sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

BRECHT - PEQUENO ORGANON - PARTE I

PRÓLOGO
Vamos examinar, a seguir, qual será o teor de uma estética que se baseia em determinada forma de representar, a que, já de algumas décadas para cá, se tem dado realização prática. Nas ocasionais observações e conclusões teóricas e nas indicações técnicas, publicadas sob forma de comentários às peças do autor, o problema estético apenas foi aflorado de um modo acidental e relativamente desinteressado. Nelas, vemos uma determinada espécie de teatro alargar e restringir sua função social, completar ou selecionar seus meios artísticos, e estabelecer-se ou afirmar-se no campo da estética, quando isso vinha a propósito, menosprezando as prescrições então vigentes - quer elas fossem de natureza moral, quer dissessem respeito ao gosto artístico -, ou invocando-as em seu benefício, conforme a sua posição de combate. Era com discrição que defendia, pôr exemplo, o seu pendor social - apontando tendências sociais em obras geralmente consagradas e utilizando apenas o argumento de serem estas as tendências então aceitas. Caracterizava a eliminação de todos os valores culturais, na produção contemporânea, como um indício de decadência; acusava os recintos de diversão noturna de se terem degradado e passado a ser mais um ramo do comércio burguês de estupefacientes. As falsas reproduções da vida real que eram efetuadas nos palcos, incluindo as do chamado naturalismo, levaram-no a solicitar reproduções cientificamente exatas, e o insípido espírito de "iguaria", de deleite sensaborão através dos olhos e da alma, fê-lo exigir a excelente lógica da tabuada. Este teatro rejeitou, com desdém, o culto do belo, culto então alimentado ao lado de uma aversão ao saber e de um desprezo pelo útil; e o que induziu a essa renúncia foi, sobretudo, a circunstância de não estar produzindo nada de belo naquela época. Aspirava-se a um teatro próprio de uma época científica e, como era muito difícil para os planejadores desse teatro requisitar ou furtar do arsenal dos conceitos estéticos vigentes sequer apenas o bastante para manter os estetas da Imprensa à distância, preferiram simplesmente ameaçar afirmando o seguinte propósito: "extrair do instrumento de prazer um objeto didático e reformar determinadas instituições transformando-as de locais de diversão em órgãos de divulgação" (Notas sobre a Ópera), ou seja, emigrar do reino do aprazível. A estética, legado de uma classe depravada que se tornara parasitária, encontrava-se num estado tão deplorável que um teatro que preferisse apodar-se de thaëter logo adquiria, por si, tanto prestígio como liberdade de ação. No entanto, o que então se praticava como teatro de uma época científica não era ciência, mas, sim, teatro, e toda essa porção de inovações, surgidas num período em que não havia possibilidade de demonstração prática (no período nazi e durante a guerra) faz que se torne premente analisar qual a posição deste gênero de teatro dentro da estética, ou, então, determinar os traços de uma estética adequada a esta espécie de teatro. Seria demasiado difícil, por exemplo, apresentar a teoria do distanciamento fora de uma perspectiva estética. Poder-se-ia mesmo escrever, hoje em dia, uma estética das ciências exatas. Galileu já falava da elegância de certas fórmulas e do humor das experiências; Einstein atribuiu ao sentido da beleza uma função de descoberta e o físico atômico R. Oppenheimer enaltece a atitude científica afirmando que ela "tem uma beleza própria e se revela perfeitamente adequada à posição do homem na Terra". Chegou a altura de rebatermos, por muito que pese ao comum das pessoas, o nosso propósito de emigrar do reino do aprazível e de manifestarmos, por muito que pese ainda a maior número de pessoas, o nosso propósito de nos estabelecermos, daqui para frente, neste reino. Tratemos o teatro como um recinto de diversão, único tratamento possível desde que o enquadremos numa estética, e analisemos, pois, qual a forma de diversão que mais nos agrada.

