sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

ARISTÓTELES - POÉTICA - PARTE I

I. Poesia é imitação. Espécies de poesia imitativa, classificadas segundo o meio da imitação.

1. Falemos da poesia - dela mesma e das suas espécies, da efetividade de cada uma delas, da composição que se deve dar aos mitos, se quisermos que o poema resulte perfeito, e, ainda, de quantos e quais os elementos de cada espécie e, semelhantemente, de tudo quanto pertence a esta indagação - começando, como é natural, pelas coisas primeiras.

2. A epopéia, a tragédia, assim como a poesia ditírâmbica e a maior parte das aulética e da citarística, todas são, em geral imitações. Diferem, porém, umas das outras, por três aspectos: ou porque imitam por meios diversos, ou porque imitam objetos diversos ou porque imitam por modos diversos e não da mesma maneira.

3. Pois tal como há os que imitam muitas coisas, exprimindo-se com cores e figuras (por arte ou por costume), assim acontece nas sobreditas artes: na verdade, todas e (as imitam com o ritmo, a linguagem e a harmonia, usando estes elementos separada ou conjuntamente. Por exemplo, só de harmonia e ritmo usam a aulética e a citarística e quaisquer outras artes congêneres, como a siríngica; com o ritmo e sem harmonia, imita a arte dos dançarinos, porque também estes, por ritmos gesticulados, imitam caracteres, afetos e ações.

4. Mas a epopéia é a arte que apenas recorre ao simples verbo, quer metrificado quer não, e, quando metrificado, misturando metros entre si diversos ou servindo-se de uma só espécie métrica - eis uma arte que, até hoje, permaneceu inominada. Efetivamente, não temos denominador comum que designe os mimos de Sófron e de Xenarco, os diálogos socráticos e quaisquer outras composições imitativas, executadas mediante trímetros jâmbicos ou versos elegíacos ou outros versos que tais. Porém, ajuntando à palavra "poeta" o nome de uma só espécie métrica, aconteceu denominarem-se a uns de "poetas elegíacos", á outros de "poetas épicos", designando-os assim, não pela imitação praticada, mas unicamente pelo metro usado.

5. Desta maneira, se alguém compuser em verso um tratado de medicina ou de física, esse será vulgarmente chamado "poeta"; na verdade, porém, nada há de comum entre Homero e Empédocles, a não ser a metrificação: aquele merece o nome de "poeta", e este, o de " fisiólogo", mais que o de poeta. Pelo mesmo motivo, se alguém fizer obra de imitação, ainda que misture versos de todas as espécies, como o fez Querémon no Centauro, que é uma rapsódia tecida de toda a casta de metros, nem por isso se Ihe deve recusar o nome de "poeta".

6. Fiquem assim determinadas as distinções que tínhamos de estabe-lecer. Poesias há, contudo, que usam de todos os meios sobreditos; isto é, de ritmo, canto e metro, como a poesia dos ditirambos e dos nomos, a tragédia e a comédia - só com uma diferença: as duas primeiras servem-se juntamente dos três meios, e as outras, de cada um por sua vez. Tais são as diferenças entre as artes, quanto aos meios de imitação.

II Espécies de poesia imitativa, classificadas segundo o objeto da imitação.

7. Mas, como os imitadores imitam homens que praticam alguma ação, e estes, necessariamente, são indivíduos de elevada ou de baixa índole (porque a variedade dos caracteres só se encontra nestas diferenças e, quanto a caráter, todos os homens se distinguem pelo vício ou pela virtude), necessariamente também sucederá que os poetas imitam homens melhores, piores ou iguais a nós, como o fazem os pintores: Polignoto representava os homens superiores; Pauson, inferiores; Dionísio representava-os semelhantes a nós. Ora, é claro que cada uma das imitações referidas contém estas mesmas diferenças, e que cada uma delas há de variar, na imitação de coisas diversas, desta maneira.

8. Porque tanto na dança como na aulética e na citarística pode haver tal diferença; e, assim, também nos gêneros poéticos que usam, como meio, a linguagem em prosa ou em verso [sem música] : Homero imitou homens superiores; Cleofão, semelhantes; Hegêmon de Taso, o primeiro que escreveu paródias, e Nicócares, autor da Delíada, imitaram homens inferiores. E a mesma diversidade se encontra nos ditirambos e nos nomos. como o mostram Arga, Timóteo e Filóxeno, nos Ciclopes.

