sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

ARISTÓTELES - POÉTICA - PARTE III

XX. A elocução. Partes da elocução.

116. Quanto à elocução, as seguintes são as suas partes: letra, sílaba, con-junção, nome, verbo, (artigo), flexão e proposição.

117. A letra é um som indivisível, não porém qualquer som, mas apenas o qual possa gerar um som composto; porque também os animais emitem sons indivisíveis e, contudo, a esses não os denomino letras.

118. As letras dividem-se em vogais, semivogais e mudas. Vogal é a letra de som audível sem encontro (dos lábios ou da lingual); semivogal, a que tem um som produzido por esse encontro, como o E e o P ; a muda, como o f ou o , é a letra que necessita da língua ou dos lábios, mas que só vem a ser audível quando unida a uma vogal ou a uma semivogal. Depois, diferem as letras de cada um destes grupos pela conformação da boca na pronúncia, pelo lugar da boca em que se produz o som, e ainda conforme são ásperas ou brandas, longas ou breves, agudas, graves ou intermediárias, mas estas particularidades são da competência da métrica.

119. Sílaba é o som desprovido de significado próprio, constituído por muda e soante; efetivamente, as duas letras R/P produzem uma sílaba, sem A, seja com A, como na sílaba RPZ. Mas também estas distinções pertencem à métrica.

120. Conjunção é palavra destituída de significado próprio, mas que não obsta nem contribui para que vários sons significativos componham uma única expressão significativa, e que se destina por natureza, a estar nos extremos ou no meio, nunca, porém, no princípio de uma proposição, por exemplo: µév7jíoabéou é um som desprovido de significado, cuja função é a de reproduzir um único som significativo, como pé, nepl e semelhantes; ou é um som não significativo que indica o início, o término ou a divisão no interior de uma proposição.

121. Nome é um som significativo, composto, sem determinação de tempo, que não tem nenhuma parte, seja significado "branco" não exprimem o tempo, mas os verbos "anda", "andou" exprimem-no, o primeiro, o tempo presente, o segundo,o passado.

123. A flexão tanto pertence ao nome como ao verso, e indica as relações de casos, como "deste", "a este", ou outras relações que tais; ou o singular e o plural, como "homens" e "homem"; ou os modos de expressão de quem fala, como a interrogação, o comando; efetivamente, "foi?", "vai!" São flexões do verbo segundo estas últimas espécies.

124. A proposição é som composto e significativo, do qual algumas partes são de por si significantes (porque nem todas as proposições se compõem de nomes e de verbos, mas pode haver também uma proposição sem verbo, como, por exemplo, a definição de homem; no entanto, deve conter sempre uma parte significativa). Exemplo de parte significante é o nome "Cléon" na proposição "Cléon anda". Uma proposição pode ser una de duas maneiras; ou porque indica uma só coisa, ou pelo liame que reúne muitas coisas, adunando-as. E assim, a Ilíada é una pelo nexo que reúne as diversas partes; e a definição de homem, porque se refere a um só objeto.

XXI A elocução poética.

125. Há duas espécies de nomes: simples e duplos. "Simples", denomino os que não são constituídos de partes significativas, como a palavra (terra); todos os outros são duplos. Estes, depois, ou são compostos de uma parte não significativa e de uma parte significativa; ou de partes ambas significativas (note-se porém, que o ser ou não ser significativo não pertence às partes, consideradas dentro do nome). E também há nomes triplos, quádruplos, múltiplos, como alguns usados entre os massaliotas: Hermocaïcoxantos.

126. Cada nome, depois, ou é corrente, ou estrangeiro, ou metáfora, ou ornato, ou inventado, ou alongado, abreviado ou alterado.

127. Nome "corrente", chamo àquele de que ordinariamente se serve cada um de nós; "estrangeiro", aquele de que se servem os outros, e por isso é claro que o mesmo nome pode ser ao mesmo tempo estrangeiro e corrente, mas, como é natural, não para as mesmas pessoas; assim nongis para os cipriotas é de uso corrente, e para nós, estrangeiro.