1 O teatro consiste na apresentação de imagens vivas e acontecimentos passados no mundo dos homens que são reproduzidos ou que foram, simplesmente, imaginados; o objetivo dessa apresentação é divertir. Será sempre com este sentido que empregaremos o termo, tanto ao falarmos do teatro antigo como do moderno.

2 Se quiséssemos ampliar o conteúdo da expressão, poderíamos incluir nela, também, os acontecimentos ocorridos entre homens e deuses, mas, como nos interessa apenas determinar seu sentido restrito, tal acréscimo pode, perfeitamente, ser abolido. E, mesmo que optássemos por um tal alargamento de sentido, teríamos de continuar a descrever a função mais geral desta instituição que se denomina teatro exatamente nos mesmos termos, isto é, teríamos de continuar a descrevê-la como uma função de diversão. É esta a função mais nobre que atribuímos ao teatro.

3 O teatro, tal como todas as outras artes, tem estado, sempre, empenhado em divertir. E é este empenho, precisamente, que lhe confere, e continua a conferir, uma dignidade especial. Como característica específica, basta-lhe o prazer, prazer que terá de ser, evidentemente, absoluto. Tornando-o um mercado abastecedor de moral, não o faremos ascender a um plano superior; muito pelo contrário, o teatro deve justamente se precaver nesse caso, para não degradar-se, o que certamente sucederá se não transformar o elemento moral em algo agradável, ou, melhor, susceptível de causar prazer aos sentidos. Tal transformação irá beneficiar, justamente, o aspecto moral. Nem sequer se deverá exigir ao teatro que ensine, ou que possua utilidade maior do que a de uma emoção de prazer, quer orgânica, quer psicológica. O teatro precisa poder continuar a ser algo absolutamente supérfluo, o que significa, evidentemente, que vivemos para o supérfluo. E a causa dos divertimentos é, dentre todas, a que menos necessita de ser advogada.

4 O objetivo que os Antigos, segundo Aristóteles, seguem em suas tragédias não pode classificar-se nem como superior nem como inferior ao simples objetivo de divertir. Dizer que o teatro surgiu das cerimonias do culto não é diferente do que dizer que o teatro surgiu precisamente por se ter desprendido destas; não adotou a missão dos mistérios, adotou, sim, o prazer do exercício do culto, pura e simplesmente. E a catarse aristotélica, a purificação pelo terror e pela piedade, ou a purificação do terror e da piedade, não é uma ablução realizada simplesmente de uma forma recreativa, é, sim, uma ablução que tem por objetivo o prazer. Quaisquer exigências ou concessões que façamos ao teatro para além disto significam apenas que estamos menosprezando seu objetivo específico.

5 E, ainda que distingamos uma forma superior e uma forma inferior de diversão, a arte não se compadece de tal distinção; o que ela ambiciona é poder expandir-se livremente, tanto numa esfera inferior como numa esfera superior, desde que divirta o público com isso

6 Mas o teatro pode proporcionar-nos prazeres fracos (simples) e prazeres intensos (complexos). Os últimos surgem-nos nas grandes obras dramáticas e desenvolvem-se até alcançarem um apogeu, do mesmo modo que o ato sexual, por exemplo, alcança a sua plenitude no amor; são mais diversificados, mais ricos em poder de intervenção, mais contraditórios e de conseqüências mais decisivas.

7 E as diversões próprias das diferentes épocas têm sido, naturalmente, distintas umas das outras, variando de acordo com o tipo de convívio humano de cada época. O demos dos circos helênicos, sob o domínio da tirania, teve de ser recriado de uma forma diferente na corte feudal de Luís XIV. O teatro tem precisado proporcionar reproduções diversas do convívio humano, que não são apenas imagens de um convívio diferente, mas também imagens dadas de uma forma diferente.

8 Foi necessário dar às personagens proporções diversas, e também as situações tiveram de ser construídas segundo uma perspectiva diversa, conforme a natureza da diversão possível e necessária em cada forma de convívio humano. Deve-se narrar as histórias de uma forma muito distinta a fim de que possam divertir aos helenos, para quem não havia possível escapatória da lei divina, ainda que esta fosse desconhecida, ou aos franceses, com a sua graciosa auto-suficiência que o código de deveres palacianos exige dos grandes senhores do mundo, ou aos ingleses da era elisabetana, com o seu narcisismo de homens novos, totalmente libertos de inibições.