9. Pois a mesma diferença separa a tragédia da comédia; procura, esta, imitar os homens piores, e aquela, melhore do que eles ordinariamente são.
III Espécies de poesia imitativa, classificadas segundo o modo da imitação: narrativa, mista, dramática.Etimologia de "drama" e "comédia" '

10. Há ainda uma terceira diferença entre as espécies de poesias imitativas, a qual consiste no modo como se efetua a imitação. Efetivamente, com os mesmos meios pode um poeta imitar os mesmos objetos, quer na forma narrativa (assumindo a personalidade de outros, como o faz Homero, ou na própria pessoa, sem mudar nunca), quer mediante todas as pessoas imitadas, operando e agindo elas mesmas. Consiste pois a imitação nestas três diferenças, como ao princípio dissemos - a saber: segundo os meios, os objetos e o modo. Por isso, num sentido, é a imitação de Sófocles a rnesma que a de Homero, porque ambos imitam pessoas de caráter elevado; e, noutro sentido, é a mesma que a de Aristófanes, pois ambos imitam pessoas que agem e obram diretamente.

11· Daí o sustentarem alguns que tais composições se denominam dramas, pelo fato de se imitarem agentes [dróntas]. Por isso, também, os Dórios para si reclamam a invenção da tragédia e da comédia; a da comédia, pretendem-na os megarenses, tanto os da metrópole, do tempo da democracia, como os da Sicília, porque lá viveu Epicarmo, que foi muito anterior a Quiônidas e Magnes; e da tragédia também se dão por inventores alguns dos dórios que habitam o Peloponeso: dizem eles que, na sua linguagem. chamam kômai às aldeias que os atenienses denominam dêmoi, e que os "comediantes" não derivam seu nome de komázein rnas, sim, de andarem de aldeia em aldeia (kómas), por não serem tolerados na cidade; e dizem também que usam o verbo drân para significar o "fazer", ao passo que os atenienses empregam o termo práttein.

12. Damos por dito tudo que se refere a quantas e quais sejam as diferenças da imitação poética.
IV Origem da poesia. Causas. História da poesia trágica e cômica.

13. Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação. Aprende as primeiras noções e os os homens se comprazem no imitado.

14. Sinal disto e o que acontece na experiência: nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância. por exemplo, as representações de animais ferozes; e de cadáveres. Causa é que o aprender não só muito apraz aos filósofos, mas também, igualmente, aos demais homens, se bem que menos participem dele. Efetivamente, tal e o motivo por que se deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas, [e dirão), por exemplo, "este é tal". Porque, se suceder que alguém não tenha visto o original, nenhum prazer lhe advirá da imagem, como imitada, mas tão somente da execução, da cor ou qualquer outra causa da mesma espécie.

15. Sendo, pois, a imitação própria da nossa natureza (e a harmonia e o ritmo. porque é evidente que os metros são partes do ritmo), os que ao princípio foram mais naturalmente propensos para tais coisas pouco a pouco deram origem à poesia, procedendo desde os mais toscos improvisos.

16. A poesia tomou diferentes formas, segundo a diversa índole particular dos poetas. Os de mais alto ânimo imitam as ações nobres e das mais nobres personagens; e os de mais baixas inclinações voltaram-se para as ações ignóbeis, compondo, estes, vitupérios, e aqueles, hinos e encômios. Não podemos, é certo, citar poemas deste gênero, dos poetas que viveram antes de Homero, se bem que, verossimilmente, muitos tenham existido; mas, a começar em Homero, temos o Margites e outros poemas semelhantes, nos quais, por mais apto, se introduziu o metro jâmbico (que ainda hoje assim se denomina porque nesse metro se injuriavam [iámbizon]. De modo que, entre os antigos, uns foram poetas em verso heróico, outros o foram em verso jâmbico.

17. Mas Homero, tal como foi supremo poeta no gênero sério, pois se distingue não só pela excelência como pela feição dramática das suas imitações, assim também foi o primeiro que tratou as linhas fundamentais da comédia, dramatizando, não o vitupério, mas o ridículo. Na verdade, o Margites tem a mesma analogia com a comédia que têm a Ilíada e a Odisséia com a tragédia.

