sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

MÁRIO DE ANDRADE - O ARTISTA E O ARTESÃO - PARTE II

E por que, como disse, pretenderei dar aos meus discípulos muito mais uma limitação de conceitos que uma fixação deles? Aqui a resposta é bem mais grave e difícil. Ousarei, primeiramente, afirmar que jamais pude me prender a conceitos perfeitamente nítidos do Belo, da Arte, da Criação, do Artista, do Espectador, da Técnica, do Sentimento ou da Expressão, da Matéria e da Forma?... Essa é a verdade porém. Devo confessar preliminarmente que eu não sei o que é o Belo e nem sei o que é a Arte. Através de todos os filósofos que percorri, num primeiro e talvez fátuo anseio de saber, jamais um conceito deixou de se quebrar diante de novas experiências. Eu não sei o que é o Belo. Eu não sei o que é a Arte. E no entanto, incapaz de conceituá-los com firmeza, seria, não modesto, mas perfeitamente injusto com o meu espírito e traidor dos que me trouxeram a esta cadeira, se negasse sentir, direi mais, intuicionar o que são arte e beleza. Eu tenho em minha casa uma coleção bem regular de cabeças esculpidas. São cabeças talhadas em madeira por índios civilizados de Pernambuco, são ex-votos surripiados de igrejas antigas, são cerâmicas colhidas em cemitérios de escravos, são bronzes de escultores eruditos ou modelagens infantis. Uma feita um escultor, em visita, separou um busto em madeira, vindo da Meirim pernambucana, e uma cabeça de barro cozido encontrada num cemitério de Campinas. E me disse: "Estas duas cabeças são esplêndidas, têm um espírito"... Concordei perfeitamente com a observação do escultor. Aquelas duas cabeças tinham um "espírito"... Depois, só comigo, me pus pensamenteando: O que queria dizer exatamente essa palavra "espírito", bastante comum em crítica de arte e na terminologia dos artistas? Simples calão de ateliê? Mesmo assim, qual o conceito perfeitamente nítido dessa palavra? Significaria "vida interior"? Certamente não significaria somente isso, nem inteiramente isso. Significaria uma nobreza rítmica de linhas que, abandonando a chatice realística, como que espiritualizava as formas, deixando-as flutuantes entre a verdade e o nosso pressuposto de perfeição? Também não era somente isso, nem isso inteiramente. É preferível ficar na entressombra fecunda, que é só onde podem nascer as assombrações. A fixação dos conceitos nos levaria fatalmente a uma organização sistemática do nosso pensamento artístico, nos levaria a uma Estética, nos levaria a filósofos, senão a filosofantes, e não aos artistas que devemos ser. Já uma limitação de conceitos, não é apenas necessária aos artistas, mas imprescindível. Sem isso, creio não se poder nunca ser artista verdadeiro. Principalmente em nosso tempo, em que campeia o individualismo mais desenfreado, e o artista se tornou um joguete de suas próprias liberdades. Mesmo nos países de organização social ditatorial, como a Rússia ou a Alemanha, as restrições até agora impostas à liberdade do artista são restrições meramente sociais. Pra não dizer, meramente ditatoriais. Quero dizer: não derivam de forma alguma das necessidades da obra de arte e do múltiplo e obscuro destino da arte. Não derivam de um justo equilíbrio entre a arte e o social, entre o artista e a sociedade. Derivam só do social, derivam só da necessidade de se defender, que têm as instituições novas. De forma que o artista, pelo menos por enquanto, dentro dessas sociedades ditatoriais, não adquiriu aquela humildade, aquele retorno a mero artesão que teve no Egito e mesmo na Idade Média. Deixa de ser um artista livre e não retorna a anônimo artesão. Transformou-se essencialmente num orador de comício, mais ou menos pragmaticamente disfarçado sob a máscara da arte. Enfim, ao invés de uma atitude estética , ele assume uma atitude social. O equilíbrio ainda não se conseguiu, como o prova até a própria obra trágica e maravilhosa desse genial Chostacovitz. E é justamente isto que uma limitação de conceitos estéticos deve e pode dar ao artista: uma atitude estética diante da arte, diante da vida. E é isso justamente, essa atitude estética, o que falta à grande maioria dos artistas contemporâneos: essa contemplação, essa serenidade oposta ao enceguecimento de paixões e interesses, como a caracterizava Schiller. E é justamente por isso que também, numa enorme maioria, eles puseram de lado essa importantíssima parte do artesanato que deve haver na arte, que tem de haver nela pra que ela se torne legitimamente arte. Se desde a Grécia, pelo menos, percorremos as confissões, os escritos, os ditos dos artistas verdadeiros, mesmo os que menos se confessaram, vemos sempre que todos eles tiveram conscientemente uma atitude estética diante da arte que faziam. Descobrimos em todos eles, mesmo nos que nos parecem mais fatalizados pelas deformações do tempo ou das liberdades pessoais, como um Miguel Anjo, um Mozart, um Goethe, descobrimos em todos eles uma segura vontade estética, uma humildade e segurança na pesquisa, um respeito à obra de arte em si, uma obediência ao artesanato, que já não me parecem existir na maioria dos contemporâneos. Quando deixei São Paulo se abrira lá o Salão de Maio, interessantíssimo, apaixonante mesmo, pela multiplicidade e uniformidade das suas manifestações. O Salão de Maio é admissível apenas a artistas "modernos" - e a meu ver, ele é um exemplo excelente da arte contemporânea, sob o ponto-de-vista que tratamos: a falta de uma verdadeira atitude estética na maioria dos artistas vivos. A primeira vista se tem a impressão de uma pesquisa humilde e apaixonada, quer da expressividade do material, quer da expressão do nosso ser interior. Mas, à medida que se examina mais profundamente esses técnicos pretendidamente obedientes aos mandos do material, ou esses abstracionistas pretendidamente obedientes aos efeitos estéticos das construções, ou esses sobrerrealistas pretensamente obedientes ao subconsciente, ao sonho, às associações de imagens, a gente percebe que quase todos eles, embora sinceríssimos, são muito menos pesquisadores que orgulhosos afirmadores de si mesmos. O que lhes determina a ação não é, de forma alguma, aquela vontade estética, aquela atitude estética, que determinou a obra, na aparência tão individualistamente afirmativa, de um Greco, de um Rembrandt ou mesmo de um Canova. Em vez de uma vontade estética, o que domina a maioria dos artistas do Salão de Maio é uma vaidade de ser artista. Em vez de uma atitude artística, é uma atitude sentimental. De forma que pra eles a obra de arte quase desaparece ante essa desmedida inflação e imposição do eu. Não pesquisam, em verdade, sobre o material. Não pesquisam sequer sobre si mesmos, o que também pode ser uma atitude estética. Não são pesquisadores. São escravos da determinação contemporânea de que é preciso pesquisar. E o resultado é esse engano de descobrirem, descobrirem não, de imporem uma ou outra suposta verdade. E imporem, afirmarem essa verdade numa obra de arte, que não é mais o objeto de uma pesquisa, mas apenas o veículo de uma mais ou menos gratuita afirmação. Um grande, um doloroso, um verdadeiramente trágico engano. Há uma incongruência bem sutil em nosso tempo. Na história das artes, estamos num período que muito parece ter pesquisado e que, no entanto, é dos mais afirmativos, dos mais vaidosos, dos menos humildes diante da obra de arte. Há, por certo, em todos os artistas contemporâneos, uma desesperada, uma desapoderada vontade de acertar. Mas a inflação do individualismo, a inflação da estética experimental, a inflação do psicologismo, desnortearam o verdadeiro objeto da arte. Hoje, o objeto da arte não é mais a obra de arte, mas o artista. E não poderá haver maior engano. Faz-se necessário urgentemente que a arte retorne às suas fontes legítimas. Faz-se imprescindível que adquiramos uma perfeita consciência, direi mais, um perfeito comportamento artístico diante da vida, uma atitude estética disciplinada, apaixonadamente insubversível, livre mas legítima, severa apesar de insubmissa, disciplina de todo o ser, para que alcancemos realmente a arte. Só então o indivíduo retornará ao humano. Porque na arte verdadeira o humano é a fatalidade.

Aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, Universidade do Distrito Federal em 1938

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