9 Não se deve também esquecer que o usufruto de reproduções de espécie tão diversa quase nunca dependeu do grau de semelhança entre a imagem e o seu objeto. A inexatidão, e mesmo uma forte falha de verossimilhança, pouco ou nada importavam, desde que a inexatidão apresentasse uma certa consistência e a inverossimilhança conservasse um certo grau de semelhança. Bastava a ilusão de que o decurso das histórias se desenrolava compulsivamente, ilusão criada por toda a espécie de recursos teatrais e poéticos. Também nós fechamos de bom grado os olhos a tais discrepâncias sempre que nos permitem extrair das abluções espirituais de Sófocles, dos holocaustos de Racine ou dos instintos sanguinários de Shakespeare um proveito parasitário, apoderando-nos dos belos ou grandes sentimentos dos protagonistas dessas histórias.

10 Das múltiplas espécies de reproduções de acontecimentos significativos ocorridos no mundo dos homens, que, desde os Antigos até hoje, têm sido apresentadas no teatro e que, apesar de sua inexatidão e sua ausência de verossimilhança, têm servido de diversão, há, ainda, hoje em dia, um número espantoso que também diverte a nós.

11 Ora, se constatamos a nossa capacidade de nos deleitarmos com reproduções provenientes de épocas tão diversas (o que teria sido quase impossível aos filhos dessas épocas grandiosas), não deveríamos, então, suspeitar que nos falta ainda descobrir o prazer específico, a diversão própria da nossa época?

12 A nossa capacidade de fruição do teatro deve ter-se atrofiado, em relação à dos Antigos, muito embora a nossa forma de convívio ainda se assemelhe bastante à sua para que, de maneira geral, essa fruição possa surgir da nossa arte. Apossamo-nos das obras antigas por intermédio de um processo relativamente novo, ou seja, por empatia, processo para o qual as referidas obras não dão, de si, grande contribuição. A nossa fruição é, desta forma, quase totalmente alimentada por fontes diversas das que tão possantemente se abriram para aqueles que viveram antes de nós. Arranjamos uma compensação na beleza da linguagem dessas obras, na elegância da sua fabulação, nas passagens cujo poder de sugestão nos permite criar uma representação mental desligada delas, em suma, nos ornamentos. Esses recursos poéticos e teatrais dissimulam, justamente, a sensação de desacerto que a história nos provoca. Os nossos teatros já não têm a capacidade ou o prazer de narrarem estas histórias, nem mesmo as do grande Shakespeare (que não são, assim, tão antigas), com exatidão, isto é, tornando verossímil a associação dos acontecimentos. E a fábula é, segundo Aristóteles - e nesse ponto pensamos identicamente -, a alma do drama! Cada vez mais nos molesta o primitivismo e o descuido que encontramos nas reproduções do convívio humano, não só nas obras antigas, mas também nas contemporâneas, quando estas são feitas pelas receitas antigas. O nosso modo de fruição começa a desatualizar-se

13 É a sensação de desacerto, que nos vem perante as reproduções dos acontecimentos .ocorridos no mundo dos homens, que reduz nosso prazer no teatro. A razão desse desacerto é o fato de a nossa posição em relação ao objeto reproduzido ser diversa daquela dos que nos antecederam.

14 Ao indagarmos que espécie de diversão (direta), que prazer amplo e constante o nosso teatro nos poderia proporcionar com suas reproduções do convívio humano, não podemos esquecer que somos filhos de uma era científica. O nosso convívio como homens - a nossa vida, quer dizer - está condicionado, pela ciência, dentro de dimensões completamente novas.