18. Vindas à luz a tragédia e a comédia, os poetas, conforme a própria índole os atraía para este ou aquele gênero de poesia, uns, em vez de jambos, escreveram comédias, outros, em lugar de epopéias, compuseram tragédias, por serem estas últimas formas mais estimáveis do que as primeiras.

19. Examinar, depois, se nas formas trágicas (a poesia austera] atinge ou não atinge a perfeição (do gênero), quer a consideremos em si mesma, quer no que respeita ao espetáculo - isso seria outra questão.

20. Mas, nascida · de um princípio improvisado (tanto a tragédia, como a comédia: a tragédia, dos solistas do ditirambo; a comédia, dos solistas do cantos fálicos, composições esta ainda hoje estimadas em muitas da nossas cidades), [a tragédia] pouco a pouco foi evoluindo, à medida que se desenvolvia tudo quanto nela se manifestava; até que, passadas muitas transformações, a tragédia se deteve logo que atingiu a sua forma natural. Ésquilo foi o primeiro que elevou de um a dois o número dos atores, diminuiu a importância do coro e fez do diálogo protagonista. Sófocles introduziu três atores e a cenografia. Quanto à grandeza, tarde adquiriu [a tragédia] o seu alto estilo: [só quando se afastou] dos argumentos breves e da elocução grotesca, [isto é,] do [elemento] satírico. Quanto ao metro, substituiu o tetrâmetro [trocaico] pelo [trímetro] jâmbico. Com efeito, os poetas usaram primeiro o tetrâmetro porque as suas composições eram satíricas e mais afins à dança; mas, quando se desenvolveu o diálogo, o engenho natural logo encontrou o metro adequado; pois o jambo é o metro que mais se conforma ao ritmo natural da linguagem corrente: demonstra-o o fato de muitas vezes proferirmos jambos na conversação, e só raramente hexametros, quando nos elevamos acima do tom comum.

21. Quanto ao número de episódios e outros ornamentos que se haja acrescentado a cada parte, consideremos o assunto tratado; muito laborioso seria discorrer sobre tudo isso em pormenor.

V A comédia: evolução do gênero. Comparação da tragédia com a epopéia.

22. A comédia é, como dissemos, imitação de homens inferiores; não, todavia, quanto a toda a espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem expressão de dor.

23. Se as transformações da tragédia e seus autores nos são conhecidas, as da comédia, pelo contrário, estão ocultas, pois que delas se não cuidou desde o início: só passado muito tempo o arconte concedeu o coro da comédia, que outrora era constituído por voluntários. E também só depois que teve a comédia alguma forma é que achamos memória dos que se dizem autores dela. Não se sabe, portanto, quem introduziu máscaras, prólogo, número de atores e outras coisas semelhantes. A composição de argumentos é [prática] oriunda da Sicília [e os primeiros poetas cômicos teriam sido Epicarmo e Fórmide] ; dos atenienses, foi Crates o primeiro que, abandonada á poesia jâmbica, inventou diálogos e argumentos de caráter universal.

24. A epopéia e a tragédia concordam somente em serem, ambas, imitação de homens superiores, em verso; mas difere a epopéia da tragédia, pelo seu metro único e a forma narrativa. E também na extensão, porque a tragédia procura, o mais que é possível, caber dentro de um período do sol, ou pouco excedê-lo, porém a epopéia não tem limite de tempo - e nisso diferem, ainda que a tragédia, ao princípio, igualmente fosse ilimitada no tempo, como os poemas épicos.

25. Quanto às partes constitutivas, algumas são as mesmas na tragédia e na epopéia, outras são só próprias da tragédia. Por isso, quem quer que seja capaz de julgar da qualidade e dos defeitos da tragédia tão bom juiz será da epopéia. Porque todas as partes da poesia épica se encontram na tragédia, mas nem todas as da poesia trágica intervêm na epopéia.
VI Definição de tragédia. Partes ou elementos essenciais.

26. Da imitação em hexâmetros e da comédia trataremos depois; agora vamos falar da tragédia, dando da sua essência a definição que resulta de quanto precedentemente dissemos.