128. A metáfora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie de uma para a espécie de outra, ou por analogia.

129. Transporte do gênero para a espécie é o que se dá, por exemplo, na proposição "Aqui minha nave se deteve", pois o "estar ancorado" é uma espécie do gênero "deter-se". Transporte da espécie para o gênero, na proposição "Na verdade, milhares e milhares de gloriosos feitos, Ulisses levou a cabo", porque "milhares e milhares" está por "muitos", e o poeta se serve destes termos específicos, em lugar do genérico "muitos". "Tendo-lhe esgotado a vida com seu bronze" e "cortando com o duro bronze" são exemplos de transporte de espécie para espécie. No primeiro, o poeta usou, em lugar de "cortar", "esgotar", e no segundo, em lugar de "esgotar", "cortar"; mas ambas as palavras especificam o "tirar a vida".

130. Digo que há analogia quando o segundo termo está para o primeiro na igual relação em que está o quarto para o terceiro, porque, neste caso, o quarto termo poderá substituir o segundo, e o segundo, o quarto. E algumas vezes os poetas ajuntam o termo ao qual se refere a palavra substituída pela metáfora. Por exemplo, a "urna" está para "Dionisio", como o "escudo" para "Ares", e assim se dirá a urna "escudo de Dionisio", e o escudo "urna de Ares". Também se dá a mesma relação, por um lado. entre a velhice e a vida e, por outro lado, entre a tarde e o dia; por isso a tarde será denominada "velhice do dia", ou, como Empédocles, dir-se-á a velhice "tarde da vida" ou "ocaso da vida". Por vezes falta algum dos quatro nomes na relação analógica, mas ainda assim se fará a metáfora. Por exemplo, "lançar a semente" diz-se "semear"; mas não há palavra que designe "lançar a luz do sol", todavia esta ação tem a mesma relação com o sol que o semear com a semente; por isso se dirá "semeando uma chama criada pelos deuses". Além desse modo de empregar a metáfora, existe outro, quando, após usar o termo alheio, se negar algo que lhe é próprio, como se ao escudo se chamasse "urna", não de Ares, mas sem vinho.

132. "Inventado" é o nome que ninguém usa, mas que o próprio poeta forjou; ao que parece, há algumas palavras deste gênero, como galhos em vez de cornos, e oficiante, por "sacerdote".

133. Há, depois, os nomes alongados ou abreviados. No primeiro caso, o nome tem uma vogal mais longa do que a própria, ou uma sílaba a mais; no segundo, é omitida uma parte da palavra. Alongada, por exemplo, é Vohlop, em vez de Vwelop, e wedaihlhP, em vez de nodielhP ou, nome abreviado e, por exemplo irc e vd e aim iatenig nwretojma yo.

134. Alterado é o vocábulo do qual uma parte é mantida e outra transformada, como noretixed atak xamón por ixedón.

135. Considerados em si mesmos, os nomes ou são masculinos, ou femininos, ou de gênero intermédio. Masculinos são os que terminam em N, R e S, ou em letra composta de é (duas são as letras desce tipo: psi e csi) é femininos, os que terminam em vogais sempre longa, com eta e omêga ou em vogal alfa alongada; e assim, a soma das terminações masculinas e femininas vem a ser igual, porque as terminações em S reduzem-se a uma só (com é ). XXII

136. A excelência da linguagem consiste em ser clara, sem ser chã. A mais clara é a regida em termos correntes, mas é chã; por exemplo, as composições de Cleofonte e Estênelo. . Pelo contrário, e elevada a poesia que usa de vocábulos peregrinos e se afasta da linguagem vulgar. Por vocábulos "peregrinos" entendo as palavras estrangeiras, metafóricas, alongadas e, em geral, todas as que não sejam de uso corrente.

137. Mas a linguagem composta apenas de palavras deste gênero será enigma ou barbarismo; enigmático se o for scí de metáforas, bárbara, se exclusivamente de vocábulos estrangeiros. Porque tal é a característica do enigma: elegendo absurdos, dizer coisas acertadas, o que se obtém, não quando se juntam nomes com o significado corrente, mas, sim, mediante as metáforas, como no verso "vi um homem colando com fogo bronze noutro homem" e em outros semelhantes. E "bárbara" é a linguagem composta de nomes estrangeiros.

138. Necessária será, portanto, como que a mistura de toda espécie de vocábulos. Palavras estrangeiras, metáforas, ornatos e todos os outros nomes de que falamos elevam a linguagem acima do vulgar e do uso comum, enquanto os termos correntes lhe conferem a clareza.