15 Há algumas centenas de anos, houve umas quantas pessoas que, embora em países diversos, realizaram experiências equivalentes no sentido de arrancarem à Natureza os seus segredos. Pertencendo à classe industrial de cidades já então poderosas, transmitiram suas invenções a terceiros, que as exploraram no domínio da prática, sem pedirem das novas ciências outra coisa senão lucro pessoal. Indústrias que, durante milhares de anos, se haviam mantido dentro de processos quase inalterados, desenvolveram-se, então, espantosamente, em várias localidades; estas localidades ligavam-se umas às outras pela concorrência e englobavam em si, por toda a parte, grandes massas humanas, que, estruturadas de uma forma nova, iniciaram uma produção gigantesca. Em breve, a humanidade pôde revelar forças de uma amplitude até então nunca sonhada.

16 Dir-se-ia que a humanidade só agora se dispunha, unitária e consciente, a tornar habitável o astro em que vivia. Vários elementos naturais, tais como o carvão, a água, o petróleo, tornaram-se verdadeiros tesouros. Incumbiu-se o vapor de água de mover veículos; umas quantas pequenas faíscas e a vibração das coxas da rã denunciaram uma força da Natureza, uma força que produzia luz e transportava o som por sobre os continentes, etc. Era com um olhar novo que o homem, por toda a parte, mirava ao redor de si e inquiria como lhe seria possível utilizar para seu bem-estar tudo o que já há muito conhecia de vista, mas nunca utilizara. O meio ambiente transformava-se cada vez mais, de decênio em decênio, depois de ano para ano, e, mais tarde, quase de dia para dia. Eu próprio estou neste momento escrevendo numa máquina que não era conhecida quando nasci. Desloco-me nos novos veículos a uma velocidade que o meu avô não poderia sequer imaginar; não havia nada nesse tempo que se movesse tão rapidamente. E, além disso, elevo-me no ar, coisa que era impossível a meu pai. Podia conversar com o meu pai de um continente para outro, mas foi só com o meu filho que vi as imagens animadas da explosão de Hiroxima.

17 Se bem que as novas ciências tenham proporcionado uma tão enorme modificação e, sobretudo, a possibilidade de modificação do nosso ambiente, não se pode, .na verdade, afirmar que estejamos imbuídos do seu espírito, que ele condicione a todos. O motivo por que a nova forma de pensamento e de sensibilidade não se impôs ainda às massas está no fato de a classe que deve justamente às ciências a sua supremacia - a burguesia - impedir que as ciências, que foram tão proveitosas na exploração e sujeição da Natureza, se apoderem de outro domínio ainda virgem, o domínio das relações dos homens entre si e no ato de explorar ou subjugar a Natureza. Esta tarefa, da qual dependem todas as outras, foi efetuada sem que os novos métodos de pensamento que a possibilitaram viessem esclarecer a relação recíproca existente entre aqueles que a efetuaram. A nova visão da Natureza não incidiu também sobre a sociedade.

18 Com efeito, as atuais relações entre os homens tornaram-se mais impenetráveis do que outrora. O gigantesco empreendimento comum em que estão empenhados parece desavi-los cada vez mais e mais, o aumento de produção causa aumento de miséria e com a exploração da Natureza somente lucram uns poucos e, precisamente, por estarem explorando os homens. O que poderia ser o progresso de todos torna-se a vantagem de alguns apenas, e uma parte crescente da produção é votada à criação de meios destruidores destinados a guerras poderosas, a guerras em que as mães de todas as nações, com os filhos apertados contra si, esquadrinham estupefatas o céu, no rastro dos inventos mortíferos da ciência.

19 Os homens de hoje estão, perante as suas próprias realizações, exatamente como outrora, perante as imprevisíveis catástrofes da Natureza. A classe burguesa, que deve à ciência a sua prosperidade, prosperidade que transformou em domínio ao tornar-se sua beneficiária exclusiva, não ignora que, se a perspectiva científica incidir sobre suas realizações, isso representa o fim do seu domínio. A nova ciência, que se debruça sobre a natureza das diversas sociedades humanas e que foi fundada há cerca de cem anos, mergulha suas raízes na luta dos dominados contra os dominantes. Desde então, tem-se manifestado nos trabalhadores, para quem a grande produção é vital, algo que é, no fundo, como que um espírito científico; segundo esse espírito, as grandes catástrofes são consideradas como obra dos que dominam.

