nos quatro cantos da sala. Lugares especiais serão reservados para os atores e para a ação, nos quatro pontos cardeais da sala. As cenas serão representadas diante de fundos de paredes pintadas a cal e destinadas a absorver a luz. Além disso, no alto, correrão galerias por toda a sala, como em certos quadros de Primitivos. Essas galerias permitirão aos atores, toda vez que a ação exigir, caminhar de um ponto a outro da sala, e também que a ação se desenrole em todos os níveis e em todos os sentidos da perspectiva em altura e profundidade. Um grito emitido num canto poderá se transmitir de boca em boca com amplificações e modulações sucessivas até o outro canto da sala. A ação romperá seu círculo, estenderá sua trajetória de nível em nível, de um ponto a outro, paroxismos nascerão de repente, acendendo-se como incêndios em pontos diferentes; e o caráter de ilusão verdadeira do espetáculo, assim como a influência direta e imediata da ação sobre o espectador, não serão palavras vazias. É que esta difusão da ação por um espaço imenso obrigará a iluminação de uma cena e as iluminações diversas de uma representação que deve abranger tanto o público quanto as personagens - e a várias ações simultâneas, a várias fases de uma ação idêntica em que as personagens agarradas umas às outras como num enxame suportarão to dos os assaltos das situações, e os assaltos exteriores dos elementos e da tempestade, corresponderão meios físicos de iluminação, de trovão ou vento, cujo contragolpe o espectador sentirá. No entanto, será reservado um lugar central que, sem servir propriamente de palco, deverá permitir que o todo da ação se reúna e se organize sempre que necessário. .

OS OBJETOS - AS MÁSCARAS - OS ACESSÓRIOS:
Bonecos, máscaras enormes, objetos de proporções singulares aparecerão na mesma condição das imagens verbais, insistirão no lado concreto de toda imagem e de toda expressão - com a contrapartida de que as coisas que geralmente exigem uma figuração objetiva serão escamoteadas ou dissimuladas.

O CENÁRIO:
Não haverá cenário. Para essa função bastarão personagens-hieróglifos, roupas rituais, bonecos de dez metros de altura representando a barba do Rei Lear na tempestade, instrumentos musicais da altura de um homem, objetos com formas e destinação desconhecidas.

A ATUALIDADE:
Mas, muitos dirão, um teatro tão longe da vida, dos fatos, das preocupações atuais... Da atualidade e dos acontecimentos, sim! Das preocupações, no que têm de profundo e que é o apanágio de alguns, não! No Zohar, a história de Rabi-Simeão, que arde como fogo, é atual como o fogo.

AS OBRAS:
Não representaremos peças escritas mas, em torno de temas, fatos ou obras comuns, tentaremos uma encenação direta. A própria natureza e disposição da sala exigem o espetáculo e não há tema, por mais amplo que seja, que nos seja interdito

ESPETÁCULO:
Há uma idéia do espetáculo integral que devemos fazer renascer. O problema é fazer o espaço falar, alimentá-lo e mobiliá-lo; como minas introduzidas numa muralha de rochas planas que de repente fizessem nascer gêiseres e ramos de flores.

O ATOR:
O ator é ao mesmo tempo um elemento de primeira importância, pois é da eficácia de sua interpretação que depende o sucesso do espetáculo, e uma espécie de elemento passivo e neutro, pois toda iniciativa pessoal lhe é rigorosamente recusada. Este é, aliás, um domínio em que não há regras precisas; e, entre o ator a quem se pede uma simples qualidade de soluço e aquele que deve pronunciar um discurso com suas qualidades de persuasão pessoais, há toda a distância que separa um homem de um instrumento.

A INTERPRETAÇÃO:
O espetáculo será cifrado do começo ao fim, como uma linguagem. Com isso não haverá movimentos perdidos, todos os movimentos obedecerão a um ritmo; e, cada personagem sendo tipificada ao extremo, sua gesticulação, sua fisionomia, suas roupas surgirão como outros tantos traços de luz.

O CINEMA:
À visualização grosseira daquilo que existe, o teatro, através da poesia, opõe as imagens daquilo que não existe. Aliás, do ponto de vista da ação não se pode comparar uma imagem de cinema que, por mais poética que seja, é limitada pela película, com uma imagem de teatro que obedece a todas as exigências da vida.

A CRUELDADE:
Sem um elemento de crueldade na base de todo espetáculo, o teatro não é possível. No estado de degenerescência em que nos encontramos, e através da pele que faremos a metafísica entrar nos espíritos. O

PÚBLICO:
Primeiro, é preciso que haja esse teatro.

O PROGRAMA:
Encenaremos, sem levar o texto em consideração:

l) Uma adaptação de uma obra da época de Shakespeare, totalmente adaptada ao atual estado de perturbação espiritual, quer se trate de uma peça apócrifa de Shakespeare, como Arden of Feversham, ou de qualquer outra peça da mesma época.

2) Uma peça de extrema liberdade poética de Léon-Paul -Fargue.

3) Algo do Zohar: A história de Rabi-Simeão, que tem a força e a violência sempre presentes de um incêndio.

4) A história de Barba Azul reconstituída segundo os arquivos e com uma nova idéia do erotismo e da crueldade.

5) A Tomada de Jerusalém, segundo a Bíblia e a História; com a cor vermelho-sangue que daí decorre e com o sentimento de abandono e pânico dos espíritos visível até na luz; e, por outro lado, com as disputas metafísicas dos profetas, com a incrível agitação intelectual que elas criam e cujo contragolpe recai fisicamente sobre o Rei, o Templo, o Populacho c os Acontecimentos.

6) Um conto do marquês de Sade, em que o erotismo será transposto, alegoricamente figurado e vestido, no sentido de uma exteriorização violenta da crueldade, e de uma dissimulação do resto.

7) Um ou vários melodramas românticos em que a inverossimilhança se tornará um elemento ativo e concreto de poesia,

8) O Woyzeck de Buchner, por espírito de reação contra nossos princípios, e a título de exemplo do que se pode extrair cenicamente de um texto preciso.

9) Obras do teatro elisabetano despojadas de seus textos e das quais só serão mantidos os atavios de época, as situações, as personagens e a ação.




Veja os vídeos

http://www.youtube.com/watch?v=MknxTAL26RM

http://www.youtube.com/watch?v=cyE0hOkSK-w

http://www.youtube.com/watch?v=gI0YiDIrPAw

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