139. Alongamentos e abreviamentos, alterações dos nomes contribuem em grande parte para a clareza e elevação do discurso; afastados da forma corrente e do uso vulgar, fazem esses nomes que a linguagem não seja banal, enquanto, pela parte que mantém do uso vulgar, subsistirá a clareza.

140. Por conseguinte não tem razão Euclides, o antigo, quando parodiou tais versos, em linguagem vulgar: 'nhracipE nodie edanvqaraM atnoxidab cmo na g'zonemare not moniece lelnorobe

141. É certo que, pelo demasiado evidente destes modos, se incorre no ridículo, e, por outro lado, a moderação também é necessária nas outras partes do discurso; pois metáforas, estrangeirismos e outras espécies de nomes, impropriamente usados, produziriam o mesmo resultado, se de propósito nos servíssemos deles para provocar o riso.

142. Mas quanto seja diferente o uso moderado dessas palavras, e o que facilmente se verifica na poesia épica, se inserirmos nos versos vocábulos correntes. Quanto a palavras estrangeiras, metáforas e outras espécies de nomes raros, ver-se-á que dizemos a verdade, se as substituirmos por palavras de uso comum. Por exemplo, Ésquilo e Eurípedes compuseram o mesmo verso jâmbico, mas Eurípedes mudou um só vocábulo após uma palavra estrangeira no lugar de uma palavra corrente, e assim fez um verso belo, ao passo que o de Ésquilo é verso medíocre. Com efeito, no Filoctetes, Ésquilo escrevera. "úlcera que come as carnes de meu pé", Eurípides, em lugar, usou repastar-se em lugar de comer. E assim também no verso "foi um baixote, ordinário e feio", se dissesse, com os termos triviais, "um pequeno, fraco e feio". Igualmente "pondo-lhe um banco humilde e uma mesa acanhada" e "pondo-lhe um banco ordinário e uma mesa pequena".

143. Arífrades, por seu turno, parodiava os trágicos por usarem eles expressões de que ninguém se serve na linguagem corrente, escrevendo por exemplo: ' nwtamwo opa em vez de opa nwtamwo e mais neqes, wge ed e licAlzwe irep em vez irep licAlzwe. Mas o emprego destas locuções, ainda que elas se não encontrem na linguagem vulgar, dá elevação ao estilo, e isso não viu Arífrades.

144. Grande importância tem, pois, o uso discreto de cada uma das mencionadas espécies de nomes, de nomes duplos e de palavras estrangeiras; maior, todavia, e a do emprego das metáforas, porque tal se não aprende nos demais, e revela portanto o engenho natural do poeta; com efeito, bem saber descobrir as metáforas significa bem se aperceber das semelhanças.

145. Dos vários nomes, os duplos são os mais apropriados aos ditirambos, os vocábulos estrangeiros aos versos heróicos, e as metáforas aos versos jâmbicos. Porém, nos versos heróicos, todas as espécies de vocábulos são utilizáveis; nos jâmbicos, ao invés. E porque neles se imita a linguagem corrente, mais convém os nomes que todos adotam na conversação, a saber, nomes correntes, metáforas e ornatos.

146. Basta o que dissemos, quanto à tragédia é a imitação que se efetua mediante ações.

XXIII A poesia épica e a poesia trágica. As mesmas leis regem a epopéia e a tragédia. Homero.

147. Quanto à imitação narrativa e em verso, é claro que o mito deste gênero poético deve ter uma estrutura dramática, como o da tragédia; deve ser constituído por uma ação inteira e completa, com princípio, meio e fim, pára que, una e completa qual organismo vivente, venha a produzir o prazer que lhe é próprio.

148. Também é manifesto que a estrutura da poesia épica não pode ser igual á das narrativas históricas, as quais tem de expor não uma ação cênica, mas um tempo cênico, com todos os eventos que sucederam nesses períodos a uma ou a várias personagens, eventos cada um dos quais está para os outros em relação meramente casual. Com efeito, a batalha naval de Salamina e a derrota dos cartagineses na Sicília desenvolveram-se contemporaneamente, sem que estas ações tendessem para o mesmo resultado; e, por outro lado, às vezes acontece que em tempos sucessivos um fato venha após outro, sem que de ambos resulte comum efeito. No entanto, a maioria dos poetas adota este procedimento.