20 A ciência e a arte têm de comum o fato de ambas existirem para simplificar a vida do homem; a primeira, ocupada com a sua subsistência, a segunda, em proporcionar-lhe diversão. No futuro vindouro, a arte extrairá diversão da nova produtividade, produtividade esta que tanto pode melhorar a nossa existência e que, uma vez livre de obstáculos, pode vir a ser, em si própria, o maior de todos os prazeres.

21 Se quisermos, pois, entregar-nos à grande paixão de produzir, qual deverá ser o teor das nossas reproduções do convívio humano? Qual será a atitude produtiva, em relação à Natureza e à sociedade, que, no teatro, nos recreará, a nós, os filhos de uma época científica?

22 Essa atitude é de natureza crítica. Perante um rio, ela consiste em regularizar o seu curso; perante uma árvore frutífera, em enxertá-la; perante a locomoção, em construir veículos de terra e de ar; perante a sociedade, em fazer uma revolução. As nossas reproduções do convívio humano destinam-se aos técnicos fluviais, aos pomicultores, aos construtores de veículos e aos revolucionários, a quem convidamos a virem aos nossos teatros e a quem pedimos que não esqueçam, enquanto estiverem conosco, os seus respectivos interesses (que são uma fonte de alegria); poderemos, assim, entregar o mundo aos seus cérebros e aos seus corações, para que o modifiquem a seu critério.

23 Sem dúvida, só será possível ao teatro assumir uma posição independente, caso se entregue às correntes mais avassaladoras da sociedade e se associe a todos os que estão, necessariamente, mais impacientes por fazer grandes modificações nesse domínio. É, sobretudo, o desejo de desenvolver a nossa arte em diapasão com a época em que ela se insere que nos impele, desde já, a deslocar o nosso teatro, o teatro próprio de uma época científica, para os subúrbios das cidades; aí ficará, a bem dizer, inteiramente à disposição das vastas massas de todos os que produzem em larga escala e que vivem com dificuldades, para que nele possam divertir-se proveitosamente com a complexidade dos seus próprios problemas. É possível que achem difícil remunerar a nossa arte, é possível que não compreendam, logo à primeira vista, a nossa nova forma de diversão, e, em muitos aspectos, nós teremos de aprender a descobrir aquilo de que necessitam e de que modo o necessitam; mas podemos estar seguros do seu interesse. É que todos aqueles que parecem tão distantes da ciência o estão, com efeito, pela simples razão de serem mantidos a distância; para se apropriarem da ciência terão de desenvolver e pôr em prática, por si, desde já, uma nova ciência social. São estes os verdadeiros filhos de uma era científica como a nossa, cujo teatro não se poderá desenvolver se não forem eles a impulsioná-lo. Um teatro que torne a produtividade fonte principal de diversão deverá torná-la, também, seu tema; e é com um cuidado muito particular que deverá fazê-lo, hoje em dia, pois por toda a parte vemos o homem a impedir o homem de produzir a si próprio, isto é, de angariar o seu próprio sustento, de divertir-se e divertir. O teatro tem de se comprometer com a realidade, porque só assim será possível e será lícito produzir imagens eficazes da realidade.

24 Tudo isto vem facilitar ao teatro uma aproximação, tanto quanto possível estreita, com os estabelecimentos de ensino e de difusão. Pois, embora o teatro não deva ser importunado com toda a sorte de temas de ordem cultural que não lhe confiram um caráter recreativo, tem plena liberdade de se recrear com o ensino ou com a investigação. Faz com que as reproduções da sociedade sejam válidas e capazes de a influenciar, como autêntica diversão. Expõe aos construtores da sociedade as vivências dessa mesma sociedade, tanto passadas como atuais; mas fá-lo de forma que se possam tornar objetos de fruição os conhecimentos, os sentimentos e os impulsos que aqueles que dentre nós são os mais emotivos, os mais sábios e os mais ativos, extraem dos acontecimentos do dia-a-dia e do século. E nosso propósito recreá-los com a sabedoria que advém da solução dos problemas, com a ira em que se pode proveitosamente transformar a compaixão pêlos oprimidos, com o respeito pelo amor de tudo o que é humano, ou seja, pelo filantrópico; em suma, com tudo aquilo que deleita o homem que produz.