27. É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama), [imitação que se efetua não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o "terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções".

28. Digo "ornamentada" a linguagem que tem ritmo, harmonia e canto, e o servir-se separadamente de cada uma das espécies de ornamentos significa que algumas partes da tragédia adotam só o verso, outras também o canto.

29. Como esta imitação é executada por atores, em primeiro lugar o espetáculo cênico há de ser necessariamente uma das partes da tragédia, e depois a melopéia e a elocução, pois estes são os meios pelos quais os atores efetuam a imitação.Por "elocução" entendo a mesma composição métrica, e por "melopéia", aquilo cujo efeito a todos é manifesto.

30. E como a tragédia é a imitação de uma ação e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio caráter e pensamento (porque é segundo estás diferenças de caráter e pensamento que nós qualificamos as ações), daí vem por conseqüência o serem duas as causas naturais que determinam as ações: pensamento e caráter; e·, nas ações [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de ações; e por "mito" entendo a composição dos atos; por "caráter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o quer que seja ou para manifestar sua decisão.

31. É portanto necessário que sejam seis as partes da tragédia que constituam a sua qualidade, designadamente: mito, caráter, elocução, pensamento, espetáculo e melopéia. De sorte que quanto aos meios com que se imita são duas, quanto ao modo por que se imita é uma só, e quanto aos objetos que se imitam, são três; e além destas partes não há mais nenhuma. Pode dizer-se que, de todos estes elementos, não poucos poetas se serviram; com efeito, todas as tragédias comportam espetáculo, caracteres, mito, melopéia, elocução e pensamento.

32. Porém, o elemento mais importante é a trama dos fatos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de ações e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas felicidade] ou infelicidade, reside na ação, e a própria finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade. Ora, os homens possuem tal ou tal qualidade confomemente ao caráter, mas são bem ou mal-aventurados pelas ações que praticam. Dai se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efetuar certas ações; por isso as ações e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa.

33. Sem ação não poderia haver tragédia, mas poderia havê-la sem caracteres. As tragédias da maior parte dos modernos não têm caracteres, e, em geral há muitos poetas desta espécie. Também, entre os pintores, assim é Zêuxis comparado com Polignoto, porque Polignoto é excelente pintor de caracteres e a pintura de Zêuxis não apresenta caráter nenhum.

34. Se, por conseguinte, alguém; ordenar discursos em que se exprimam caracteres, por bem executados que sejam os pensamentos e as elocuções, nern por isso haverá logrado o efeito trágico; muito melhor o conseguirá a tragédia que mais parcimoniosamente usar desses meios, tendo, no entanto, o mito, ou a trama dos fatos. Ajuntemos a isto que os principais meios por que a tragédia move os ânimos também fazem parte do mito; refiro-me a peripécias e reconhecimentos. Outro sinal da superioridade do mito se mostra em que os principiantes melhores efeitos conseguem em elocuções e caracteres, do que no entrecho das ações: é o que se nota em quase todos os poetas antigos.

35. Portanto, o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo semelhante; se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma ação e, através dela, principalmente, [imitação] de agentes.

36. Terceiro [elemento da tragédia] é o pensamento: consiste em poder dizer sobre tal assunto o que lhe é inerente e a esse convém. Na eloqüência, o pensamento é regulado pela política e pela oratória (efetivamente nos antigos poetas, as personagens falavam a linguagem do cidadão; e nos modernos falam a do orador). Caráter é o que revela certa decisão ou, em caso de dúvida, o fim preferido ou evitado; por isso não tem caráter os discursos do indivíduo em que, de qualquer modo, se não revele o fim para que tende ou o qual repele. Pensamento é aquilo em que a pessoa demonstra que algo é ou não é, ou enuncia uma sentença geral.

37. Quarto, entre os elementos [literários], é a elocução. Como disse, denomino "elocução" o enunciado dos pensamentos por meio das palavras, enunciado este que tem a mesma efetividade em verso ou em prosa.