149. Por isso, como já dissemos, também por este aspecto Homero parece elevar-se maravilhosamente acima de todos os outros poetas: não que ele poetar toda a guerra de Tróia, sabem que ela tenha princípio e fim (o argumento teria resultado vasto em demasia e, portanto, não seria compreendido no conjunto; ou então, se fosse moderadamente extensa, também seria demasiado complexa pela variedade dos acontecimentos). Eis por que desses acontecimentos apenas tomou uma parte, e de muitos outros se serviu como episódios; assim, com o "Catálogo das Naves" e tantos outros que distribuiu pelo poema.

150. Os outros poetas, todavia, compuseram seus poemas ou acerca de uma pessoa, ou de uma época, ou de uma ação com muitas partes, como, por exemplo, o autor dos Cantos Cíprios e da Pequena Ilíada. Por isso, enquanto da Ilíada e da Odisséia não é possível extrair, de cada uma delas, senão uma tragédia, ou duas, quando muito, dos Cantos Cíprios, ao invés, muitas se podem tirar, e da Pequena Ilíada, mais de oito: Juízo das Armas, Filoctetes, Neoptólemo, Euripilo, Ulisses Mendigo, Lacedemônias, Ruína de Tróia, Partida das Naves, Simon e Troianas.

XXIV Diferença entre a epopéia e a tragédia quanto a episódios e extensão.

151. As mesmas espécies que a tragédia deve apresentar a epopéia, a qual, portanto, será simples ou complexa, ou de caracteres, ou catastrófica; e as mesmas devem ser as suas partes, exceto melopéia e espetáculo cênico. Efetivamente, na poesia épica também são necessários os reconhecimentos, as peripécias e as catástrofes, assim como a beleza de pensamento e de elocução, coisas estas de que Homero se serviu de modo conveniente. De tal maneira são constituídos os seus poemas, que a Ilíada é simples (episódica) e catastrófica, e a Odisséia, complexa (toda ela é reconhecimentos) e de caracteres; além de que, em pensamento e elocução, superam todos os demais poemas.

152. Mas diferem a epopéia e a tragédia pela extensão e pela métrica.

153. Quanto à extensão, justo limite é o que indicamos, a apreensibilidade do conjunto, de princípio e do fim da composição. Mas, para não exceder tal limite, deveria a estrutura dos poemas ser menos vasta do que a das antigas epopéias, e assumir a extensão que todas juntas têm as tragédias representadas num só espetáculo. Para aumentar a extensão, possui a epopéia uma importante particularidade. Na tragédia não é possível representar muitas partes da ação, que se desenvolvem no mesmo tempo, mas tão somente aquela que na cena se desenrola entre os atores; mas na epopéia, porque narrativa, muitas ações contemporâneas podem ser apresentadas, ações que, sendo conexas com a principal, virão acrescer a majestade da poesia. A vantagem do poema épico, que o engrandece e permite variar o interesse do ouvinte, enriquecendo a matéria com episódios diversos; porque, do semelhante, que depressa sacia, vem o fracasso de tantas tragédias.

154. Quanto à métrica, prova a experiência que é o verso heróico o único adequado à epopéia; efetivamente, se alguém pretendesse compor uma imitação narrativa, quer em metro diferente do heróico, quer servindo-se de metros vários, logo se aperceberia da inconveniência da empresa. Na verdade, o verso heróico é o mais grave e o mais amplo, e, portanto, melhor que qualquer outro se presta a acolher vocábulos raros e metafóricos (também por este aspecto a imitação narrativa supera as outras). Pelo contrário, uma coisa resulta o produzir-se outra, são o trímetro jâmbico e o tetrâmetro, este primeiro convém à dança, e o segundo à ação. No, entanto, se há um antecedente falso é o de misturar versos, como o fez Querémon, que o antecedente seja que ninguém se serviu nunca de verso verdadeiro, nós reunimo-los; porque o que não fosse o heróico para compor saber que o segundo é verdadeiro leva um poema extenso. Como dissemos a nossa mente à arbitrária conclusão de que verdadeiro se a também o ri própria natureza nos ensinou a escolher.

155. Homero, entre outros motivos é digno de louvor, também o é porque, entre os demais, só ele não ignora qual seja propriamente o mister do poeta. Porque o poeta deveria falar o menos possível por conta própria, pois, assim procedendo, não é imitador. Os outros poetas. pelo contrário, intervêm em pessoa na declamação, e pouco e poucas vezes imitam. Ao passo que Homero, após breve intróito, subitamente apresenta varão ou mulher, ou outra personagem caracterizada - nenhuma sem caráter, todas as que o tem.