25 O teatro pode, assim, levar seus espectadores a fruir a moral específica da sua época, a moral que emana da produtividade. Tornando a crítica, ou seja, o grande método da produtividade, um prazer, nenhum dever se deparará ao teatro no campo da moral; deparar-se-ão, sim, múltiplas possibilidades. A sociedade pode mesmo extrair prazer de tudo o que apresente um caráter associai, desde que o apresentem como algo vital e revestido de grandeza; assim se nos revelam, com freqüência, forças intelectuais e inúmeras capacidades de especial valia, empregadas porém, evidentemente, com propósitos destruidores. Ora bem, a sociedade pode mesmo gozar livremente, em toda a sua magnificência, dessa torrente que irrompe catastroficamente, desde o momento que lhe seja possível dominá-la, passando nesse caso a corrente a ser sua.

26 Para levar a bom termo um empreendimento desta ordem seria impossível deixar o teatro ficar como está. Entremos numa das habituais salas de espetáculos e observemos o efeito que o teatro exerce sobre os espectadores. Olhando ao redor, vemos figuras inanimadas, que se encontram num estado singular: dão-nos a idéia de estarem retesando os músculos num esforço enorme, ou então de os terem relaxado por intenso esgotamento. Quase não convivem entre si; é como uma reunião em que todos dormissem profundamente e fossem, simultaneamente, vítimas de sonhos agitados, por estarem deitados de costas, como diz o povo a propósito dos pesadelos. Têm os olhos, evidentemente, abertos, mas não vêem, não fitam e tampouco ouvem, escutam. Olham como que fascinados a cena, cuja forma de expressão embebe suas raízes na Idade Média, a época das feiticeiras e dos clérigos. Ver e ouvir são atos que causam, por vezes, prazer; essas pessoas, porém, parecem-nos bem longe de qualquer atividade, parecem-nos, antes, objetos passivos de um processo qualquer que se está desenrolando. O estado de enlevo em que se encontram e em que parecem entregues a sensações indefinidas, mas intensas, é tanto mais profundo quanto melhor trabalharem os atores; por isso desejaríamos, visto que tal estado de enlevo de forma nenhuma nos compra/,, que os atores fossem antes tão maus quanto possível.

27 O mundo que é reproduzido e do qual são tirados excertos para a criação dos referidos estados de alma e emoções surge de coisas de tal maneira pobres e escassas - um tanto de caricatura, um quanto de mímica e uma certa porção de texto - que é impossível deixar de admirar a gente de teatro; admiramo-la por conseguir, com um decalque (tão pobre do mundo, emocionar os espectadores muito mais intensamente do que o mundo propriamente dito.

28 E, no fundo, há que desculpar, em certa medida, os atores, porque a verdade é que, com reproduções mais exatas do mundo, não seria possível provocar os prazeres que lhes são comprados a troco de dinheiro e de celebridade; e seria, também, impossível fazer aceitar no mercado as suas reproduções inexatas se as apresentassem de uma forma menos mágica. A sua aptidão para retratar homens manifesta-se indiscriminadamente; são especialmente os patifes e as personagens menores que revelam traços da sua experiência e se diferenciam uns dos outros; as personagens principais, porém, devem conservar sempre um caráter geral, para que o espectador possa mais facilmente identificar-se com elas. E, além disso, os traços característicos devem sempre pertencer a um campo restrito, dentro do qual qualquer pessoa possa dizer imediatamente: "Ê isso mesmo"! O espectador deseja usufruir de sensações bem determinadas, tal como uma criança, por exemplo, quando monta num cavalo de madeira de um carrossel: a sensação de orgulho por saber andar a cavalo e por ter um cavalo, o prazer de se deixar levar e de passar junto de outras crianças, o sonho cheio da ventura de estar sendo seguida ou de estar ela própria a seguir outros, etc. A semelhança entre o veículo de madeira e um cavalo não contribui grandemente para que a criança experimente estas sensações; nem a aborrece, tampouco, o fato de a cavalgada se limitar a um pequeno círculo. Por sua vez, ao freqüentador de teatro o que lhe interessa é poder substituir um mundo contraditório por um mundo harmonioso, um mundo que conhece mal por um mundo onírico.