38. Das restantes partes, a melopéia é o principal ornamento.

39. Quanto ao espetáculo cênico, decerto que é o mais emocionante, mas também é o menos artístico e menos próprio da poesia. Na verdade, mesmo sem representação e sem atores, pode a tragédia manifestar seus efeitos; além disso, a realização de um bom espetáculo mais depende do cenógrafo que do poeta.
VII Estrutura do mito trágico. O mito como ser vivente.

40. Assim determinados os elementos da tragédia, digamos agora qual deve ser a composição dos atos, pois é esta parte, na tragédia,; a primeira e a mais importante.

41. Já ficou assente que a tragédia é imitação de uma ação completa, constituindo um todo que tem certa grandeza, porque pode haver um todo que não tenha grandeza.

42."Todo" é aquilo que tem princípio, meio e fim. "Princípio é o que não contém em si mesmo o que quer que siga necessariamente outra coisa, e, que, pelo contrário, tem depois de si algo com que está ou estará necessariamente unido. "Fim", ao ínvés, é o que naturalmente sucede a outra coisa, por necessidade ou porque assim acontece na maioria dos casos, e que, depois de si, nada tem. "Meio" é o que está depois de alguma coisa e tem outra depois de si.

43. É necessário, portanto, que os mitos bem compostos não comecem nem terminem ao acaso, mas que se conformem aos mencionados princípios.

44. Além disto, o belo - ser vivente ou o que quer que se componha de - não só deve ter essas partes ordenadas, mas também uma grandeza que não seja qualquer. Porque o belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto um organismo vivente, pequeníssimo, não poderia ser belo (pois a visão é confusa quando se olha por tempo quase imperceptível); e também não seria belo, grandíssimo (porque faltaria a visão do conjunto, escapando à vista dos espectadores a unidade e a totalidade; imagine-se, por exemplo, um animal de dez mil estádios...). Pelo que, tal como os corpos e organismos viventes devem possuir uma grandeza, e esta bem perceptível como um todo, assim também os mitos devem ter uma extensão bem apreensível pela memória.

45. Determinar o limite prático desta extensão, tendo em conta as circunstâncias dos concursos dramáticos e a impressão no público, tal não é o mister da arte poética, pois se houvesse que pôr em cena cem tragédias [em um só concurso dramático], o tempo teria de ser regulado pela clepsidra, como dizem que se fazia antigamente. Porém, o limite imposto pela própria natureza das coisas é o seguinte: desde que se possa apreender o conjunto, uma tragédia tanto mais bela será quanto mais extensa. Dando uma definição mais simples, podemos dizer que o limite suficiente de uma tragédia é o que permite que nas ações uma após outra sucedidas, conformemente à verossimilhança e à necessidade, se dê o transe da infelicidade à felicidade ou da felicidade à infelicidade.
VIII Unidade de ação: unidade histórica e unidade poética.

46. Uno é o mito, mas não por se referir a uma só pessoa, como crêem alguns, pois há muitos acontecimentos e infinitamente vários, respeitantes a um só indivíduo, entre os quais não é possível estabelecer unidade alguma. Muitas são as ações que uma pessoa pode praticar, mas nem por isso elas constituem uma ação una.

47. Assim, parece que tenham errado todos os poetas que compuseram uma Heracleida ou uma Teseida ou outros poemas que tais, por entenderem que, sendo Héracles um só, todas as ações haviam de constituir uma unidade.

48. Porém Homero; assim como se distingue em tudo o mais, também parece ter visto bem, fosse por arte ou por engenho natural, pois, ao compor a Odisséia, não poetou todos os sucessos da vida de Ulisses, por exemplo o ter sido ferido no Parnaso e o simular-se louco no momento em que se reuniu o exército. Porque, de haver acontecido uma dessas coisas, não se seguia necessária e verossimilmente que a outra houvesse de acontecer, mas compôs em torno de uma ação una a Odisséia - una, no sentido que damos a esta palavra - e de modo semelhante, a Ilíada.

49. Por conseguinte, tal como é necessário que nas demais artes miméticas una seja a imitação, quando o seja de uno objeto uno, assim também o mito, porque é imitação de ações, deve imitar as que sejam unas e completas, e todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que uma vez suprimido ou deslocado um deles, também se confunda ou mude a ordem do todo. Pois não faz parte de um todo o que, quer seja quer não seja, não altera esse todo.

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