156. Só o maravilhoso tem lugar na tragédia; mas na epopéia, porque ante nossos olhos não agem atores, chega a ser admissível o irracional, de que muito especialmente deriva o maravilhoso. Em cena ridícula resultaria a perseguição de Heitor: os guerreiros que se detêm e o não perseguem, e [Aquiles] que lhes faz sinal para que assim se quedem. Mas, na epopéia, tudo passa despercebido.

157. Grato, porém, é o maravilhoso; prova é que todos, quando narram alguma coisa; amplificam a narrativa para que mais interesse aos outros poetas também Homero ensinou o modo de dizer o que é falso - refiro-me ao paralogismo que os homens crêem ver, quando existir ou produzir-se com o fito de agradar.

158. De preferir às coisas possíveis nas incríveis são as impossíveis mas críveis; contudo, não deveriam os argumentos poéticos ser constituídos de partes irracionais; preferível seria que nada houvesse de irracional, ou, pelo menos, que o irracional apenas tivesse lugar fora da representação, como, por exemplo, a ignorância de Édipo quanto à morte de Laio; e não dentro do próprio drama, como a descrição dos Jogos Píticos, na Electra, ou a personagem que nos Misios, vinda de Tróia para a Mísia, não diz palavra. Ridículo é pois claro que sem o irracional não subsistiria o mito; em primeiro lugar, nem tais mitos se deveriam compor; mas, se um poeta os fizer de modo que pareçam razoáveis, esses ainda serão admissíveis, ainda que absurdos. Na verdade, tudo quanto de irracional acontece no desembarque de Ulisses inaceitável seria em obra de mau poeta; os absurdos, porém, Homero os ocultou sob primores de beleza·

159. Importa, por conseguinte, aplicar os maiores esforços no embelezamento da linguagem, mas só nas partes desprovidas de ação, de caracteres e de pensamento: uma elocução deslumbrante ofuscaria caracteres e pensa mento. Problemas críticos.

160. Assunto esclarecido será o dos problemas e soluções, de quantas e quais as suas formas, se o encararmos do modo seguinte.

161. O poeta é imitador, como o pintor ou qualquer outro imaginário; por isso, sua imitação incidirá num destes três objetos: coisas quais eram ou quais são, quais os outros dizem que são ou quais parecem, ou quais deveriam ser. Tais coisas, porém, ele as representa mediante uma elocução que compreende palavras estrangeiras e metáforas, e que, além disso, comporta múltiplas alterações, que efetivamente consentimos ao poeta.

162. Acresce ainda que não é igual o critério de correção na poética e na política, e, semelhantemente, o de qualquer outra arte, em confronto com a poesia. Na arte poética, erros de duas espécies se podem dar: essenciais ou acidentais. Portanto, se propostos tais objetos, a imitação resulta deficiente por incapacidade do poeta, o erro e intrínseco á própria poesia; se, pelo contrário, o defeito consiste apenas em não haver concebido corretamente o objeto da imitação - como querendo imitar um cavalo que movesse a um tempo as duas patas do lado direito- o erro não é intrínseco à poesia, como o não e qualquer que se cometa relativamente a uma arte particular (medicina ou outra), ou quando se representam coisas impossíveis.

163. Importa, por conseguinte, resolver as críticas que os problemas contém, considerando-as dos pontos de vista precedentes.

164. Primeiro, vejamos as críticas respeitantes à própria arte. O poeta representar impossíveis é um erro desculpável, contudo, se atingiu a finalidade própria da poesia (da qualidade já falamos), e se, de tal maneira, resultou mais impressionante essa parte do poema, ou outra qualquer. Exemplo: a perseguição de Heitor. Mas, caso possa atingir mais ou menos a mesma finalidade, respeitando as regras da arte, o erro é injustificável, porque, sendo possível, não deveria haver erro nenhum.

165. Mas então vejamos: será o erro cometido daqueles que ofendem a essência da arte, ou não será antes um erro acidental á poesia? Pois falta menor comete o poeta que ignore que a corça não tem cornos, que o poeta que a represente de modo não artístico.