29 Foi neste estado que encontramos o teatro, ao procurarmos realizar o nosso empreendimento. E a tal estado se devia que os nossos esperançosos amigos, a quem chamamos filhos do século científico, se encontrassem transformados numa intimidada massa crente, "fascinada".

30 Sem dúvida há cerca de meio século lhes tem sido dado ver reproduções algo mais fiéis do convívio entre os homens, e, também, personagens que se rebelam contra determinados males sociais ou até contra a estrutura global da sociedade. O seu interesse pelo teatro, foi, mesmo, suficientemente forte para que, de espontânea vontade, se sujeitassem temporariamente a uma extraordinária redução da linguagem, da fábula e do seu nível intelectual, pois a aragem do espírito científico que então soprava fazia que os habituais motivos de encanto se desvanecessem. Mas tais sacrifícios não valem muito a pena. O aperfeiçoamento das reproduções impedia um determinado tipo de prazer, sem que se oferecesse outro em troca. O campo das relações humanas tornou-se evidente, mas não "claro". As sensações provocadas pela forma antiga (mágica) continuaram a ser também da natureza das antigas.

31 Tal como anteriormente, os teatros eram os recintos de recreio de uma classe que mantinha o espírito dentífico amarrado à Natureza, não ousando transferi-lo para as relações humanas. E à percentagem mínima do público que era proletária e a que se juntaram, apenas acessória e precariamente, alguns intelectuais apóstatas, era ainda, também, necessário o velho tipo de diversão, que constituía um alívio para o seu dia-a-dia sempre estipulado.

32 Todavia, prossigamos! Seja de que maneira for! Saímos a campo para uma luta, lutemos, então! Não vimos j á como a crença removeu montanhas? Não basta então termos descoberto que alguma coisa está sendo ocultada? Essa cortina que nos oculta isto e aquilo, é preciso arrancá-la!

33 O teatro, tal como nos é dado ver atualmente, apresenta a estrutura da sociedade (reproduzida no palco) como algo que não pode ser modificado pela sociedade (na sala). Édipo, que pecou contra alguns dos princípios que sustém a sociedade de sua época, é executado, os deuses tomam a si esta tarefa, e eles não são criticáveis. As grandes personagens solitárias de Shakespeare, que trazem no peito a estrela do seu destino, arrojam-se em seus vãos e mortais frenesis suicidas, e liquidam-se a si próprias; é a vida, e não a morte, que se torna obscena, quando de suas derrocadas; a catástrofe não é susceptível de ser criticada. Sacrifícios humanos por toda a parte. Bárbaros divertimentos! Ora, se os bárbaros têm uma arte, façamos nós uma outra!

34 Por quanto tempo ainda os nossos espíritos, abrigados na escuridão os seus corpos "compactos", terão de penetrar em todas aquelas quimeras que pairam sobre o estrado, para participar de uma prosperidade, que, "de outro modo", nos é negada? Que espécie de libertação será esta, se no final de todas as peças - que apenas para o espírito da época é feliz (ajusta Providência, a disciplina) - vivemos a fantástica execução que pune a prosperidade por ser excesso! E de rastos que nos adentramos no Édipo - aí se deparam ainda e sempre os tabus: a ignorância não evita a punição; no Otelo, pois, o ciúme, ainda e sempre, nos move, e tudo depende da posse; no Wallenstein, também nós devemos ser livres e leais, para uma luta de concorrência, senão tal luta findará. Estes hábitos demoníacos são também fomentados em peças como Os Fantasmas e Os Tecelões; nelas, a sociedade como milieu surge, porém, envolta em maior problemática. É por coação que recebemos as sensações, as idéias e os impulsos das personagens principais, e da sociedade recebemos apenas o que nos é dado pelo milieu em que as personagens se movem.