166. Além disso, quando no poeta se repreende uma falta contra a verdade, há talvez que responder como Sófocles: que representava ele os homens tais como devem ser, e Eurípides, tais como são. E depois caberia ainda responder: os poetas representam a opinião comum, como nas histórias que contam acerca dos deuses: essas histórias talvez não sejam verdadeiras, nem melhores; talvez as coisas sejam como pareciam a Xenófanes; no entanto,assim as contam os homens.

167. Outros casos há que os poetas referem não como sendo o melhor, mas como o que fora outrora; assim, quando se diz das armas: "as lanças erguidas sobre os contos"; então, vigorava o uso que os ilírios mantém ainda.

168. Para reconhecer se bem ou mal falou ou agiu uma personagem, importa que a palavra ou o ato não sejam exclusivamente considerados na sua elevação ou baixeza; e preciso também observar o indivíduo que agiu ou falou, e a quem, quando, como e para que, se para obter maior bem ou para evitar mal maior.

169. Outras dificuldades se resolvem, bem considerada a elocução. Assim, a daquela passagem: "os machos (ovpãas) primeiro, porque não queria o poeta falar de "machos" mas de "sentinelas"; e assim, de Dólon, dizendo o poeta: "mau ele era de aspecto'; não entende, por isso, que disforme era o corpo dele, mas apenas "feio de rosto"; efetivamente, dizem os de Creta "belo de aspecto" por "rosto belo". E, "mistura mais forte': deve ser entendido não com "servir mais puro", como se de beberrões se tratasse, mas de "servir mais depressa".

170. Outras palavras se dizem metaforicamente. Por exemplo: "Todos, deuses e homens, dormiam ainda, pela noite alta ", diz o poeta, e logo a seguir: "quando lançava os olhos sobre a planície de Tróia (admirava o tumultuoso som das flautas e das siringes': é que "todos" está por "muitos" metaforicamente, porque "todos" e uma espécie de "muitos". Também "só ela [está] excluída [de banhar-se no Oceano]" há de entender-se como metáfora: "só" está por "o mais conhecido".

171. Com a prosódia resolvem-se outras dificuldades; assim explicava Hípias de Taso aquele "glória nós lhe daremos" e 'parte do qual apodrece com a chuva':

172. Outras por diérese, como os versos de Empédocles: " Mas depressa se tornaram mortais [as coisas antes imortais, e misturadas, as que antes eram [simples]"

173. E outras por anfibolia: "a maior parte da noite passou'; em que "maior parte" tem duplo sentido.

174. Enfim, outras se explicam por usos da linguagem. e mistura de água e vinho chamam "vinho", e assim, disse Homero: "cnemide de récem-elaborado estatuto'; e porque se dá o nome de "elaboradores de estanho" aos que trabalham o ferro, assim ele disse também de Ganimedes: "que a Zeus seria vinho. . . ': se bem que os deuses não bebam vinho. Mas isto também se poderia explicar por uso metafórico.

175. Se o (nome) contém uma significação contraditória, e mister procurar quantos significados ele pode assumir na frase em questão. Por exemplo, em aqui se deteve a brônzea lança; importa verificar de quantas maneiras pode ser entendido o "ali haver parado". A consideração das várias possibilidades (significativas) e procedimento oposto aquele de que fala Glauco. Alguns críticos partem de prevenida e absurda opinião, depois raciocinam concluindo pela censura, como se o poeta tivesse pensado algo de contraditório ao pressuposto deles, e o que se verifica a propósito de Icário: supondo-se que ele fosse lacedemônio, logo se concluiu que era absurdo Telêmaco não o haver encontrado quando chegou a Esparta. Talvez, porém, o caso se passasse como referem os cefalênios: que, tendo Ulisses contraído núpcias na terra deles, o nome do herói seja Icádio, e não Icário. É pois verossímil que o problema nasça de um erro.

176. Em suma, o absurdo deve ser considerado, ou em relação á poesia, ou ao melhor, ou à opinião comum.

177. Com efeito, na poesia e de preferir o impossível que persuade ao possível que não persuade. Talvez seja impossível existirem homens quais Zeus os pintou; esses porém correspondem ao melhor e o paradigma deve ser superado. E depois, a opinião comum também justifica o irracional, além de que às vezes irracional parece o que o não e, pois verossimilmente acontecem coisas que inverossímeis parecem. Expressões aparentemente contraditórias, importa examiná-las como nas refutações dialéticas; verificar se do mesmo se trata, na mesma relação e, no mesmo sentido; e analogamente, se o poeta cai em contradição com o que ele próprio diz, ou com o que, sobre o que ele diz, pensa uma mente sã.

178. Censuras por absurdo ou malvadez só são justas quando o poeta, sem necessidade, usa do irracional, como Eurípides na intervenção de Egeu, ou de maldade, como Menelau, no Orestes.

179. As críticas resumem-se, pois, a cinco espécies: ou porque [as representações] são impossíveis, ou irracionais, ou imorais, ou contraditórias, ou contrárias ás regras da arte. As soluções devem reduzir-se aos argumentos indicados, e são doze.

XXVI A epopéia e a tragédia. A tragédia supera a epopéia

180. E agora poder-se-ia perguntar qual seja superior, se a imitação épica ou a imitação trágica.

181. Se é melhor a menos vulgar, e tal e a arte que a melhores espectadores se dirige, decerto que vulgar é aquela que tudo imita. Efetivamente, pela rudeza de um público que, sem mais, não entenderia a representação, entregam-se os atores a toda casta de movimentos, como o fazem os maus flautistas, que rodopiam, querendo imitar o lançamento do disco, ou arrastam o corifeu, quando representam a Cila. A tragédia teria pois o defeito que os antigos atores atribuem aos da sucessiva geração - defeito pelo qual Minisco apelidava Calípides de "macaco", devido á sua exagerada gesticulação; e o mesmo se dizia de Píndaro. Como estes atores vulgares estão para os primeiros, assim toda a arte dramática [estaria], para a epopéia. Dizem que a epopéia se dirige a um público elevado, porque não exige a exterioridade dos gestos, e a tragédia, aos rudes, e que, sendo vulgar, decerto que e inferior.

182. Em primeiro lugar, digamos que tal censura não atinge a arte do poeta, mas sim a do ator, visto que também é possível exagerar a gesticulação recitando rapsódias, como Sosístrato, ou cantando [poemas líricos], como Mnasíteo de Opunte. E depois, que nem toda espécie de gesticulação e de reprovar, se não reprovamos a dança, mas tão-somente a dos maus atores - que tal se repreendia em Calípides, e agora nos que parecem imitar os meneios de mulheres ordinárias. Acresce ainda que a tragédia pode atingir a sua finalidade, como a epopéia, sem recorrer a movimentos, pois uma tragédia, só pela leitura, pode revelar todas as suas qualidades. Por conseguinte, se noutros aspectos a tragédia supera a epopéia, não e necessário que este defeito lhe pertença essencialmente.

183. Mas a tragédia é superior porque contém todos os elementos da epopéia (chega até a servir-se do metro épico), e demais, o que não e pouco, a melopéia e o espetáculo cênico, que acrescem a intensidade dos prazeres que lhe são próprios. Possui, ainda, grande evidência representativa, quer na leitura, quer na cena; e também a vantagem que resulta de, adentro de mais breves limites, perfeitamente realizar a imitação (resulta mais grato o condensado que o difuso por longo tempo; imagine-se, por exemplo, o efeito que produziria o Édipo de Sófocles em igual número de versos que a Ilíada). Além disso, a imitação dos épicos é menos unitária (demonstra-o a possibilidade de extrair tragédias de qualquer epopéia), e, portanto, se pretendessem eles compor uma epopéia com argumento em um çênico mito trágico, se quisessem ser concisos, mesquinho resultaria o poema, se quisessem conformar-se às dimensões épicas, resultaria prolixo. Quando falo de poesia épica como constituída de múltiplas ações, refiro-me a poemas quais a Ilíada e a Odisséia, com várias partes, extensas todas elas (se bem que estes dois poemas sejam de composição quase perfeita e, tanto quanto possível, imitações de uma ação cênica).

184. Por conseqüência, se a tragédia é superior por todas estas vantagens e porque melhor consegue o efeito específico da arte (posto que o poeta nenhum deve; tirar da sua arte que não seja o indicado), é claro que supera a epopéia e, melhor que esta, atinge a sua finalidade.

185. Falamos pois da tragédia e da epopéia, delas mesmas e das suas espécies e partes, número e diferenças dessas partes, das causas pelas quais resulta boa ou má a poesia, das críticas e respectivas soluções. Dos jambos e da comédia.

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