35 Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as idéias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo contexto histórico das relações humanas (o contexto em que as ações se realizam), mas, sim, que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que desempenhem um papel na modificação desse contexto.

36 Tal contexto tem de ser caracterizado na sua relatividade histórica. Ora, isto significa uma ruptura com o nosso hábito de despojar das suas diferenças as diversas estruturas sociais das épocas passadas, de maneira a fazê-las aproximarem-se mais ou menos da nossa, a qual, por sua vez, adquire, por meio desta operação, o caráter de algo sempre existente, portanto, eterno. Nós pretendemos, porém, deixar às diferentes épocas a sua diversidade e não esquecer jamais a sua efemeridade, de forma que a nossa época possa ser também considerada efêmera. (Para tal propósito, não podem, naturalmente, empregar o colorido ou o folclore, usados pêlos nossos teatros para fazer sobressair, tanto mais acentua-damente quanto possível, a analogia das formas de ação dos homens das diferentes épocas. Indicaremos adiante quais os recursos teatrais a empregar.)

37 Se movimentarmos as personagens em cena por meio de forças motrizes de caráter social, que variem conforme a época, dificultaremos ao nosso espectador uma aclimatação emocional. Não poderá sentir, pura e simplesmente, que agiria tal e qual; dirá: "Também eu teria agido assim"; ou, quando muito: "Se eu tivesse vivido em tais circunstâncias..." E se representarmos as peças da nossa época tal como se fossem peças históricas, é possível que ao espectador pareçam, então, igualmente, singulares as circunstâncias em que ele próprio age; nasce nele, assim, uma atitude crítica.

38 As "condições históricas" não devem ser, evidentemente, consideradas, nem tampouco serão estruturadas, como poderes obscuros (segundos planos); são, sim, criadas e mantidas pelo homem (e por ele modificadas). Aquilo que a ação nos mostra é que constitui, justamente, essas condições.

39 Se uma pessoa se exprime numa perspectiva histórica, se reage de acordo com a sua época, e se, noutras épocas, reagiria diferentemente, não será, então, muito simplesmente, essa pessoa um protótipo de todas as outras? Cada pessoa reage, na realidade, de maneira diversa, conforme os tempos que correm e a classe a que pertence; quer tenha vivido noutra época, quer não tenha ainda vivido tanto tempo como outra, quer viva já no ocaso da vida, a reação é, sempre, infalivelmente, diversa, mas igualmente precisa e idêntica à de qualquer pessoa que se encontre na mesma situação e na mesma época; e será que tudo isto não nos leva a perguntar se não haverá, ainda, outras diferenças possíveis de reação? Onde encontrar o ser vivo, o próprio e inconfundível, aquele que não é absolutamente semelhante ao seu semelhante? É pela imagem que teremos de torná-lo patente a todos; e o processo para o conseguirmos será, precisamente, configurar na imagem a contradição. A imagem de perspectivação histórica será como que um esboço, pois em torno da figura em destaque indicará outros movimentos e outros traços. Ou, então, imaginemos um homem que está fazendo um discurso num vale e que, de vez em quando, muda de opinião, ou apenas diz frases que se contradizem, de maneira que o eco, acompanhando-o, põe as frases em confronto.

40 Tais imagens exigem, evidentemente, uma forma de representação que mantenha livre e móvel o espírito atento. Este tem de dispor da possibilidade de realizar montagens fictícias na nossa construção, "apartando as forças motrizes sociais ou substituindo-as por outras; através de tal processo, um comportamento adequado ao momento adquire o aspecto de algo "anormal" e as forças atuantes na circunstância perdem, por seu lado, a sua naturalidade e tornam-se susceptíveis de serem manipuladas.

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